Eliane Dias para a PODER: “Se a gente solta a voz e diz o que precisa ser dito o que sobra são quatro tiros na cabeça”

Eliane Dias nasceu nos fundos de um barraco, morou na rua até os oito meses e começou a trabalhar ainda criança. Hoje é uma das principais vozes na defesa das causas negra e feminina do Brasil, e circula com desenvoltura entre políticos e artistas. Advogada, é também produtora cultural e empresária do Racionais MC’s, o maior grupo de rap do país, do qual seu “companheiro” Pedro Paulo, como ela se refere a Mano Brown, é o principal integrante

Por Dado Abreu Do Glamurama

Foto: Paulo Freitas

“Boa tarde, senhora. Seja bem-vinda. Sou uma grande admiradora do seu trabalho, parabéns. Estamos juntas na luta.” A cordialidade e a forma espontânea com que a recepcionista do A Figueira Rubaiyat atende Eliane Dias para o almoço com PODER revela o prestígio alcançado pela advogada. Uma das principais defensoras dos direitos das mulheres negras no Brasil, Eliane tem na militância uma das facetas mais atuantes de sua multiplicidade – por ela se tornou popular e passou a frequentar rodas de artistas a políticos, sempre com desenvoltura. Ela também é mãe, empreendedora, coordenadora da ONG SOS Racismo, produtora cultural e empresária do Racionais MC’s, o maior grupo de rap do país, no qual seu “companheiro”, como ela se refere a Pedro Paulo, popularmente conhecido como Mano Brown, é o principal integrante.

Estamos em uma terça-feira, menos de uma semana após o assassinato com ares de execução da vereadora carioca Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes. Além de triste e revoltada, a notícia vinda do Rio de Janeiro parece ter deixado Eliane um tanto vigilante. Antes de sentar-se à mesa com a reportagem de PODER, em um canto do restaurante, ela escolhe ficar de frente para os outros clientes do local. “Acho que é instinto de defesa”, conta. “Se a gente solta a voz e diz o que precisa ser dito o que sobra são quatro tiros na cabeça”, completa, em referência direta ao número de disparos que mataram a companheira carioca.

O princípio da sobrevivência, presente desde a infância, é também origem para suspeição. Eliane Dias veio ao mundo em um pequeno quarto escuro na zona sul de São Paulo. Poucos dias antes sua mãe havia sido colocado para fora de casa pela avó, que não aceitou a gravidez e contou com o consentimento do avô para jogar aos leões a menina prenhe de 16 anos. “Disse que isso era assunto de mulher”, ironiza. Depois do parto solitário no barraco emprestado, mãe e filha foram morar na rua e vagaram oito meses sem rumo até uma tia encontrá-las e abrigá-las, às escondidas, na casa em que trabalhava como empregada doméstica. “Desde sempre eu tive que me tornar uma pessoa extremamente forte para poder me defender. Me tornei isso aqui, essa fortaleza. Mas é penoso. Estou cansada porque tenho que ser forte o tempo todo”, reclama Eliane com as mãos contra o peito denotando o peso das palavras.

Como milhares de crianças que crescem nas periferias, o amadurecimento veio de forma prematura. Aos 9 anos trabalhava como lavadeira para uma conhecida, aos 12 cuidava do irmão mais novo e aos 14 conseguiu o primeiro emprego formal em uma fábrica de refrescos. Na adolescência, fez curso de secretariado e tempos depois foi trabalhar na profissão que, até então, “imaginava ser dos sonhos”. “Eu achava lindo ser secretária. Mas odiei tanto que hoje nem me lembro. É que eu tive que aprender a conviver com o machismo, a andar ao lado de um homem, a guardar segredos e a ser discreta com a traição de um patrão”, lembra. “Era repugnante.” Ao mesmo tempo, ao passo que compreendia as lições anacrônicas do secretariado, Eliane foi empregada doméstica na casa de uma psicóloga que era a namorada do cantor e compositor Toquinho: dona Maria Alice, a grande responsável por lhe abrir os olhos e mostrar que as mulheres poderiam ser livres e fazer o que bem quisessem.

Foto: Paulo Freitas

SELF-MADE WOMAN

Após passar cerca de seis anos sem emprego para cuidar exclusivamente dos filhos Jorge e Domenica, hoje com 22 e 18 anos, respectivamente, Eliane decidiu que voltaria ao mercado. E como a quimera infantil de usar tailleur havia se quebrado, optou por outra paixão. “Me tornei advogada por justiça. Sou apaixonada pelo Direito. Também queria ter uma proteção e sei que a gente só se protege adquirindo conhecimento. Além disso, almejava ser independente, ganhar o meu próprio dinheiro”, explica.

A essa altura Pedro Paulo já era o prestigiado Mano Brown, a voz do Racionais MC’s e das periferias, e a família do Capão Redondo ostentava uma razoável condição financeira. A nova empreitada na carreira da esposa, no entanto, não entusiasmou o companheiro. “O Paulo achou estranho eu ir estudar”, lembra Eliane. “Para variar não acreditou. ‘Estudar para quê?’, me perguntou. É que quanto mais a gente absorve informação, menos o machismo tem efetividade. Ele disse que pagaria a faculdade, mas somente a mensalidade. Não arcaria com qualquer outro custo, não pagaria alguém para cuidar das crianças, a minha condução, os livros, nada.”

Com a jornada dupla materno-estudantil colocada à prova, Eliane entrou em uma faculdade particular em São Caetano do Sul e durante cinco anos, de segunda a sábado, passava pelo menos três horas por dia no transporte público. Ainda assim, desistir não estava nos planos. Ela se formou, foi aprovada no exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e arrumou um emprego em que chegou a receber R$ 20 mil por mês. Parecia suficiente o bastante, mas ela logo pediu as contas. O motivo? Outra vez os filhos vieram em primeiro lugar.

“As mulheres pecam quando tomam para si toda a responsabilidade da família. E eu fiz isso, reproduzindo, inconscientemente, o que a minha mãe tinha feito no passado. Ainda vivo assim. Na minha casa, quando os meus filhos eram pequenos, a responsabilidade era toda minha, a educação, a proteção, o colo, tudo era comigo. Nunca deixei o meu companheiro puxar a orelha das crianças. Eu sou o pai, eu sou a mãe.”

Para ficar mais tempo com as crias, Eliane necessitava de um horário mais flexível e decidiu trabalhar como autônoma. No início, sem local próprio para atender, a doutora se encontrava com os clientes na sede da OAB e “distribuía o cartão de visita no estilo boca de urna, mano a mano”. Em 2010, a habilidade comunicativa lhe credenciou para trabalhar na campanha da sambista Leci Brandão, que disputava uma vaga de deputada estadual. Dedicada à promoção da igualdade racial, inclusão social e garantia dos direitos das mulheres e da comunidade LGBT, a candidata eleita pelo PCdoB em São Paulo era o arquétipo de ativismo que seria uma faísca na trajetória de Eliane Dias.

Foto: Paulo Freitas

“Quando fui pela primeira vez na Assembleia [Legislativa], ainda durante a campanha, eu pensei comigo: ‘Quero trabalhar aqui’. E canalizei toda uma energia para que isso se realizasse”, lembra, antes de explicar o “mantra” que repete por várias vezes enquanto almoça com PODER. “Faz parte de um processo de entender que ‘teu desejo é uma ordem’. Porque eu vivo isso, eu vivo os meus desejos. Tudo o que quis até hoje eu consegui.”

Realmente, ela conseguiu. Como assessora parlamentar, Eliane atuou na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e recebeu convite para ser suplente na chapa de Eduardo Suplicy (PT) ao Senado Federal nas eleições de 2014. Ela recusou. Política estaria fora dos planos? “Por enquanto sim. Estou sofrendo pressão para sair candidata, mas não acho que seja a hora. Faço política de outras formas e tenho outros projetos de vida no momento.” Entre eles, dois negócios – um voltado para mulheres – e a compra de um prédio para abrir o seu próprio escritório de advocacia. “Não vou ser militante para sempre, nem empreendedora. Mas advogada eu serei sempre”, pondera.

É na pluralidade de suas ações que o SOS Racismo, uma associação sem fins lucrativos, se destaca entre os múltiplos perfis da advogada. Ela é coordenadora do projeto que propõe uma sociedade mais justa, igualitária e intercultural no qual todos possam usufruir da cidadania.

Eliane conta que sentiu pela primeira vez o preconceito de cor na escola, aos 8 anos. Sua irmã, fruto do relacionamento da mãe com um homem branco, tem a pele mais clara – Eliane é filha de um pai negro. Com um pequena diferença de idade entre elas, as garotas estudavam na mesma classe na primeira série do antigo ensino fundamental. “Eu sentava na fileira da parede e ela bem ao meu lado, no corredor.

A professora passou olhando os cadernos e corrigindo a ortografia de cada uma das crianças. Ela viu a minha letra e foi embora. Em seguida, olhou o caderno da minha irmã e pegou na mão dela para ensiná-la a escrever. Eu entendi então que havia uma diferença em ser negra e ter o cabelo crespo.”

Conversar com Eliane Dias é entender a eloquência e a retórica do “companheiro” Mano Brown. O discurso articulado e diserto da mulher elegante – não dispensa o salto alto – ressoa com a mesma potência das rimas de um rapper. Ela conheceu Pedro Paulo por meio do primo, Ice Blue, amigo e parceiro musical de Mano Brown nos Racionais MC’s. Na época ele era o Paulinho, office boy da quebrada. Ambos tinham 18 anos. “Odiei, achava que não tinha nada a ver. Eu era modelo, desfilava. Andava bem vestida e ele de calça jeans, tênis, camiseta larga e boné. Não era o perfil que eu queria.” A insistência de Brown para provar o contrário à amada teve o ápice dias depois, na saída de uma festa. “Não queria papo com ele, estava indo embora. Mas ele me puxou e me colocou nas costas, igual um homem das cavernas. ‘Só vou te colocar no chão quando você falar comigo.’ De lá para cá são 28 anos de papo. O desejo dele foi uma ordem”, ri, ressaltando que desde então Mano Brown enfrenta o feminismo dentro de casa. “Tudo o que ele sabe sobre as mulheres fui eu quem ensinou.”

A relação do casal ficou ainda mais forte a partir de 2012. Por sugestão da empresária Paula Lavigne, Eliane assumiu o comando da produtora Boogie Naipe, que cuida da carreira dos Racionais MC’s e de outros grupos de rap. Sob sua gestão eles acertaram as contas, passaram a faturar alto e Mano Brown alçou voo em carreira solo – o primeiro álbum dele, que carrega o nome da produtora, foi indicado ao Grammy Latino 2017. Só há um acerto entre os dois: “Não se discute trabalho em casa”.

No cafezinho o telefone de Eliane toca outra vez. Foram várias chamadas ao longo da entrevista. Se os telefonemas anteriores ela recusou gentilmente enquanto almoçava com PODER, agora pede licença para atender. “É uma amiga, futura sócia em um projeto. Temos uma reunião daqui a pouco para assinar o contrato.” Ao que parece a multiplicidade da advogada, empresária, produtora e ativista em breve deverá ganhar mais uma ocupação. Ela só não quis dizer qual será.

Foto: Paulo Freitas

MEU CARRO, MINHA VIDA

Além da advocacia, Eliane tem outra paixão: carros. O fascínio veio ao ser contratada em uma concessionária. “Comecei como auxiliar de almoxarifado e vivia suja de graxa. Mas sempre de salto alto. Depois cheguei a ser chefe de oficina”, conta. “Me interesso por tudo que envolve esse universo, sou daquelas pessoas que frequentam salão do automóvel”, brinca. “Comprei meu primeiro carro em 1990, um Fiat 147. Eu chamava ele de Xuxu. Desde então nunca mais fiquei sem. Adoro carro zero, de preferência 2019. (risos). Meu carro é minha vida.” De fato, no dia do almoço com PODER, o porta-malas de seu Nissan Sentra tinha ao menos cinco pares de sapato e mais uma porção de “rasteirinhas”.

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