Do ‘apartheid sutil’ a ‘democracia racial’?

Por Vital Moreira

Recentemente, o jornal «Le Monde» dedicava uma peça àquilo a que chamava em título «o logro da democracia racial brasileira», pondo em relevo os dados sobre a discriminação racial no acesso ao emprego, ao bem-estar, à educação e ao poder político.

De facto, os números são impressionantes e confirmam dramaticamente a experiência de quem conheça a realidade social do Brasil (nunca esquecerei o verdadeiro choque das minhas primeiras visitas a universidades brasileiras, com auditórios quase exclusivamente brancos, em contraste com as ruas). Representando cerca de 45 por cento da população brasileira, os negros e mestiços constituem 63 por cento do número de pobres. As suas oportunidades de trabalho são menores e os seus salários consideravelmente mais baixos. São muito mais atingidos pelo desemprego e enfrentam intransponíveis dificuldades no acesso aos postos mais altos na carreira profissional ou na Administração.

Pública. São muito menos escolarizados e representam somente 15 por cento do número de estudantes universitários. Dos titulares de diplomas universitários, somente dois por cento são negros e 13 por cento mestiços. Recentemente, no «Jornal do Brasil» alguém observava que «chega a ser irónico que alguns cursos em universidades públicas brasileiras tenham um número maior de alunos africanos matriculados do que de negros brasileiros». O domínio branco é ainda mais flagrante no que respeita ao acesso à administração pública e aos postos do poder. Os negros e mestiços estão praticamente ausentes dos altos cargos da Administração e do Governo e contam-se pelos dedos entre os membros do Congresso federal.

Estes números deixam claro quanto de ficção existe na qualificação do Brasil como «democracia racial», que políticos e ideólogos estabeleceram como lugar-comum. Bem se sabe que a discriminação racial não é a única expressão do atraso e das injustiças sociais, mas é talvez a mais importante. No Brasil, sendo inquietantes os índices de discriminação e injustiça social em geral (ainda recentemente denunciados pela Amnistia Internacional), a discriminação racial é um factor decisivo da miséria e da exclusão na sociedade brasileira.

Existe, bem entendido, uma diferença brasileira. A segregação não existe nas leis nem em geral na sociedade. Muito menos existem manifestações de ódio racial, como em muitos outros lados. As raças não só convivem sem conflitos, como se misturam. O Brasil é um país por excelência mestiço, sendo a miscigenação racial um verdadeiro traço da identidade brasileira.

O próprio Presidente da República orgulha-se de «ter um pé na cozinha», querendo com isso significar a sua hereditária costela africana. Mas isso não apaga, antes sublinha, a inegável desigualdade racial e a discriminação económica social e política de que sofrem os negros e mestiços no Brasil (para não falar dos índios…).

É por isso que as recentes medidas contra a discriminação racial anunciada no Brasil a propósito da participação do país na conferência de Durban contra o racismo assumem uma importância que não é lícito desvalorizar. Trata-se de um conjunto de iniciativas de «acção positiva» (ou «discriminação positiva», como também são designadas), destinadas a favorecer o acesso de negros e mestiços ao emprego e ao ensino superior, mediante o estabelecimento de quotas mínimas a favor deles. E a imprensa noticia que o Ministério de Desenvolvimento Agrário deu o exemplo, impondo quotas de 20 por cento no pessoal do ministério e dos organismos dele dependentes, bem como nas empresas que contratem com o ministério (ver o jornal «Expresso» da semana passada). Não existe porém nenhuma menção de aplicar idêntico raciocínio ao acesso aos cargos políticos…

Essas medidas inovadoras inspiram-se obviamente no modelo norte-americano, justamente adoptado há algumas décadas nos Estados Unidos, por acção da administração dos presidentes Kennedy e Johnson em favor dos direitos cívicos dos afro-americanos, e que encontrou eco noutras latitudes, por exemplo, na promoção da «igualdade de género» na União Europeia, na luta contra a discriminação das mulheres no acesso ao emprego, bem como na promoção da participação política das mulheres (caso da regra da «paridade» em França).

Ponto é que tais medidas não fiquem no papel, vítimas da inércia burocrática e das resistências dos que temem ser afectados por elas. A experiência dos Estados Unidos e na Europa (aqui no que respeita às medidas de acção positiva em favor das mulheres) mostram os obstáculos que há a vencer (incluindo as objecções de índole jurídica brandidas pelo conservadorismo constitucional) e a vontade política que é necessário investir para as implementar eficazmente.

Tardio na abolição da escravatura, que só foi decretada em 1888 após a proclamação da República, o Brasil manteve tradicionalmente uma atitude condescendente em relação à discriminação racial de facto, autoconfortando-se na sua idiossincrasia mestiça. Mais uma vez chega tarde na adopção de medidas efectivas tornar real a igualdade formal e para corrigir a triste realidade de um «apartheid» extralegal, que nem por ser «suave» deixa de ser penoso. O reconhecimento oficial da discriminação racial no país e as medidas trazidas a público e anunciadas em Durban são um bom começo. Se forem levadas a cabo pode iniciar-se uma nova era na luta contra a discriminação racial no país e apagar-se definitivamente a trágica herança que a época colonial deixou e que quase 200 anos de independência não conseguiram corrigir.

Então talvez a utopia da «democracia racial» brasileira se torne realidade.



Fonte: Zwuela Angola

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