E se não fossem os negros?

Roberto da Matta

Não haveria esse futebol maravilhoso que renasce em cada Copa do Mundo

É do brasilianista que mais entende de Brasil, o professor Richard Moneygrand, essa indagação provocadora. No Brasil, para assistir ao que considera “a mais bela atividade esportiva jamais inventada”, ele chama minha atenção para a presença dos negros. “São aproximadamente 195!” Diz entre o enfático e o venturoso, explicando que teve o cuidado de classificá-los com olhos brasileiros, porque se os visse na perspectiva americana dos rednecks (os racistas cuja adjetivação tem origem no seu pescoço — neck — avermelhado pelo sol da labuta manual e humilde, semelhante à dos negros que eles detestam), o número seria maior.

Contei, diz Moneygrand, seguindo a aparência, a “marca” e não a “origem”, como distinguiu num estudo realmente clássico e protoestruturalista o sociólogo Oracy Nogueira, ao revelar que, no Brasil, o contexto e o posicionamento social poderiam englobar a cor. Algo diverso do caso americano, no qual a descendência, e não a aparência, era inabalável. No Brasil se podia ser preto ou branco ao mesmo tempo; nos Estados Unidos, não. Lá havia o fenômeno da “passagem”, porque pessoas de pele clara, mas com ascendência negra, continuavam negras.

Tomei um gole demorado do meu Joãozinho Andarilho, renovei a dose do meu amigo e ele continuou.

Curiosa inversão. O país no qual a igualdade é um valor torna-se hierárquico quando se trata de classificar os “outros” — negros, hispânicos, asiáticos etc; ao passo que vocês, imoralmente tolerantes com a desigualdade, tornam-se flexíveis quando se fala de etnias. Aliás, minha estatística viria abaixo porque um negro nomeado capitão do time, digo, do mato — vejam aquela famosa gravura do Rugendas — torna-se automaticamente branco! Ele volta, é claro, a ser negro quando faz algo contrário às etiquetas que nem mesmo vocês entendem completamente. Mas o intermediário (com suas ambiguidades) tem um lugar no Brasil.

Insisti com Moneygrand para voltarmos à questão inicial.

Ele foi direto: sem negros, mestiços e mulatos não haveria esse futebol maravilhoso que renasce em cada Copa do Mundo. Foram vocês, brasileiros, que a partir de 30 mulatizaram o futebol mundial, colocando-o na Ásia, no Oriente Médio e na África. Mas o termo “mulatizar” é preconceituoso. O que houve, de fato, foi uma democratização agenciada pelo jogo: um jogo que exige 22 jogadores, fora os árbitros. Era muita gente branca para um Brasil carregado de mestiços — de gente de todas as cores. O Brasil cosmopolitizou o universo do futebol, o qual exige o talento que iguala, apesar de suas resistências hierárquicas — como no vosso desgastado, mas constitutivo, populismo —, que permanece como um embaraço. Você, meu caro, falou disso mais e melhor do que nenhum outro.

Feliz com o reconhecimento — quem não fica? —, tomei mais gole e comi mais um pastel de camarão.

Moneygrand prosseguiu com o ímpeto do time da Holanda, que tem seis jogadores negros. Essa presença africana era impensável no passado. A França, um dos países mais racistas da Europa, tem 11, e a Bélgica, oito negros! Eu fico feliz vendo esses descendentes institucionais das potências que repartiram a África jogarem igualitariamente partidas com suas ex-colônias. Dir-se-ia que não é muito, mas já alguma coisa. E é exatamente essa “alguma coisa” que muda o mundo.

Veja o caso do basquete americano, continuou Moneygrand. Hoje ele é um esporte negro, mas era proibido aos afro-americanos. Somente americanos nascidos nos Estados Unidos e filhos de pais caucasianos tinham o direito de jogar na liga All-American Basketball Alliance. Do mesmo modo, não era dado a negros e brancos frequentar a mesma piscina, o que explica a falta de campeões de natação negros.

Como revela Gunnar Myrdal no seu não lido e não traduzido no Brasil “An american dilemma” (publicado em 1944!) — falou um veemente Dick Moneygrand —, os negros se destinavam a certas atividades, reforçando o odiento estereótipo escravista de que seriam parte de uma “raça” inferior, primitiva e descontrolada. Deles seriam o crime, a dança, a prostituição, o canto e o atletismo. Eram proibidos de cantar em ópera. Jesse Owens foi o inesperado campeão olímpico em 1936, diante dos olhos arianos dos nazistas mas, como ensina Myrdal, nenhuma celebridade negra deveria dar palpite ou opinião fora de sua atividade. Nem mesmo se fossem escritores ou atores. Numa sociedade segregada justamente porque era competitiva e inevitavelmente meritocrática, o código racial, pretensamente biológico, bania os negros mais talentosos da vida pública. O sinistro código da raça englobava o do civismo liberal de Jefferson e Madison.

E se não tivéssemos os negros? Insisti.

Ah! Disse Moneygrand, sem o abrasileiramento que trouxe os negros, o futebol estaria morto. Como tudo que é puro, demasiado puro…

(A partir da próxima semana, fico concentrado, reunindo forças para o próximo campeonato, na primeira quarta-feira de agosto).

Roberto DaMatta é antropólogo

 

Fonte: O Globo

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