Mulher: O pai dele dá pensão, assim, paga o colégio dele, não quero reclamar de dinheiro.
Advogado: Então o que você quer?
Mulher: Eu queria saber se tem alguma forma dele se comprometer com o cuidado do meu filho, de visitar e pegar a criança pra ficar com ele de vez em quando.
Advogado: Olha, ele já tá fazendo o suficiente, estas coisas de obrigar a cuidar, obrigar a dar carinho, a Justiça não tem nada pra fazer, não tem não.
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por Camila Fernandes no Femmaterna
Quando escrevi o texto “Pai quando dá” eu quis trazer um problema bem específico e nomear alguns dos silêncios aparentemente banais. Das emoções, mas também de jogos de poder e sofrimentos que se escondem na “normalidade” da vida. E este problema se refere a não participação masculina nos cuidados das crianças.
Não quis traçar um tipo social, tampouco um estereótipo, apenas quis falar sobre uma forma de viver, de aparecer e de sair que quase sempre fere e interfere no cuidado de alguém e na vida do outro. Que é a figura da intermitência e do desaparecimento. Do repentino e da confusão. Dos intervalos que ocorrem sem qualquer possibilidade de negociação. Dos sacrifícios que se fazem para que o outro não desapareça. E das proteções que precisamos quando o desaparecido resolve surgir com quatro pedras na mão.
Dito isto eu posso seguir com a reflexão que é a seguinte: O que é uma “ausência” na vida de um filho? A princípio é quando alguém tem a oportunidade de estar presente na vida de uma criança, de participar não apenas dos momentos rituais, como festas, nas velas e bolos de aniversário, nas reuniões da escola ou no nascimento, mas no tempo cotidiano que corre largo, no dia a dia, no tempo das alegrias e dos tédios. E este alguém não aparece.
É claro que existem milhões de justificativas para a “ausência” ocorrer: Morar longe, falta de grana, doença, emprego, idade, etc. Casos e mais casos abundam e cada situação deve ser apreciada em seu contexto. Entretanto, ainda assim, existem pais que possuem condições “favoráveis” e não criam nenhuma ou raras oportunidades para ter momentos com seus filhos. Afinal, as oportunidades de convívio também podem ser criadas. E existem aqueles que quando criam tais oportunidades tudo deve girar em torno do gesto que eles estão fazendo para ficar junto da criança. Incluindo aqui, os pais que vivem sob o mesmo teto com suas companheiras e que ainda assim deixam tudo o que é “doméstico” a cargo de suas esposas e namoradas.
Uma “ausência”, portanto, é também quando uma mãe que cuida deve explicar para o filho porque seu pai nunca vem, ou porque ele só aparece de vez em quando. Explicar porque o pai não existe na vida dele ou dela. Além do trabalho de cuidar todos os dias, de fazer acordar, de alimentar, de trabalhar para pagar alguém pra cuidar da criança e de permanecer uma pessoa agradável e digna para o seu filho que afinal não tem “culpa” do pai que tem. Ainda existe o trabalho relacional e emocional de explicar a ausência do outro. São dois trabalhos aqui, o de cuidar e o de dar explicações. De mediar à ausência, as perguntas, as dores. Além de ficar com uma série de responsabilidades sozinhas alguém ainda tem que dar conta do rastro deixado por outros. E ninguém aqui está falando de traumas, estou apenas registrando que a “ausência” de alguém no circuito do cuidado demanda que a pessoa encarregada do cuidado dê conta do não comparecimento do outro de maneira objetiva na vida da criança e para a criança.
Mas não é só isso, porque ademais se espera que a mãe que cuida deva não somente “cuidar bem” do filho como manter “a imagem do pai” íntegra. Lisa. Isso é o esperado de uma boa mãe, de uma boa mulher, de uma boa sociedade. Suponho que sofrer calada é então o que permite a boa imagem da boa sociedade. É possível também ganhar um bônus simbólico por ser uma mãe boa e que cuida resignada de sua condição, daí que viramos as “lutadoras”, “guerreiras” e “batalhadoras”. E como ninguém gosta muito de passar recibo de que “tá sentindo falta do pai” (porque fica parecendo que é recalque e não o fato incontestável de que um pai deixou de cumprir com uma expectativa de parentesco) ergue-se a cabeça e segue-se em frente, sufocam-se os prejuízos e vai à luta. É assim que todo trabalho de cuidado vira virtude. Quantas mães virtuosas! Porém, de que valem as “virtudes” diante da desigualdade cotidiana? Quantas virtudes femininas serão preciso para permitir que alguns tenham o tempo livre para ganhar mais, dormir melhor e ocupar o mundo enquanto outras trabalham para ganhar o título não remunerado de “batalhadora”? Pois, uma característica dos regimes autoritários é fazer aparecer como “virtude” e “mérito” o que se trata de um esquema bem montado de dominação e violências com prejuízos entre homens, mulheres, crianças e em especial, para as mulheres negras e pobres que são quem cuidam dos filhos dos outros por baixos salários.
É quando este alguém, que quase nunca vem, aparece, e ainda por cima chega com cobranças, julgamentos e tiranias. Sim, existe uma tirania na dinâmica da “ausência”. Sabe aquele ditado? “Mal entrou no ônibus e já quer sentar na janela!”. É mais ou menos assim que estes pequenos tiranos se comportam: “Como ela está magra? não tá comendo direito! Você tem que forçar!”. “Mas de novo? Resfriado? Quando ele estiver bom você me entrega”. “Ele pode até ficar comigo, mas eu não sei se tenho comida pra dar”, “Ih, essa semana não vai dar pra pegar não, quem sabe na próxima, mas também tenho que ver no dia”, “Pra que eu tenho que pegar ele? Pra você sair à noite ou pra eu ficar com ele?”. É assim, quando chegam, chegam tocando o verdadeiro terror na vida alheia.
Se conselhos bastassem, poderíamos indicar: Se você está tão distante, procure se inteirar dos últimos acontecimentos da vida da criança, procure saber o que ocorreu na sua ausência, procure colaborar e não apenas criticar e apontar os pontos frouxos. Pode chegar, mas chega devagar e de preferência sem violências. Porque se o cuidado se faz de certa participação no cotidiano, é justamente a participação deste cotidiano que gera a legitimidade de quem cuida. Quem está fora do circuito de cuidado não pode querer gozar da mesma legitimidade de quem está dentro. Para ter legitimidade, participe, do contrário, colabore e de preferência, sem tiranias. Seria um bom começo de conversa.
Mas o debate da “ausência” é um debate complicado de se fazer e o buraco é mais embaixo da superfície dos conselhos possíveis. Porque se alguns pais são totalmente ausentes (não aparecem nunca e sequer comparecem com a pensão alimentícia) outros, apesar de todas as “facilidades” dadas pelas mães para que eles participem, mesmo assim, por diversos motivos, não se dedicam a preencher este território aberto. E aí vêm as questões e angústias que toda a pessoa que passa por isto conhece bem: “Devo cobrar amor de um pai?”, “Como vou obrigar alguém a cuidar do meu filho?”, “Devo ficar insistindo em uma coisa que se não for por livre e espontânea vontade pode ser feita de mau gosto ou por obrigação?”. Uma avalanche de questionamentos perturbam a cabeça da mãe e de seus familiares que acompanham o desenrolar das cenas. A pessoa pensa e repensa: “Se for de má vontade, vai acabar dando tudo errado”, “Não vou obrigar alguém a amar o meu filho”. E ao tentar uma participação do pai, surgem as brigas, os desentendimentos, as incompreensões mútuas e a mãe se pergunta: “Vale a pena? Tudo isto pra obrigar uma coisa que a pessoa deveria querer por si própria!” Vem o desânimo. E tudo volta à estaca zero. E por isto, muitas mulheres simplesmente cansam de fazer contato com os pais de seus filhos. Elas simplesmente cansam de tentar fazer com que os homens compareçam em uma atividade que, qualquer pessoa que tem contato sabe que quanto mais participação e colaboração, melhor. Elas muitas vezes desistem. E assim se libertam e proliferam os “pais ausentes”.
E o mundo gira.
Mas o que eu quero dizer com isto? É basicamente que existem situações nas quais as pessoas deixam o caminho livre para o pai participar e mesmo assim não existe um engajamento mínimo. Da mesma forma que existem mulheres que dificultam a participação masculina no cuidado (até porque a relação de apego entre crianças e mulheres é um fato histórico, culturalmente construído e bem sedimentado) existem por outro lado, e às vezes não no mesmo “lado da moeda”, muitos homens que não se ocupam dos cuidados dos filhos como forma de punir as mulheres ou de se desobrigar de um trabalho, apenas. Porque para muitos homens ainda é mais fácil se desobrigar da paternidade do que assumir este trabalho, este cotidiano. Assim, eles seguem longe do cuidado de alguém e o máximo que se pode exigir é uma pensão alimentícia. Pensão esta que é um objeto de fantasia, pois se imagina que as pessoas ficam ricas com o “grande negócio” que é ter um filho. Pois, filho não é negócio. Pensões milionárias são parte de um produto artificial das novelas e talvez realidade pouca de alguns personagens que alimentam o imaginário nacional. Quem se deixa levar no canto desta sereia está por fora, à maioria das batalhas das pensões alimentícias dos juizados brasileiros não chega nem a metade de um salário mínimo.
E aí, eu gostaria de esclarecer alguns pontos obscuros que a feitiçaria do amor romântico faz tornar verdade ainda que o cotidiano do cuidado mostre o contrário. “Devemos cobrar amor?”. O cuidado de alguém deve ser obrigado ou deve partir da “vontade humana”? Vamos por partes. Se a gente considera que o cuidado de uma criança é feito só de momentos extremamente amorosos e cândidos, que o amor emana da pureza e da volição humana, o lógico seria afirmar que não, o amor não deve ser cobrado porque afinal, ele é um sentimento que deve “partir de dentro”, e apenas ser sentido, apenas vivenciado em toda sua “verdade”, sem coações ou constrangimentos. Porque cobrar amor de quem não tem pra dar? Já que este é um sentimento independente de força ou obrigação. Se concordarmos com isto, não temos mesmo como cobrar um pai a amar o seu filho e daí cada um que dependa do amor que alguém puder dar pra uma criança. Certo? Errado. Porque o cuidado de alguém, o estar junto, o provimento de necessidades básicas, de saúde, de dinheiro, de tempo, de atenção, de competências e recursos não é feito só de amor, mas de todo um conjunto de intervenções e invenções que chamamos hoje de “cuidado”. Dar banho, comida, conversar com uma criança, ser afetado pela vida do outro, se dividir entre cuidar e trabalhar, tudo isto não depende “apenas” de amor, mas se refere também a uma atividade, uma atividade laboral, uma potência, um trabalho de investimento de energia, de tempo, dinheiro e também de sentimentos. O cuidado é uma mistura de deveres, trabalhos e afetividades. O que quero dizer é o seguinte: se é verdade que “quem ama cuida”, o cuidado na prática não se faz apenas de amor, não se faz apenas do “livre arbítrio”, mas se faz da urgência de que é preciso fazer algo para outro alguém, se faz do trabalho de uns em relação a outros. A necessidade e a consideração com o outro é o que motiva em grande parte os esforços do cuidado. E é claro que se houver carinho, paciência e doses de amor tudo fica realmente mais gostoso, surpreendente e suportável. A simples compreensão de que o cuidado de alguém não depende apenas do amor de uns, mas depende do trabalho de criação de alguém, da formação de uma pessoa, já desmonta todos os argumentos da necessidade exclusiva de ter ou não ter que amar alguém para se implicar com as necessidades da vida. Ademais, o amor não é um corredor delirante de experiências positivas em si, o amor também é construído, estimulado, testado, arriscado. O amor não é feito somente de delícias, mas de situações de conflito, de desejo e de repulsa. Cabe tudo mais no amor que somente amor. E de que vale tanto amor se não é possível se fazer presente na vida de alguém?
E aí que entramos no seguinte ponto: Cuidar pode ter amor ou não, mas antes de tudo é também o reconhecimento de que alguém precisa de outro alguém, de que existem coisas maiores do que a “vontade humana”, de que existem coisas maiores do que a “liberdade” de cada um para amar quem quiser, pra fazer o que quiser, pra sair e “abandonar” seja quem quiser. Pelo menos no terreno das crianças que nascem com considerável dependência de outro alguém. E durante seu crescimento, precisam de pontos de apoio, precisam de partilha, de atenções múltiplas e que, sobretudo não dependam exclusivamente do trabalho das mães. O cuidado de uma criança lembra que não somos sujeitos “livres e independentes” uns dos outros, mas que estamos todos implicados em relações. E nesse ponto, incluímos a necessidade de creches públicas e de dispositivos coletivos que são fundamentais para que a partilha do cuidado seja o quanto melhor distribuída.
Se existem mulheres hoje que estão chamando a urgência dos homens no cuidado, não é porque elas acham que seus filhos vão crescer “degenerados”. Não é porque elas não conseguiram matar Édipo e vivem assombradas pelos fantasmas do “familialismo”. Ainda que convenhamos, Édipo é bicho ruim de matar, mesmo, ainda mais quando esta é uma tarefa pra mãe e criança fazerem sozinhas enquanto a água do café tá transbordando na cozinha… Daí que é preciso sempre criar outros territórios… Outras parcerias e redes. Mas não é por conta de nenhuma imagem de família que a gente está falando do trabalho de cuidado. Existem muitas formas criativas e inventivas de se tecer o cuidado para além da figura paterna e materna derivada do que entendemos por “natureza”. Mas ao mesmo tempo, existem muitos homens que sustentados pelas diversas estratégias múltiplas de cuidados feitas por outras e outros (incluindo aí, padrastos, tios, avôs e meninos) se acostumaram a fazer apenas o que reza o costume, a saber, “pagar a pensão e olhe lá”. E se esta estrutura existe, falar dela não é falar de uma ideia de família, mas é falar das relações de gênero, de convívio, de intimidade e poder que permitem que historicamente o cuidado de alguns recaiam sobre outros e que aos homens reste a rua, a política e as decisões “urgentes” sobre o mundo.
E quando couber, um beijo nas crianças.
Leia tabém:
- Pai quando dá
*Eu e coletivo FEMMATERNA agradecemos imensamente a todas as pessoas, homens, mulheres e filhos que contribuíram com a campanha “Pai quando dá” e que estão mobilizando nossas intervenções. Contatos: [email protected]
Camila Fernandes
Camila Fernandes é doutoranda em Antropologia no Museu Nacional/PPGAS/UFRJ e estuda o compartilhamento do cuidado de crianças. Email de contato: [email protected] Ou, para quem quiser colaborar mais com esta discussão escreva para: [email protected]