É impossível que você não tenha ficado sabendo: o país foi sacudido na última semana pelo caso da gravidez de uma menina de dez anos de idade, estuprada pelo tio desde os seis e que enfrentou uma verdadeira saga para conseguir acessar seu direito ao aborto legal.
Desde a demora na justiça em conceder a autorização para a realização do procedimento, passando pela recusa do hospital local em realizar o aborto e culminando com uma intensa onda fundamentalista de ódio que, ao invés de problematizar o estupro e pedir punição para o responsável, passou a perseguir a menina e sua família na tentativa de impedir o aborto.
O Brasil tem uma média de 500 mil casos de violência sexual por ano e estima-se que apenas dez por cento desses casos são denunciados. 2018 teve um dos mais altos índices de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes: foram registrados 32 mil casos – 92% da violência é contra meninas, em sua maioria negras. Este ano, durante o isolamento domiciliar como medida preventiva à pandemia do coronavírus, o número de casos de abuso sexual infantojuvenil deve ser ainda mais elevado, já que algumas regiões do país apresentam aumento de 50% nas denúncias de violência doméstica e 40% nos casos de feminicídio.
A gravidez na faixa etária dos dez aos 14 anos é a que mais cresceu no Brasil nos últimos anos, segundo dados do relatório do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil sobre a implementação da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. E é importante dizer que nessa faixa etária a gravidez jamais deveria acontecer, pois a nossa legislação aponta que é estupro de vulnerável toda atividade sexual mantida com um ser humano menor de 14 anos de idade. Estupro. Então é inimaginável aceitar porque essas gravidezes seguem em curso quando a existência da gravidez é a inconteste prova de uma violência.
O estupro é uma violação de direitos. Manter a gravidez de uma criança, cujo corpo ainda está se desenvolvendo e não tem condições de suportar nem física nem psicologicamente essa gestação, é violação tão perversa quanto o estupro que a originou. No entanto a discussão foi em torno de condenar a menina, chamando-a se assassinar quando sua família opta por fazer valer o seu direito ao aborto legal – pois a nossa legislação determina que quando uma gravidez oferece perigo à da vida da mulher e ou é oriunda de violência sexual, é permitida a interrupção legal.
Durante quatro anos essa menina sofreu violência sexual. Durante quatro anos essa menina conviveu com sua família e sua comunidade sem que qualquer pessoa tivesse percebido indícios em seu comportamento dessa violência. E sem que a menina tivesse vivenciado uma educação que lhe permitisse identificar a violência e saber maneiras de pedir ajuda. Esse é um ponto sobre o qual ninguém fala. A responsabilidade da sociedade nesse processo.
Uma sociedade que se recusa a reconhecer a importância da educação sexual, é a sociedade que interdita que TODAS as pessoas aprendam a prevenir violências sexuais.
Com essa leitura rasa de que sexualidade é sexo e de que portanto educação sexual seria ensinar crianças pequenininhas a fazerem sexo, observamos nos últimos anos o fortalecimento de uma cultura falso moralista que impede o acesso de crianças e adolescentes, meninas e meninos a seus direitos sexuais, inclusive o direito a receber informações.
As crianças e adolescentes têm direitos. São filhas, filhos e também são cidadãs, e é desse lugar da cidadania que devem ser respeitadas em seu direito à informação segura, adequada e cientificamente produzida. Para aquelas famílias que dizem que essa educação sexual é responsabilidade da família, eu relembro: é na família e nas mãos de pessoas muito próximas a ela que as crianças são violentadas sexualmente.
Sexualidade não é sexo, é uma dimensão do humano. Dessa forma acompanha a nossa existência e é a dimensão responsável pela maneira como nos estruturamos em nossas relações afetivas, a conhecer e nomear seu corpo, a aprender sobre consentimento, privacidade, prazer, violência, redes de apoio, cuidado, agência. Aprender sobre sua sexualidade é fundamental para desenvolvê-la de maneira saudável e saber pedir e oferecer ajuda em casos em que isso não esteja acontecendo.
Proibir a implementação da educação sexual no Brasil é insistir na manutenção de uma cultura de estupro, que culpabiliza vítimas e é responsável pela violação sistemática de direitos de milhares de crianças e adolescentes e especialmente meninas todos os anos no Brasil.
A educação sexual é uma das mais potentes ações de prevenção de violência sexual, pois possibilita que crianças e adolescentes possam construir competências para atuarem na sua autoproteção.E no caso da ocorrência de violência, essas crianças contam com conhecimentos que lhes permitem buscar ajuda.
Diante de toda essa onda de ódio e horror, eu repito sem medo: é preciso educação sexual para prevenir violência sexual. E é urgente assegurarmos o direito ao aborto legal e seguro para as crianças grávidas, é preciso o aborto seguro para não morrer. Qualquer coisa diferente disso é perversidade e violação de direitos.