Nosso combate não implica negação absoluta dos padrões dominantes. Significa que podemos desprezá-los e reivindicar nossa luta e liberdade
por Marília Moschkovich
Não é segredo para vocês que sou feminista. Nem que tenho várias amigas que também são feministas (e outras que agem e pensam como feministas mas não reivindicam para si o rótulo). No dia-a-dia e na militância papeamos, agimos, refletimos para tentar desconstruir um sistema que está colocado em nossa cultura há muitos séculos: o machismo.
No entanto, nenhuma de nós é um ser humano isolado. Todas as feministas — como as mulheres não-feministas e os homens — foram educadas dentro desse sistema. A própria identidade de “mulher” que muitas vezes nos une (e que configura o sujeito político de nossa causa) está baseada no reconhecimento de masculinidades e feminilidades que são o bojo desse sistema.
Embora nenhum dos símbolos masculinos e femininos da nossa cultura seja capaz de definir sozinho a identidade de mulher (incluindo corpo, aqui, como elemento cultural), são suas combinações que o fazem ao longo dos anos de vida. Quer dizer, é por meio dessas referências de masculino, feminino e das relações complexas entre elas que eu me construo enquanto ser humano nesta sociedade, neste tempo histórico, nesta cultura. Daí a dizer que ser mulher, não ser homem (ou ser homem e não ser mulher) é parte da subjetividade de cada um. Vivemos e vemos o mundo segundo essa maneira de existir, na maior parte das vezes.
Na prática, isso significa que, enquanto sujeito-mulher, inevitavelmente me apego a definições e pedaços do sistema que cotidianamente procuro combater. Difícil, hein?
Por essas e outras, podemos encontrar milhares de contradições entre a luta política e diversas práticas cotidianas de militantes feministas — e me parece que isso funciona para outras causas como o anti-capitalismo de qualquer tipo, ou o racismo, e daí em diante. Compreender que a depilação dos corpos que se pretendem femininos é uma violência machista não significa imediatamente passar a se sentir bem com os pelos (e nem significa passar a se sentir mal com essa prática, no nível individual). Ao mesmo tempo, o fato de individualmente não me incomodar com a depilação e me incomodar com pelos não faz com que, por eu ser feminista, a depilação possa ser uma bandeira feminista (neste contexto, nesta cultura, neste tempo histórico, etecétera).
O salto alto é outro bom exemplo. Não é preciso ser muito original nem muito feminista pra perceber que o salto alto limita a possibilidade de movimento das mulheres, reforça a função decorativa que nos foi destinada cultural e historicamente e fragiliza nossos corpos. Essa informação não me fará necessariamente parar de usar salto alto, nem parar de gostar de estar mais alta, e nem meu uso do salto o transformará numa prática feminista. O ponto é justamente que o fato de ser feminista não garante que eu aja de maneira totalmente feminista o tempo inteiro. Isso seria impossível, tendo sido formada num esquema de pensamento machista e vivendo esse sistema todos os dias.
Onde está o feminismo, então?
O feminismo está no alívio em relação ao suposto dever de usar saltos. Está na compreensão progressiva, ao longo dos anos e de muitos conflitos e reflexões, de que não sou menos mulher quando uso salto alto. De que eu posso escolher usar salto alto. De que, caso não use, não devo ser desrespeitada por isso. Acima de tudo, o feminismo está na ideia (tributária dessas autocríticas e críticas todas) de que preciso ser tratada como um ser humano digno, independentemente de minhas escolhas no nível individual, independente de quão exacerbada, dentro ou fora dos padrões, possa ser essa minha “feminilidade”, essa “expressão” da minha identidade de gênero.
A diferença entre escolher olhar o mundo de maneira feminista — mesmo sem ser militante da causa, mesmo sem estar organizada em grupos ou instituições — e simplesmente reproduzir o machismo, reforçando-o, é precisamente essa: a consciência sobre a contradição, a abertura para a autocrítica, a convivência diária com o conflito e a reflexão. Pode ser um caminho deveras duro, mas certamente não mata — só nos faz mais fortes.
Fonte: Carta Capital