É tempo de celebrar a arte produzida por profissionais negros

Semana passada eu tive o prazer de assistir à pré-estreia do filme Medida Provisória, primeiro longa-metragem dirigido por Lázaro Ramos. Que dia especial, potente, representativo, inebriante. A obra conta com roteiro de Elísio Lopes Jr e é baseada no livro Namíbia Não!, de Aldri Anunciação.

O filme se passa em um Brasil futuro, e teoricamente distópico, em que uma medida provisória determina que as pessoas negras, agora chamadas de melanina acentuada, retornem para a África. O órgão responsável por executar tal plano é o sugestivo Ministério da Devolução.

É um filme produzido majoritariamente por pessoas negras, tanto na frente quanto atrás das câmeras. Taís Araujo, Seu Jorge e Alfred Enoch protagonizam a história, com interpretações impecáveis. No elenco, nomes como Diva Guimarães, Jessica Ellen, Dan Ferreira, Indira Nascimento, Hilton Cobra, Flávio Bauraqui, entre tantos outros grandes, também dão vida a essa obra histórica, que ainda tem as participações mais que especiais de Emicida, Conceição Evaristo, Maíra Azevedo (Tia Má), Flávia Oliveira, Luana Xavier, Raphael Logam e muitos outros artistas e intelectuais. 

Quando falei sobre o filme em minhas redes sociais (@jaquefraga_ e @livronegrasou no Instagram), uma pessoa mencionou que esqueci de citar Adriana Esteves. Não, não foi esquecimento. Eu admiro o trabalho de Adriana, Renata Sorrah, Mariana Xavier e mais atores brancos que participam da trama, mas é que aquele e esse texto tem como foco as pessoas negras envolvidas na produção.

Aliás, podemos dizer, brincando e falando sério ao mesmo tempo, que praticamente toda pessoa negra com alcance nacional faz parte do elenco. E todas as outras devem ir às salas de cinema assistir e aplaudir. É tempo de celebrar a arte produzida por profissionais negros.

Eu poderia passar horas escrevendo sobre esse filme, sobretudo e sobre tudo o que ele representa. Sobre cada detalhe e referência. Sobre a reverência e homenagem a figuras eternas e inesquecíveis como Ruth de Souza e Elza Soares. Sobre as cenas de romance, humor, suspense. Sim, é uma obra que consegue reunir todas essas nuances e estilos. 

Durante a sessão de pré-estreia no Recife, realizada no histórico e icônico Cinema São Luiz, provavelmente um dos poucos cinemas de rua ainda em operação no Brasil, tive a alegria de conversar com Lázaro e de vê-lo dizer, ao receber o livro Negra Sou, primeiro livro que escrevi, que as histórias presentes na obra são nossas. Um entusiasmo e um incentivo tão sinceros que me contagiam até agora ao lembrar. 

Jamais esquecerei o sorriso que ele abriu e o carinho que demonstrou ao ver o livro, olhar a capa, ler o título. Negra Sou: a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho é meu livro de estreia, lançado em 2019, com segunda edição publicada no ano passado. A obra já me deu muito orgulho, como ser indicada ao Prêmio Jabuti e conquistar a menção honrosa do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo e do Prêmio Maria Firmina de Literatura. Além disso, tive a honra de ver a série de reportagens ser um dos trabalhos vencedores do Prêmio Antonieta de Barros Jovens Comunicadores Negros e Negras.

Também jamais esquecerei o quão feliz e emocionante o dia da pré-estreia de Medida Provisória foi para mim. E pude dividi-lo com minha amada irmã, Jô, uma das pessoas que mais amo na vida. Ela, assim como minha amada irmã, Leninha, e meu amado irmão, Adriano, me ajudaram a ser quem sou. É minha parceira, um de meus alicerces, e espero conseguir retribuir o tanto que ela faz por mim. Que eles fazem, aliás. E aqui rendo também, uma vez mais, toda a minha homenagem, amor e agradecimento a minha amada mãe, Neide, e ao meu amado e saudoso pai, Jair. Eu sou porque vocês são. Eu sou porque nós somos.

Assistir a esta pré-estreia, ver o São Luiz ocupado quase 100% por pessoas negras foi lindo, incrível e emocionante. Foi histórico, está sendo histórico, estamos vendo a história sendo feita. E é uma história contada por nós. Mais uma vez, como sempre friso, é importante que falemos com a nossa própria voz.

A cada cena, nós, enquanto público, refletíamos e vibrávamos. Foi assim com as histórias de amor, foi assim com as histórias de humor, como uma que, de forma maravilhosamente leve e arrancando gargalhadas sinceras, um personagem negro de pele clara afirmou ser branco e o amigo de pele escura logo alertou: “Onde que tu é branco? Tu é preto, pô”. Segundos de debate sobre colorismo que fizeram o riso tomar conta da plateia.

Plateia essa que também vibrou e aplaudiu como se não houvesse amanhã a primeira cena com a participação de Emicida. E ele vem para ensinar que o futuro se faz com livros e não com armas. Plateia que também torceu muito para que o final resistente e feliz de Capitu e Antonio acontecesse. Será que aconteceu? Só assistindo ao filme para descobrir.

Minha irmã fez um comentário que também me fez refletir: “As pessoas sendo capturadas à força para serem enviadas à África, tentando se defender, fugir e se proteger, deve ter sido como no tempo da escravidão, quando arrancaram as pessoas negras de suas terras”. Forte, né?! Forte e doloroso lembrar como a história aconteceu.

No início desse texto, eu falei que estávamos refletindo sobre uma trama teoricamente distópica. Disse isso porque em uma entrevista recente ao Brasil de Fato, Aldri Anunciação, autor do livro lançado em 2012 que inspirou o filme, disse: “Na hora que foi feito o livro eu tava muito certo de que era uma distopia. De que era algo praticamente impossível de acontecer. Acontece que as obras de arte vão sofrendo mutações ao longo do tempo, a obra de arte é uma conexão com a realidade. Ela existe por conta de uma realidade que tá ali.”

Em uma de suas falas, o personagem André, jornalista interpretado por Seu Jorge, questiona: “Como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar a esse ponto? Como é que a gente riu disso?” Pois é, trazendo para nossa realidade e nossos contextos políticos e sociais, é possível fazer as mesmas perguntas.

Medida Provisória (MP), no universo político-legislativo, como explica o artigo 62 da Constituição Federal, é um instrumento com força de lei, adotado pelo presidente da República, em casos de relevância e urgência para o país. A MP produz efeitos imediatos, ou seja, já vale ao mesmo tempo em que tramita no Congresso, mas depende de aprovação da Câmara e do Senado para que seja transformada definitivamente em lei. Inclusive, é engraçado e interessante entrar hoje nos sites de busca e ver que os primeiros resultados sobre o termo Medida Provisória agora são sobre o filme.

Confesso que ao saber o enredo do filme tive meus questionamentos, tenho resistido a histórias que pautem o sofrimento negro. Mas Medida Provisória não é sobre isso. É sobre resistência, potência, irmandade, ancestralidade. Sabia que podia confiar em Lázaro, Taís e todo o grande afrobunker (quem assistiu ou vier a assistir pegará a referência) que está por trás e diante do filme. Novamente, é tempo de celebrar a arte produzida por profissionais negros.

Durante a sessão de pré-estreia no Recife, também tive o prazer de conversar com Alfred Enoch, outro ser iluminado e de simpatia contagiante, famoso por produções internacionais como How to Get Away with Murder (Como defender um assassino) e Harry Potter. Inclusive, deixo aqui o convite para que vejam mais detalhes e registros sobre esse encontro nos meus perfis no Instagram (@jaquefraga_ e @livronegrasou).

Aproveito também para reforçar o que disse a Lázaro: Obrigada por ser quem é e por fazer tanto por nós. Você é referência e inspiração e fez um filme que já está na história. Esse nosso encontro ficará para sempre na minha memória.

Assistam ao Medida Provisória. O longa estreou em 150 salas de cinema do Brasil na última quinta-feira (14) e, como disse Taís Araujo, lotem os cinemas na semana de estreia para que o filme fique mais tempo em cartaz.

Merecemos isso!

Sigamos criando e ocupando espaços.


Sobre a autora

Jaqueline Fraga é escritora, jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco e administradora pela Universidade de Pernambuco, com MBA em Comunicação e Jornalismo Digital pela Universidade Cândido Mendes. Apaixonada pela escrita e pelo poder de transformação que o jornalismo carrega consigo, é autora do livro-reportagem “Negra Sou: a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho”, finalista do Prêmio Jabuti, e do “Big Gatilho: um livro de poemas inspirado no BBB 21”. Também é coautora do livro “Cartas para Esperança”. Escreve por profissão, prazer e terapia. Escreve porque respira, respira porque escreve. Pode ser encontrada nas redes sociais nos perfis @jaquefraga_ (Instagram e Twitter) e @livronegrasou (Instagram).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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