As duas faces da Justiça

A mesma Justiça que absolve um fazendeiro condenado por estupro de vulnerável é aplicada de modo indignado, vingativo e exemplar  para as mulheres pobres que cometem os chamados  “crimes insignificantes”
Laura Capriglione e Joana Brasileiro/Arte 

O fazendeiro G.B., de 80 anos, foi preso em fevereiro de 2011 quando mantinha relações sexuais com X, uma menina de 13 anos, dependente de álcool e drogas, em uma camionete estacionada no meio de um canavial. Outra menina, Y, de 14 anos, já havia masturbado o homem e também se encontrava dentro do veículo. Pelo serviço, X recebeu R$ 50. Y ficou com R$ 20. A ordem de prisão em flagrante foi dada pela Polícia Militar.

Como X era, na ocasião dos fatos, menor de 14 anos, a Justiça de Catanduva (384 km de São Paulo) condenou G.B. a oito anos de prisão em regime fechado por estupro de vulnerável. Mas o fazendeiro ficou apenas 40 dias detido. Recorreu da condenação e o Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu a condenação, que virou absolvição.

Isso, apesar de o artigo 217-A, introduzido no Código Penal pela Lei nº 12.015, de 2009, ser claríssimo ao definir o chamado “estupro de vulnerável” como a conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Pena: reclusão, de 8 a 15 anos. Pelo mesmo artigo, define-se que incorre em igual pena quem mantenha relações sexuais com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

“O acusado cometeu crime de violação dos direitos da criança e deveria ser punido por isso. Houve exploração sexual de menor, o que é crime hediondo”,  Míriam Maria José dos Santos Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

Leva a assinatura do relator, desembargador Airton Vieira, o acórdão que absolveu o fazendeiro. Airton Vieira, só para lembrar, foi um dos assessores do ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso do “mensalão”. O julgamento do fazendeiro pedófilo teve a participação também dos desembargadores Nuevo Campos e Hermann Herschander.

A absolvição de G.B. foi recebida com consternação pelas entidades de defesa dos direitos de crianças e adolescentes. “O acusado cometeu crime de violação dos direitos da criança e deveria ser punido por isso. Houve exploração sexual de menor, o que é crime hediondo”, disse a presidente do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), Míriam Maria José dos Santos.

Ponte obteve a íntegra do acórdão de absolvição. Como o caso correu sob segredo de Justiça, para preservar as meninas, não será mencionado nenhum apelido ou nome ou endereço que eventualmente permita identificá-las.

Ponte também teve acesso ao excepcional documentário “Bagatela” (DocTV, direção Clara Ramos, 2009), que acompanhou as trajetórias de mulheres presas por cometer os chamados “crimes de bagatela”, aqueles pequenos furtos de produtos de valor irrisório (xampu, bolachas, leite em pó, queijo). No documentário, tem papel destacado o mesmo Airton Vieira, então juiz da 4º Vara Criminal Central de São Paulo, desta feita defendendo máximo rigor no julgamento desses crimes insignificantes.

 

Um juiz, duas atitudes, duas Justiças. Uma é tolerante e compreensiva com o fazendeiro, patriarca em Paraíso (cidade próxima a Catanduva), proprietário de canaviais no interior rico de São Paulo, que teria sido “enganado” pelas meninas, as quais lhe teriam asseverado serem maiores de 18 anos. A outra é indignada, raivosa, vingativa, exemplar. Esta é para as mulheres pobres que cometem os tais “crimes insignificantes”.

O que se verá nas linhas abaixo será o debate do desembargador Airton Vieira consigo mesmo. Em vermelho, trechos do acórdão por ele redigido, absolvendo o fazendeiro pedófilo ao mesmo tempo em que culpa as vítimas por seu modo de vida “devasso”. Em azul, trechos de sua fala contra as ladras de xampu e queijo.

Seria divertido, se não fosse trágico demais.

“É bem verdade que se trata de menor de 14 anos, mas entendo ser crível e verossímil, diante do que aconteceu, que o réu tenha se enganado quanto à idade real da vítima X, Afinal, partindo-se do pressuposto de que, no presente caso, a vítima X, à época dos fatos, contava com parcos 13 anos, 11 meses e 25 dias de idade, e, levando-se em consideração que era pessoa que se dedicava ao uso de drogas e ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, [e que] já manteve relações sexuais com diversos homens, o que significa não ser ela nenhuma jejuna na prática sexual, é que não se pode presumir que o réu tinha conhecimento real da idade da vítima e que tinha o dolo de manter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”.

 

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“Hoje é uma gilete, amanhã é um quilo de carne… Você vai somando nos vários supermercados, nas várias lojas, isso ganha milhões. Por outro lado, se você não punir quem faz desse tipo de ação o seu dia a dia, ou ainda que seja uma vez isolada, você há de convir comigo o seguinte: todos nós estaremos legitimados a entrar em qualquer supermercado e subtrair algo na faixa de 5, 10, 20 reais. (…) Vejam o prejuízo que isso causa”.

“Não se pode perder de vista que em determinadas ocasiões podemos encontrar menores de 14 anos que aparentam ter mais idade, mormente nos casos em que eles se dedicam à prostituição, usam substâncias entorpecentes e ingerem bebidas alcoólicas, pois em tais casos é evidente que não só a aparência física como também a mental desses menores se destoará do comumente notado em pessoas de tenra idade.”

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Não são muitos os casos que se amoldariam em tese ao princípio de bagatela. Por mês, eu não chego a contar nos dedos de uma mão. Sabonetes, xampus, giletes, gêneros alimentícios, mas não de primeira necessidade. Ou seja, bolachas, queijos, postas de bacalhau. Tem coisas interessantes neste aspecto. Porque a pessoa não furta, via de regra, aquilo que você pode pensar que é uma necessidade premente dela. Eu não vejo como uma necessidade premente de alguém o uso de xampu.”

“Seria insensibilidade, a meu ver, distante dos verdadeiros contornos em que o fato se deu, manter a condenação do réu, que na época dos fatos contava com 76 anos de idade, pela prática do crime de estupro de vulnerável contra a vítima X, menor de 14 anos, sobretudo quando emerge dos autos uma verdadeira e clara situação de erro de tipo, pois o réu não tinha consciência da idade dela.”

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“Se eu mantenho alguém preso é porque eu entendo que aquela pessoa ou deve permanecer presa, ou deve vir a ser presa. Se ela vai sair melhor ou pior, isso não é problema meu. Foi opção dessa pessoa. Ela podia ter seguido o exemplo honesto, que apesar de sofrer muito, dignifica o país. Honra a população brasileira. Sofre, mas sofre com altivez, olhando nos seus olhos.”

“Logicamente, não se pode desprezar a possibilidade, bastante frequente, da ocorrência de erro de tipo em relação à idade do menor [Não é possível que se exija] ao ‘consumidor’ que, antes de qualquer ato de libidinagem, exija a apresentação de documentos, os quais, ainda assim, podem não ser verdadeiros. Nesse meio, por outro lado, é comum que menores tenham aparência envelhecida além de sua idade real, decorrente de insônia (noites mal dormidas), ingestão excessiva de álcool, enfim, os maus-tratos que a vida devassa lhes oferece contribuem para a aparência de ‘amadurecimento’ (entenda-se envelhecimento) precoce.” (Airton Vieira citando Cezar Roberto Bitencourt)

“Você contrataria para trabalhar na sua residência, para usufruir da intimidade do seu lar alguém que tivesse sido condenado por furto? Eu vou ser franco: eu não contrataria. Eu não vou ser hipócrita. Como eu não gostaria de trabalhar com alguém já condenado, eu não gosto de mandar alguém prestar serviços à comunidade numa escola ou num hospital porque alguém em nome dessa escola ou em nome desse hospital celebrou um convênio qualquer. Eu não vejo isso como salutar. Não estou querendo dizer que eu defendo a prisão sistemática de todo mundo. O que eu defendo é que a pessoa sinta efetivamente uma retribuição por parte do Estado do mal que ela causou com ao praticar um crime. Do contrário, ela vai se sentir autorizada a praticar outros crimes, quiçá piores até.”

“Desse modo, não posso, sobretudo pela forma em que ocorreram os fatos, aplicar friamente o que dispõe o artigo 217-A do Código Penal e fundamentar a manutenção da condenação do réu com base na jurisprudência de nossa Corte Suprema, que entende tratar-se de vulnerabilidade absoluta, deixando passar despercebido o verdadeiro quadro de como se realizou essa relação de que teria resultado o estupro de vulnerável. Ante o exposto (…), dou provimento ao recurso da defesa para fins de se absolver o réu.”

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“Nós gostamos de ter essa visão romanceada do criminoso, como se o criminoso fosse um coitado. Como se fosse alguém que a sociedade não deu oportunidades para ele. Longe disso. O julgador não é legislador. Muitas coisas que eu entendo erradas sou obrigado a cumprir. Eu sou escravo da lei. Isso é uma segurança para toda a população. Até porque, amanhã ou depois, o que eu posso entender irrisório, 5 ou 10 reais, outro vai entender que irrisório é 400 ou 500 reais. Onde iremos parar com esse raciocínio?”

 

O silêncio dos julgadores

O site Ponte dirigiu à assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo as seguintes perguntas:

1. “X”, 13 anos, e “Y”, 14, são apresentadas como adolescentes usuárias de álcool e drogas. Diz o acórdão que teriam experiência “dessas coisas de sexo” e que “se prostituíram livremente para o réu”. Pergunta: o fato de serem dependentes químicas não as torna mais vulneráveis ainda, já que estariam tangidas pela síndrome de abstinência?

2. Como falar em “liberdade” de se prostituírem se está claro que as meninas “saem com homens para arrumar dinheiro para comprar substâncias entorpecentes”?

3. O fato de serem usuárias contumazes de álcool e drogas em vez de lhes aumentar a autonomia de decisão não as deixa em condição de vulnerabilidade análoga à de alienados ou débeis mentais “ou aqueles que, por outra causa, não pudessem oferecer resistência”, tal como prevê o artigo 217-A do Código Penal?

4. Qual a estatura de “X” e “Y” à época dos fatos?

5. Por que o relator aceitou sem mais a alegação de que não se pode “determinar ao ‘consumidor’ que, antes de qualquer ato de libidinagem”, exija a apresentação de prova de idade? Não caberia ao menos a caracterização de crime culposo?

Mas nenhuma resposta foi dada. Abaixo, o email enviado pela assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Os magistrados não podem conceder entrevista porque o caso está sob segredo de Justiça e, também, porque há um impedimento pela Lei Orgânica da Magistratura (o artigo 36 veda manifestação, por qualquer meio de comunicação, de opinião sobre processo que esteja sob sua responsabilidade ou de outro juiz).”

 

 

Fonte: Ponte.org

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