‘Depois de chorar muito, acabei dormindo no sofá. Acordei com ele dizendo: ‘Olha só o que você me fez fazer’
Por Malu Mancini Do Azmina
Em setembro de 2016 sofri violência física. E eu amava o agressor, uma pessoa que, por mais que já apresentasse certo comportamento agressivo, jamais podia imaginar que faria tudo aquilo comigo. No começo você não entende o que está acontecendo, não sabe o que fazer, se sente perdida, envergonhada, fracassada, uma mistura terrível de sentimentos. A vergonha do que os outros vão pensar toma conta de você.
Ele me espancou. Não ‘se contentou’ com um tapa no momento de uma discussão. Ele me chutou, me jogou contra a parede, me bateu com as costas da mão, me mordeu, me imobilizou em cima da cama e me deu diversos socos no rosto, na orelha, e me estrangulou até eu perder o ar. Quando viu as marcas no meu rosto, estourou a rede de proteção do quarto e, já subindo na janela, ameaçou se jogar — mas, claro, não fez
Fiquei transtornada. Eu, Maria Luiza, assistente social. Eu, Malu, 33 anos, guerreira e forte aos olhos de algumas pessoas, me olhava no espelho e não acreditava naquelas marcas horríveis que dominavam meu corpo.
Não entendia como alguém com quem estava construindo uma família havia feito algo tão terrível.
Havíamos casado há uns seis meses, estávamos pensando em filhos nessa época, fazíamos planos. Como eu ia encarar meus pais, meus amigos? Não consegui sair de casa naquela noite, tive medo, vergonha… Depois de chorar muito, acabei dormindo no sofá. Acordei com ele dizendo: ‘Olha só o que você me fez fazer’. Levantei, indignada, começamos a discutir de novo, e ele partiu pra cima de mim. Me estrangulou no sofá. Quando parou, eu gritava que ia chamar a polícia e ele dizia ‘vamos juntos então’.
Ele escondeu as chaves, inclusive a do meu carro, que ele gritava que era dele (quando casei já tinha esse carro, comprado com o suor do meu trabalho) e dizia que eu só sairia com ele. Neste momento foi me dando um medo absurdo e, quando achei meu celular, pedi ajuda pra uma amiga, que veio me tirar de casa. Saí com a roupa do corpo e os cachorros no colo.
Cheguei na casa dos meus pais um pouco depois de ele passar por lá me procurando, com o meu carro. A dor maior foi ter que encará-los naquele momento. Eles logo me levaram pra Delegacia da Mulher — e aí o sofrimento piorou. Acompanhada de meu pai e minha prima, cheguei à Delegacia da Mulher do Centro, já que a próxima à minha casa estava fechada (era um feriado). Não tinha fila, entrei na sala do escrivão. Rapaz simpático, educado e atendimento bacana… a porta da sala aberta, pessoas entravam e saiam de lá pra pegar algum arquivo, para dar recado pro escrivão, ou simplesmente para dar um ‘oi’.
Enquanto isso, do lado de fora, meu pai recebia milhões de mensagens do agressor ofendendo a ele, a mim, dizendo inclusive que somos ‘um bando de cuzão’ por estarmos na delegacia prestando queixa, que ele seria prejudicado por isso e que íamos ‘foder’ com a vida dele.
Neste dia não pude fazer solicitação de medida protetiva, pois só a delegacia que fica com o seu caso, ou seja, aquela perto de casa que estava fechada, faz. Fui orientada a dar entrada no pedido no dia seguinte, caso eu achasse necessário. Aí você me pergunta: te acolheram de alguma forma? Te orientaram sobre os serviços de acolhimento do município? E eu te respondo: não!
Fui fazer exame de corpo de delito no IML, já que os hematomas e inchaço estavam recentes. Lá estava mais um homem pra me atender com a porta aberta. Senti mais vergonha, mas cheguei à conclusão de que tinha que pedir pra fechar a porta e tirar a roupa, já que meu corpo estava quase todo marcado. Saí de lá atordoada, mas ainda tinha que ter forças para ir até a delegacia novamente no dia seguinte para solicitar a medida protetiva.
Estávamos todos com receio do que o agressor seria capaz, até porque ele não foi trabalhar esses dias e não parava de mandar mensagens, com voz de embriagado.
Na delegacia, no dia seguinte, a escrivã me pediu para acompanhá-la até a sala dela. Lá foi ela me colocar na cadeira e iniciar o atendimento, claro que com a porta aberta, e daquele mesmo jeito — pessoas passando pra dar ‘oi’, ou entrando na sala pra pegar alguma coisa.
Durante a solicitação, tudo passou pela minha cabeça: os filhos do agressor, a família dele, a mãe dos filhos dele, até mesmo ele. E continuei com dificuldade de pensar em mim, como mulher. Mas, com uma força que não sei de onde veio, consegui finalizar e voltar pra casa pra chorar mais.
Agora, pronto! Fiz a ‘pior parte’, que é denunciar quem você ama por ter te arrebentado.
Vamos pra parte de encarar a sociedade, passar por cima de todos os seus sentimentos, suas inseguranças
Quando comecei a contar pras pessoas queridas, senti o apoio, amor, carinho e respeito delas. Isso foi me fortalecendo muito, recebi visitas, contei a história umas 30 vezes, chorei, coloquei pra fora aos poucos e fui me sentindo mais leve e forte. Comecei a perceber que contar pras pessoas tirou uma parte do peso de mim. Essas pessoas queridas não me julgaram, apenas me acolheram, e era exatamente daquilo que precisava: abraço, ombro, ouvidos, carinho e um ‘tamo junto nessa!’.
A primeira semana foi muito dolorida. Fui à
As marcas físicas saíram depois de uns 12 dias. Voltei a trabalhar, a reencontrar pessoas. Mas foi duro saber que ele estava vivendo a vida dele normalmente, indo para os bares com o meu carro, passeando com as roupas compradas no meu cartão, colocando crédito no celular com o meu cartão, vivendo no apartamento que estava alugado no meu nome, com praticamente tudo meu lá dentro, postando nas redes a felicidade em estar solteiro e cheio de mulheres ao seu redor.
Comecei então a sair e a encontrar amigos que estavam mais distantes, que me viam e perguntavam: ‘Eaê, Malu, cadê o marido?’, ‘Eaê, Malu, como está o casamento?’
Comecei a responder como a Malu sincera de sempre: Separei! Ele me bateu, denunciei e separei! A cada resposta um choque, indignação. Enquanto isso nem a medida protetiva ele recebeu para começar a valer e eu continuei desprotegida pela lei.
Mais ou menos um mês depois, ainda sem a medida protetiva, o agressor resolveu desocupar o apartamento. Quando entrei lá, foi outro choque: tudo muito sujo, coisas minhas quebradas, embalagens abertas de camisinha ao lado da cama, peças de roupas rasgadas e muitos objetos seus desaparecidos.
Eu ainda não tinha visto um outro tipo de crueldade das pessoas. Comecei a ouvir comentários como ‘o que você fez pra ele?’, ‘não é possível, você deve ter feito alguma coisa pra ele ter feito isso’, ‘ele tava bêbado?’ E essas falas começaram a me incomodar, porque ninguém merece essa violência e nada justifica tudo que passei. São falas machistas enraizadas na sociedade. Quando começava a falar sobre isso na mesa do bar, por exemplo, percebia os olhares machistas e ouvia críticas como ‘Não precisa se expor assim’.
Mas falar de tudo que aconteceu me fortalece como mulher. Quero gritar com a dor de quem já passou por tudo isso e ainda tem muito que passar por conta de o processo judicial ser longo e nem ter começado ainda. Quero que as mulheres se unam, pois tenho certeza que juntas somos extremamente poderosas. Vamos derrubar muitos preconceitos. Vou, sim, contar minha história sem ter vergonha.
Quem tem que ter vergonha é ele.“