E começou o lamentável período de patriotismo papal – Leonardo Sakamoto

Após o passamento de Karol Wojtyla, foi engraçado como se estabeleceu a expectativa por aqui do Conclave escolher um papa brasileiro. Perfis foram levantados por colegas da imprensa, apostas foram feitas, rezas dirigidas aos céus. A graça é que um papa conservador é um papa conservador, seja ele sul-americano, africano ou asiático. E um papa progressista, mesmo europeu, pode fazer uma diferença maior na vida da periferia do mundo católico do que alguém nascido no Brasil, por exemplo. Pouco importavam as ideias dos papáveis, bastava que eles tivessem nascido aqui.

“Ah, Sakamoto, mas você não é católico. Isso não lhe diz respeito.” Ah, quem pensa assim não tem ideia de quanto a instituição em questão continua influenciando o cotidiano das pessoas em um país como o nosso. Basta ver como as liberdades individuais são limitadas pela disputa simbólica, política e legal levadas a cabo por representantes da Igreja Católica.

Mas o assunto não é quem vai suceder Joseph Ratzinger e sim uma besteira chamada patriotismo.

Como já disse aqui antes, simplesmente adoro que alguém critique o meu patriotismo. Sabe por que? Por que não sofro dessa psicose coletiva.

Não amo meu país e seu povo incondicionalmente. Mas gosto deles o suficiente para tentar entendê-los e ajudar a tornar o local minimante habitável e a nossa convivência minimamente pacífica através da narração e análise do que acontece.

Qual a melhor demonstração de respeito por um país? Vestir-se de verde e amarelo e se enrolar em uma bandeira com um lema positivista bizarro enquanto se canta um hino nacional de conteúdo vazio em prantos?

Ou apontar o dedo na ferida quando necessário? Ama a si mesmo, por outro lado, os que se escondem do debate, usando como argumento um suposto “interesse nacional” – do petróleo (EUA) ao etanol (Brasil) – que, na verdade, trata-se de “interesse pessoal”. Se questionado, correm para trás da trincheira do patriotismo. Que, como disse uma vez o escritor inglês Samuel Johnson: “é o último refúgio de um canalha”.

Agradeço a Alá o fato de não ter interiorizado o que disciplinas como Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira, restolhos utilizados pela ditadura, tentaram me dizer – apesar dos fantásticos professores que tentaram dar outro sentido ao malfadado currículo.

Datas cívicas e até momentos de escolha de um papa servem para compartilhar (ou enfiar goela abaixo) elementos simbólicos que, teoricamente, ajudam a forjar ou fortalecer a noção de “nação”. Mostrando que somos iguais (sic) e filhos da mesma pátria – e que devemos torcer para o mesmo esquadrão ou clérigo – mesmo que a maioria da população seja tratada na maior parte do tempo como bastardos renegados.

Por isso, me pergunto se esses momentos não poderiam ser, na verdade, oportunidades de reflexão sobre nós e como estendemos o direito à dignidade a todos que habitam este território. Ao invés de passarmos em revista velhas instituições, militares ou religiosas, que ainda vivem sob a herança da ditadura ou negando as palavras que estão na origem de sua própria fundação, repletas de algumas pessoas cheias de pó que se mantém feito gárgulas a tudo observar e criticar, cantando loas a si mesmos – poderíamos nos juntar para discutir a razão de chamarmos indígenas de intrusos, sem-teto e sem-terra de criminosos, camponeses de entraves para o desenvolvimento e imigrantes bolivianos de vagabundos.

Se isso ocorresse, eu – que não creio – passaria a acreditar.

 

 

Fonte: Blog do Sakamoto

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