Dona de casa, empresária, mãe, estudante: conheça a vida atribulada de Dih Nascimento, uma típica brasileira

Edilene se enquadra nas estatísticas que definem o perfil da maioria das mulheres do País

Por Ana Cláudia Barros, do R7

Os dedos correm ágeis pelo teclado do laptop sobre a mesa da cozinha da casa simples, de três cômodos, na Chácara Santo Amaro, região do Grajaú, extremo sul de São Paulo. Enquanto conversa com a reportagem do R7, Edilene Nascimento, 33 anos, ou apenas Dih, como gosta de ser chamada, desvia, vez ou outra, o olhar para a tela do computador. Checa e-mails, mensagens instantâneas, atende ao celular. Estudante de relações públicas, ela começou há menos de um mês a tocar sua empresa de assessoria de comunicação. Em um mercado concorrido, decidiu “criar a própria vaga”.

Após a primeira etapa da entrevista, pausa para refogar o feijão. No quarto, o marido se arruma para trabalhar. Dih sorri ao falar do filho, de 11 anos, que está na escola.

— Ele quer ser ator. É um comediante.

A jornada de dona de casa/empresária/mãe/universitária está longe de acabar. No período noturno, ela vai para a faculdade particular, localizada na Vila Olímpia, bairro nobre da capital, que cursa com ajuda do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil). Usuária de transporte público, ela precisa de duas conduções para chegar até o destino e gasta mais de duas horas no deslocamento.

A rotina atribulada de Edilene se assemelha à da maioria das mulheres brasileiras, que vivem o desafio de se dividir entre o trabalho, as tarefas domésticas e o cuidado com a família. De acordo com dados do Pnad 2013 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a maior parte da população feminina do País tem entre 25 e 34 anos (16,1%), apresenta pelo menos 11 anos de estudo (39,9% das brasileiras de dez anos ou mais) e está no grupo que inclui pardas e pretas (51,8%), assim como Dih, uma típica brasileira.

A pesquisa revelou ainda que 50,1% são consideradas economicamente ativas, 85,5% declararam cuidar de afazeres domésticos e o arranjo familiar mais comum no qual as mulheres estão inseridas, conforme o estudo, é formado por casal com presença de um ou mais filhos (55,2%).

Cíntia Simões Agostinho, diretora de pesquisa do IBGE, destaca que há alguns anos vem sendo observado o aumento da escolaridade da população como um todo, “o que não significa necessariamente qualidade”, pontua. No caso das mulheres, Cíntia ressalta a maior inserção no mercado de trabalho e a ocupação mais frequente de posições tradicionalmente masculinas, como as profissões de juízas e de delegadas.

Apesar das conquistas, os avanços ainda estão muito aquém do desejado, diz a pesquisadora. As desigualdades entre homens e mulheres persistem no mercado de trabalho e elas continuam com rendimento médio inferior ao deles, embora, muitas vezes, tenham mais qualificação.

“Neguinha”, com muito orgulho

Edilene aprendeu desde cedo que lutar contra as adversidades estava no seu roteiro de vida. Das irmãs, é a que tem a pele mais escura, e sofria na infância quando era chamada, em tom de xingamento, de “neguinha”.

— Lá em casa, todo mundo é diferente. Eu sou a única pretona. Tem a mais ou menos e tem a brancona. Quando minha irmã ficava com muita raiva de mim, ela me xingava de picolé de betume, de neguinha. Eu chorava e perguntava: “Por que sou preta, meu Deus?”.

A época em que alisava o cabelo passou. Hoje Dih tem orgulho de sua cor, apesar de ainda ser alvo de preconceito. É a única negra de sua classe na faculdade e sente o peso de um País que durante mais de três séculos conviveu com a escravidão.

— Imagina um monte de mulher negra querendo entrar no estereótipo dos brancos? Somos negros, não precisamos disso.

Sempre gostou de estudar, mas, a exemplo de muitas adolescentes, sobretudo da periferia, precisou suspender temporariamente o sonho de ter uma carreira quando engravidou aos 16 anos.

— Queria ser arquiteta ou engenheira para mandar nos homens. Acho o maior barato a mulher chegar à obra e falar: “Isso aqui tá errado.” (risos) […]. Tive a Ana (hoje, com 17 anos) e, depois, o Samuel (15). Esperei os dois crescerem um pouco e tive o Vinicius. Falei: “Ai, não acredito”. Então, decidi que voltaria a estudar mesmo assim.

Edilene, que havia parado na sétima série do ensino fundamental, voltou a frequentar a escola. Além das dificuldades naturais, teve que enfrentar críticas, algumas, da própria família. Precisou conciliar o estudo com o trabalho e a educação dos filhos. Como boa brasileira, aprendeu a se virar sozinha.

— Nessa vida, já fiz de tudo um pouco. Trabalhei como ajudante de cozinha, balconista de padaria, atendente de telemarketing.

Terminar o ensino médio reacendeu nela o antigo sonho de cursar faculdade. Estava perto dos 30 e não tinha uma profissão definida. Queria dar um rumo à vida.

— Pensei que se eu fosse me formar como engenheira ou arquiteta, até eu montar um escopo de clientes, iria demorar muito. Aí, comecei a procurar alguma coisa dentro do que eu gosto de fazer e, como gosto de falar muito, fui pesquisar entre jornalismo e relações públicas.

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Edilene com o caçula: “É justamente por eles [filhos] que a gente tem que se esforçar” Daia Oliver/R7

Novamente, ouviu de muitos que não conseguiria e que era melhor desistir.

— O que mais falam é que sou louca, que eu não deveria deixar meus filhos para estudar […]. Este tipo de comentário me deixa furiosa. Aí que eu quero ir para cima mesmo, fazer e mostrar que sou capaz. A gente não pode deixar se abater com que as pessoas falam.

Para Edilene, o diploma universitário representa mais do que uma realização pessoal.

— Significa um crescimento. As pessoas olham a mulher da periferia e pensam: “Não vai dar em nada. Vai ser mais uma dona de casa. Mais uma com a barriga no fogão. Vai envelhecer ali”. Quero tirar essa imagem. O mundo não é só a casa e os filhos. Isso não é para mim. Não nasci para isso.

E é pelos filhos — a mais velha já é casada e o de 15 anos vive com o pai, no Rio de Janeiro — , diz ela, que não desiste de lutar.

— É justamente por eles que a gente tem que se esforçar […]. Para mostrar que é possível quebrar o ciclo, tenho que servir de exemplo. Espero que eles estudem. Negro nesse País não tem vez, ainda mais quando não estuda. Só continua em trabalhos subalternos. Se você estuda, consegue provar que é capaz de fazer alguma coisa. O que eu puder fazer para mudar esse estereótipo na minha família vou fazer. Não medirei esforços.

Cozinha X escritório

A cozinha de aproximadamente seis metros quadrados é o escritório da empresa de comunicação de Edilene. Ao todo, quatro trabalham na pequena firma, que já conta com sete clientes, segundo ela.

O imóvel humilde, onde vivem também o terceiro marido, o filho de 11 anos e um amigo, faz com que Dih tenha, entre os principais sonhos de consumo, uma “casa decente”.

— Imagina trazer um artista aqui [assessorado por ela]? Não posso. Marco no Ibirapuera, no shopping. Tem muito esse lance da aparência.

O curso universitário é só o começo para ela. Edilene tem planos mais ambiciosos.

— Primeiro, quero ser conhecida na comunicação como uma estudiosa da área. Pretendo fazer mestrado, doutorado, dar aulas […] Tenho também planos de criar uma ONG na periferia, voltada para vítimas de violência doméstica. É importante para elas ter apoio moral e psicológico, porque elas acabam parando tudo e tendo medo de viver.

“Tudo é possível”

Questionada sobre como enxerga a posição da mulher na sociedade brasileira, responde como agente ativo do processo de mudança. Cita as discrepâncias salariais entre a população feminina na comparação com a masculina e reconhece que ainda há um caminho longo a ser percorrido em direção à igualdade de oportunidades.

— No caso da mulher negra, a situação é bem pior. Ela é vista na sociedade como peito e bunda ou como empregada doméstica.

Dih defende ainda uma representação feminina maior no meio político. Os olhos dela brilham ao projetar a possibilidade de uma presidente da República negra.

— Acho que a mulher tem que ir em frente, pegar cargos públicos, prefeitura, Presidência da República […] Seria lindo uma presidente negra.

Indagada se aventaria a possibilidade de um dia se candidatar, abre um sorriso e responde com a firmeza que lhe é peculiar.

— Tudo é possível quando a gente quer.

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