Economista ensina finanças para a periferia com músicas do Racionais MC’s

Monise Cardoso, especial para o blog Mulherias

Por Flávia Martinelli, do Universia 

A economista Gabriela Mendes Chaves, de 24 anos, da escola NoFront Empoderamento financeiro (Foto- Acervo Pessoal)

Em uma sala no centro da cidade que é o principal polo financeiro do país, em pleno sábado, mais de 30 pessoas se reúnem para falar sobre dinheiro e consumo. Em comum, o grupo diverso tinha a conta no vermelho, o desejo de realizar sonhos e a experiência de vida que está nas rimas do Racionais MC’s, maior grupo de rap do Brasil. Faz todo o sentido, portanto, que os versos “Não é questão de luxo, não é questão de cor/ É questão que a fartura alegra o sofredor”, da música Vida Loka parte II, façam parte do material didático dos cursos de economia da NoFront Emporamento Financeiro.

Em 2018, quando começou a trabalhar no mercado financeiro, a economista e desde sempre fã de rap Gabriela Mendes Chaves, de 24 anos, passou a interpretar as letras de Mano Brown de uma maneira diferente. “Percebi o quanto os Racionais falavam de economia sob um viés não acadêmico, mas que tocava as pessoas. Eles falam sobre escassez, mas também de projetos de vida, de prosperidade”, lembra.

E foi assim que nasceu a NoFront, uma escola de educação financeira que tem mais de 90% do público formado por pessoas negras, 65% são mulheres e 60% têm ensino superior completo. “Temos muitos alunos que vieram de uma origem pobre, mas que embarcaram na alta de políticas públicas educacionais e conseguiram se graduar com bolsa”, diz.

O público da NoFront Empoderamento Financeiro é formado por 90% de pessoas negras e 65% de mulheres (Foto: Monise Cardoso/Blog MULHERIAS)

Para discutir finanças no Brasil, defende Gabriela, é preciso ir muito além do julgamento convencional dirigido a quem não tem controle do próprio dinheiro. Somos um dos países mais desiguais do mundo, com um histórico escravocrata que não pode ser apagado.

Por aqui, pessoas negras ainda ganham os salários mais baixos no mercado de trabalho e têm expectativa de vida média de 67 anos, contra os 73 vividos pelas pessoas brancas, de acordo com o Relatório Anual das Desigualdades Sociais, do Núcleo de Estudos de População da Unicamp, publicado em 2011. “Por vezes, um fenômeno como gasto excessivo ou ostentação tem como pano de fundo uma raiz emocional ligada à memória de escassez”, explica Gabriela.

A primeira turma da NoFront, em 2018, que também tem como sócio o cientista da computação Rodrigo Dias, de 42 anos, aconteceu no Terça-Afro, projeto desenvolvido no Parque Peruche, na Zona Norte de São Paulo. A aula atraiu a atenção de jovens e idosos e trouxe a certeza de que o método que criaram fazia sentido. “A discussão sobre genocídio e envelhecimento teve como base a letra da música ‘Negro Drama’. Na aula, um jovem de 16 anos revelou: ‘não sei nem se estarei vivo, por que vou planejar minha aposentadoria?”‘, lembra Rodrigo.

Em Negro Drama, o grupo Racionais MC’s canta: “Me ver preso, pobre ou morto já é cultural”. A faixa faz parte do álbum “Nada como um dia após o outro”, de 2002. Mais de 15 anos após o seu lançamento, a letra segue fatalmente atual. Segundo a edição do Atlas da Violência de 2019, 75,5% das vítimas de assassinato em 2017 eram indivíduos negros.

E vale lembrar que só agora, 30 anos após a formação do grupo, Mano Brown, dj KL Jay, Edi Rock e Ice Blue, integrantes do Racionais, vêm, enfim, recebendo o reconhecimento que merecem. Em 2018, a discografia do quarteto que, sem internet, conseguiu falar com todas as favelas do Brasil nos anos 1980, virou leitura obrigatória no vestibular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “O nosso objetivo aqui é encaminhar a reflexão que o grupo faz em relação à condição que as pessoas vivem para um processo de transformação. Aí entram as ferramentas da economia e da organização financeira”, explica Gabriela.

Entre o sucesso e a lama

A ostentação é tema frequente nas letras de rap, virou vertente de funk e faz parte do estilo de vida de uma parte da juventude periférica que consegue, mesmo que minimamente, ascender. Gabriela acredita que todo mundo tem desejos de consumo fora de seu padrão original – o dela é fazer compras em “supermercado de rico”. Aos risos, revela que passa horas na sessão de molhos, admirando a variedade de opções.

A mestranda em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC lembra que a raiz do seu fetiche pelas gôndolas elitizadas vem da infância, quando  descobriu que comida de gente endinheirada era diferente de comida de pobre. “Ganhei uma bolsa pra estudar em colégio particular e, num belo dia, serviram na merenda a batata com sorriso, a smile. Fiquei enlouquecida ao ver uma batata sorrindo. Ali eu descobri: rico come de outro jeito!”, conta.

Ao perguntar para os alunos qual era a ostentação de cada um, deixando claro que ali não haveria espaço para culpa ou julgamentos, diferentes respostas surgiram: “a minha é Danoninho!”, “ostento com roupa!”.  Janaína, de 46 anos, uma mulher negra de cabelos crespos, curtos, revelou: “minha ostentação é com aplique de cabelo”, riu. A maioria feminina da sala de aula recebeu o comentário com acolhimento e compreendeu perfeitamente o desejo. São esses detalhes que, enfim, mostram as particularidades de um curso pensado para a população negra.

A dinâmica das aulas estimula a troca de experiências entre os alunos que costumam ter muito em comum (Foto: Monise Cardoso/Blog MULHERIAS)

A turma também discutiu o que a ostentação representa para o cidadão periférico. Para alguns, a conclusão era de que o consumo traz a sensação de liberdade e aceitação, afinal, se a pessoa pode vestir determinada roupa, pode acessar determinados espaços. Para outros, torrar dinheiro seria como uma revanche; a oportunidade de se vingar de uma sociedade que orienta seguranças de lojas a perseguirem negros, em atitude desconfiada. “Tudo bem querer ter um celular de última geração, um tênis caro, uma coleção de perucas. A questão é refletirmos sobre como obter o que queremos sem lançar mão de comportamentos que não nos engrandecem no longo prazo”, afirma Gabriela.

O capitalismo tem suas regras e Gabriela repassa o funcionamento do jogo. A armadilha do consumo imediato, por exemplo, retira a chance dos menos afortunados de construírem metas e sonhos para o futuro. “É preciso mudar a lógica de que é impossível realizar determinadas coisas. O sistema faz com que investir pareça surreal para a maior parte da população, mas quando a gente mostra que dá pra investir com R$ 30, o jogo uda”, afirma.

Entre os mais de 500 alunos que já passaram pela NoFront, não faltam casos de sucesso. Gabriela lembra de uma jovem de 22 anos que chegou lá atolada até o pescoço em dívidas no cartão de crédito e,  hoje, um ano depois, está pagando o seu primeiro intercâmbio internacional.

Os próprios sócios têm uma história de antes e depois do empoderamento financeiro. Gabriela passou perrengue tendo que bancar a faculdade com cheque especial, mas hoje a jovem moradora do Taboão da Serra já fez quatro viagens internacionais. Rodrigo estava afundado em boletos quando foi buscar formação financeira; hoje compartilha os saberes financeiros com os amigos e os familiares. Sua mãe, uma senhora de 65 anos, diretora de escola pública, passou a viajar sozinha pelo país depois da formação.

Dicas da “fórmula mágica da paz”

A quem quer começar agora a resolver a vida financeira, Gabriela ensina que o primeiro passo é fazer um diagnóstico. É preciso colocar no papel quais são as suas receitas (o dinheiro que entra – salários, bicos e rendas extras), quais são as despesas obrigatórias (o dinheiro que sai com alimentação, saúde, educação etc.) e quais são as despesas opcionais (como TV a cabo, a cervejinha e o transporte por aplicativo, por exemplo). “Por vezes a gente não consegue lidar com as finanças por medo de olhar para os gastos como um todo. É a ideia de que o que os olhos não veem, o coração não sente. Mas é essencial traçar um desenho da sua situação”, explica.

O segundo passo é tomar as medidas necessárias. “Você pode reduzir os custos possíveis de serem reduzidos, tentar negociar dívidas e, finalmente, readequar os gastos para conseguir um plano de longo prazo que englobe investimentos”, esclarece  a economista.

Quando trabalhou em uma depositária que tinha em títulos financeiros o equivalente a três vezes o PIB do Brasil, Gabriela percebeu que há padrão de acúmulo de riqueza e de perpetuação de pobreza no Brasil. “Por vezes, as famílias negras até ascendem em uma geração, mas isso não se perpetua”, diz. O principal motivo é o racismo e sua estrutura de exclusão. “O sucesso financeiro de um familiar acaba virando exceção à regra. A falta de educação financeira passa pela falta de perspectiva de futuro que sempre nos foi negada.” Historicamente, são as famílias brancas que tiveram acesso a terras, crédito ou políticas para a construção de patrimônio. Aos negros, mal foi oferecido o prato de comida do dia.

Ainda assim, a economista reconhece que o aspecto econômico também foi uma estratégia de sobrevivência da população negra desde o primeiro negro liberto pela Lei Áurea. O empreendedorismo, muitas vezes motivado por necessidade e falta de acesso ao mercado formal, exigiu práticas de controle de gastos que fizeram mulheres criarem seus filhos e conquistarem suas casas ganhando, por vezes, o mínimo. Ou seja: ela recomenda colocar as contas na ponta do lápis, pesquisar para poupar, priorizar o que importa, coisas do tipo.

Ou, como diz Mano Brown na música “Vida Loka”: “Firmeza total, mais um ano se passando / Graças a Deus a gente tá com saúde aí, morô? / Muita coletividade na quebrada, dinheiro no bolso / Sem miséria, e é nóis / Vamos brindar o dia de hoje”.

Para saber mais sobre os cursos, acesse o site da Nofront Empoderamento Financeiro

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