Documentário Flores de Baobá traça paralelos entre a vida de professoras negras do Brasil e dos EUA

Flores de Baobá é um filme independente que conta de maneira poética quais os desafios das educadoras

Por Juca Guimarães, do R7

Gabriela em ação nas filmagens do documentário. Divulgação/Flores de Baobá

Desvendar um novo olhar sobre a relação entre ensino, professoras e alunos é o objetivo do documentário Flores de Baobá, da cineasta Gabriela Watson Aurazo. O filme, que começou a ser gravado há três anos, mostra o cotidiano de duas educadoras negras, uma americana e outra brasileira, que têm muito em comum, principalmente, poder oferecer uma nova perspectiva de vida aos alunos.

Nyanza Bandele, da Filadélfia (EUA), e Priscila Dias, de São Paulo (Brasil), lutam pelo acesso à educação de qualidade em suas comunidades. “A desigualdade e dificuldades são combatidas na sala de aula e na militância na vida dessas jovens educadoras”, diz a cineasta Gabriela.

O filme está na fase final de gravações no Brasil e depois vai para a pós-produção com a inclusão da trilha sonora, edição e legendas. Para concluir o projeto, a diretora iniciou uma campanha de financiamento colaborativo até o dia 22 de março com meta para arrecadar R$ 35 mil.

O nome do documentário é inspirado na árvore Baobá, que atualmente tornou-se um símbolo relacionado ao sentimento Pan-Africanista. A lenda diz que os africanos escravizados tiveram que caminhar ao redor dessa árvore antes de cruzar o Atlântico para esquecer o seu nome e sua cultura. As professoras do filme são fortes como a árvore Baobá; eles são fonte de inspiração, espiritualidade e identidade para as suas comunidades.

R7: Como surgiu a ideia de fazer o documentário?

Gabriela Watson Aurazo: A ideia surgiu depois de entrevistar Priscila Dias, a professora de São Paulo. Percebi que sua pesquisa trazia um novo olhar com relação ao tema. A partir do momento em que vi o potencial de focar na temática da educação, através de pesquisa de campo localizei a Nyanza Bandele, a professora que acompanho na Filadélfia. Comecei assim, a elaborar o projeto, isso foi em 2014.

R7: Como está o projeto atualmente?

Gabriela Watson Aurazo: Atualmente estamos ainda em produção, pois como o projeto é filmado em etapas, ainda temos a terceira e última etapa para gravar que será feita no segundo semestre deste ano, ao mesmo tempo já iniciamos a montagem. Temos muito material, começamos a pós-produção com a montagem e o desenvolvimento de trilha sonora original. Além de estarmos captando recursos para finalizar o filme através da campanha no site Catarse, que termina no dia 22 de março.

R7: Qual a realidade hoje no sistema de ensino nas periferias?

Gabriela Watson Aurazo: Esse é uma questão ampla, antiga e de certa forma de conhecimento geral: a falta de estrutura, faltam recursos básicos como material escolar, os professores são mal remunerados e têm que assumir uma carga horária pesadíssima, escolas ficam meses com professores ausentes, as salas são superlotadas, os alunos vêm de famílias muitas vezes desestruturadas, o que dificulta seu processo de formação. Faltam livros, as apostilas usadas não dão conta da lei 10.639 que prevê o Ensino de História Africana e afro-brasileira em sala de aula. Os alunos não têm atividades extra curriculares, ficam o tempo todo dentro da sala de aula, muitas vezes nem a quadra é utilizada. Os alunos passam de ano porque não podem repetir, o que me parece bastante contraproducente.

R7: É assim em todas as escolas?

Gabriela Watson Aurazo: Pelo que pude observar também existem escolas com maior ou menor recursos, há escolas mais novas e melhor equipadas, muitas vezes no mesmo bairro periférico. Para mim foi fundamental, mesmo apesar de ler essa realidade nas notícias, ter uma vivência dentro dessa realidade. Eu gosto muito da seguinte frase da Priscila: “A escola tem uma estrutura do século XIX, com professores do século XX e alunos do século XXI”. Isso vai de encontro ao que é proposto no documentário Flores de Baobá: uma reflexão em cima do modelo escolar, que é arcaico e nessas condições não é mais nem humano. Eu hoje acredito que todas as pessoas devam ter uma vivência em escolas públicas para poder ter ideia de fato do que está  acontecendo. Por que você vê crianças e jovens com potencial, porém inseridas numa estrutura que não as forma enquanto cidadãos. E um dos objetivos do filme é chamar atenção para isso: a relação entre escola e modelo econômico capitalista em que estamos inseridos e levar as pessoas a repensar o próprio papel da escola e do conceito de educação.

R7: Qual a sua impressão pessoal sobre o sistema de ensino no Brasil e nos EUA em se tratando de periferia?

Gabriela Watson Aurazo: Acredito que respondi parte dessa questão na pergunta acima. Acrescento que o que me chamou a atenção é perceber a quanto a “periferia” de um país creditado como de primeiro mundo é parecida com a periferia de um país em desenvolvimento como o Brasil. Exatamente todos os problemas que mencionei sobre as escolas públicas no Brasil, também são realidade na Filadélfia. A proposta do filme é mostrar esses paralelos de sucateamento que tem ainda outro fator; o recorte racial. As populações mais afetadas com essa situação são as comunidades negras: afrobrasileiros no Brasil e nos Estados Unidos afroamericanas e latino-americanas. Então você vê aí uma interseção, não gratuita, entre pobreza, etnia e acesso escolar. No caso da Filadélfia, cidade onde estamos gravando o documentário, o sistema público está passando por um processo, segundo Nyanza Bandele de “desmantelamento”, muitas escolas estão sendo geridas por organizações privadas que acabam implementando sistema de seleção escolar para o ingresso. Quer dizer, os alunos que estudam nas escolas públicas são aqueles que não tiveram mais nenhuma opção, porque na verdade estão sendo classificados e barrados das escolas com mais recursos.

R7: Quais as diferenças entre os dois países na preservação da história africana e na autoafirmação dos jovens negros? Qual a função da escola nisso?

Gabriela Watson Aurazo: Se a população negra foi uma das comunidades que ajudou a alicerçar um país social, econômico e culturalmente é função da escola incluir a história dessa comunidade em todas as disciplinas. Isso deveria ser ponto pacífico para todo mundo, mas não é, quer dizer, isso deveria estar na base da nossa educação. Grosso modo: nosso sistema de ensino é eurocêntrico (baseado no colonizador que é europeu), com o avanço da democratização, a luta do movimento social negro, e o fato de termos tido um governo progressista, finalmente foi instituída a lei 10. 639/ 11.645 que prevê o ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas escolas públicas e privadas. Isso foi em 2003 no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O filme busca um novo olhar sobre a educação nas escolasDivulgação/Flores de Baobá

R7: A lei mudou a realidade nas escolas?

Gabriela Watson Aurazo: De acordo com o parecer que tenho colhido de educadoras e pesquisadores, a implementação da lei ainda está em processo, não há um currículo e uma pedagogia integrada ainda. Existe sim um esforço em formar os educadores nesse sentido, já que infelizmente na universidade muitas vezes os professores não são expostos a esse conhecimento. Eu mesma participei palestrando em uma das atividades de formação no ano passado na Jornada Municipal de Educação para as Relações Étnico-raciais, CEU Cidade Dutra, São Paulo, Brasil. Então, percebemos que para termos de fato uma educação que atenda a diversidade é preciso um planejamento a longo prazo e continuado. E aqui no Brasil, isso ainda está em fase de implementação.

R7: E como é isso nos EUA?

Gabriela Watson Aurazo: Nos Estados Unidos, o processo de democratização de direitos da população negra é mais antigo, outros fatores históricos contribuíram para que se formasse um movimento organizado com mais impacto político e social, como os Panteras Negras e o Movimento dos Direitos Civis liderado pelo Martin Luther King Jr. Então, apesar dos negros serem apenas 13% da população, você observa uma presença muito mais constante dessa população na mídia, na esfera política e em cargos de poder executivo. Ainda há desigualdade, mas a representatividade é maior se compararmos com o Brasil. Com relação à educação, durante 1960, 1970 foi o período onde ocorreram protestos para inclusão da história afro-americana nas escolas, para que haja mais professores e coordenadores negros e criou-se um comitê que revisou o currículo escolar. Em 2005, criou-se uma lei que obriga todos os estudantes a cursarem a disciplina de História Afro-Americana, pois nos Estados Unidos os estudantes escolhem parte da grade escolar, parecido a proposta da reforma do ensino médio recém aprovada no Brasil.

Então, de forma geral, a reparação com relação ao currículo escolar tem mais tempo nos Estados Unidos e de certa forma, existe mais fomento para a produção e preservação da cultura afro-americana, existem mais bibliotecas, museus e livrarias especializadas, maior produção de livros, filmes sobre esse assunto. Mais recursos financeiros específicos, como fomentos e prêmios para artistas de etnias e grupos sociais sub representados pela mídia, como negros, indígenas, mulheres, imigrantes, latinos. Isso tem efeito direto com a formação de autoestima dos jovens.

R7: Essa é a principal diferença?

Gabriela Watson Aurazo: Nos Estados Unidos, existia o conceito “one drop rule” feito pelo colonizador, ou seja basta ter uma gota de sangue negro para ser negro. Houve a segregação institucionalizada e um movimento muito forte de orgulho negro, então via de regra, tudo isso contribuiu para que um negro americano assuma sua identidade negra de forma mais direta. Agora isso não quer dizer que ele tenha necessariamente consciência da problemática racial e que tenha um papel ativo perante o tema. Mas é um passo adiante, pois sem identidade é impossível ter consciência das desigualdades sociais e raciais e ser uma pessoa ativa. No Brasil, pelo menos motivo de continuar a dominação do colonizador e as classes econômicas dominantes, espalhou-se mais intensamente a ideia da diferenciação entre os próprios afrodescentes: pretos, pardos, mulatos. E as políticas de “branqueamento” da sociedade aplicadas com a vinda de imigrantes europeus para clarear a população brasileira e o incentivo do casamento interracial como passo para “ascensão social” tem impacto direto na autoestima dos afro-brasileiros. Daí o colorismo ser muito mais intenso aqui do que nos Estados Unidos. Se negro seria apenas aquele de cor mais escura, temos o reverso do “one drop rule”, basta uma gota de sangue branco para não ser negro. E quem vai querer ser negro, se ser negro está geralmente associado à todas as coisas negativas? Identidade negra, principalmente no Brasil, é um processo em construção, como diz Neuza dos Santos no seu livro “Tornar-se negro”, a identidade negra é um “vir a ser”. Porém, nos últimos anos vê-se uma onda crescente de autoestima de jovens negros, isso sendo resultado das políticas de ações afirmativas, das cotas, da luta do movimento negro. Estamos avançando neste sentido. O último censo aponta este fenômeno.

R7: Quais as conexões que o documentário faz entre a presença feminina na educação?

Gabriela Watson Aurazo: O documentário pretende fazer conexões entre essas mulheres negras enquanto educadoras, mães e chefes de família, além de ativas em suas comunidades. Com relação especificamente à educação, a ideia é mostrar que para muitas mulheres o educar não começa quando elas entram na escola mas quando elas acordam. Aí voltamos àquela questão de repensar o papel da educação, o que significa educar, e onde o educar começa e termina para muitas das mulheres da nossa sociedade.

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