No turbilhão de conteúdos que lotaram as redes sociais no último final de semana sobre a sucessão de violências sofridas pela criança, uma menina de 10 anos, do Espírito Santo, vítima da monstruosidade criminosa do tio, da burocracia machista do Estado e do fanatismo religioso, que tentou impedir a esperança dela ainda viver um pouco da infância, como criança que é, dois conteúdos chamaram muito atenção.
Primeiro uma charge que expressa a hipocrisia e a seletividade de quem se diz lutar pela vida. Outro, mais espantoso, foi um tuíte que recomendava como forma de convencimento àquelas pessoas que se encontravam na porta do hospital, acusando médico e criança de assassinos: digam que esse ser gerado do estupro poderá crescer e se tornar um marginal.
Pronto, será suficiente para que eles preguem a morte. O tuíte, em outras palavras, expressava essa ideia, relacionada diretamente ao exercício que a sociedade vem fazendo de decidir sobre a vida (e especialmente sobre a morte) de pessoas. Desumanizados, os corpos negros — ou pretos de tão pobres — têm seus destinos traçados a partir dos desejos, deveras sádicos, de uma sociedade cuja regra é a violência, a eliminação e a morte.
Décadas antes da instigante reflexão do filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe sobre a ‘política institucional da morte’ chegar ao Brasil (o ensaio necropolítica foi escrito em 2013, e publicado no Brasil em 2018), o movimento negro denunciava o genocídio negro em uma das mais sofisticadas faces: o domínio sobre os direitos reprodutivos das mulheres negras.
Sofisticada porque alicerçada pela estampa de ciência, que no século 19 pregava a superioridade de uma raça, que formaria uma “sociedade perfeita” e branca. Nem que para isso tivesse que eliminar os “imperfeitos”
A Bahia foi palco, a partir da década de 1980, de uma controversa experiência de esterilização de mulheres com a justificativa do necessário planejamento familiar como medida para combater as desigualdades sociais.
O médico e professor da Universidade Federal da Bahia, Elsimar Coutinho, branco, falecido nesta segunda-feira (18) aos 90 anos, vítima da covid-19, foi o responsável pela criação do Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana (CEPARH), em 1986. A militância do cientista pela esterilização ostensiva das mulheres pobres gerou críticas da própria classe médica, da Igreja e dos movimentos sociais.
Coutinho defendia que o controle de natalidade que o CEPARH promoveu na Bahia ajudou a diminuir os índices de violência no estado. “O planejamento familiar diminui as desigualdades sociais, porque diminui o abandono e a mortalidade infantil, diminui a violência entre os jovens, aumenta o emprego, as pessoas ficam mais felizes”, resumiu o cientista em entrevista ao jornal A Tarde, em 2011.
Para a doutora em saúde pública e pesquisadora do Cidacs-Fiocruz, Emanuelle Goés, o CEPARH realizava campanhas sobre controle de natalidade a partir de uma perspectiva eugênica. “Entre os seus materiais de divulgação, tinham outdoors com fotos de crianças e mulheres negras com os seguintes dizeres: “defeito de fabricação”, para convencer a população baiana da necessidade do controle da natalidade”.
Emanuelle completa: “O centro realizava experimentos com métodos contraceptivos hormonais, principalmente os injetáveis, em mulheres negras e pobres sob acusações da falta de informação dos efeitos no corpo e dos riscos no uso do método”.
Comissão foi formada no Congresso em 1993
Acusações como essa, feitas por mulheres em diversas parte do país, resultaram em um requerimento da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) para a criação, em 1991, de uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) — composta por deputados e senadores — para investigar a esterilização em massa de mulheres no Brasil e cujo relatório foi aprovado em fevereiro de 1993.
Entre as informações trazidas pelas investigações da CPMI dados mostraram que mais de 45% das brasileiras em idade reprodutiva estavam esterilizadas. Depoimentos de ativistas e pesquisadoras como Luiza Bairros, Jurema Werneck, Edna Rolland e de médicos e gestores em saúde, revelaram um uso indiscriminado de anticonceptivos e cirurgias ilegais de esterilização, apoiadas por uma cultura machista que permitia, inclusive, que empresas exigissem atestado de laqueadura para a admissão de mulheres no emprego.
O próprio Elsimar Coutinho, então presidente da Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar, foi ouvido pela CPMI, rebatendo os números elevados apresentados pelo Ministério da Saúde que indicavam um projeto de esterilização em massa de mulheres pobres e negras no Brasil. Para Coutinho, a esterilização era “um direito e um desejo universal”, inclusive de homens que também eram atendidos no CEPARH para realizarem a vasectomia.
Sobre o cientista baiano recém falecido, Emanuelle Goés pergunta: “Ele era sádico ou salvador? Depende da cor da mulher que você pergunta. Essa frase foi utilizada para dr. Sims mas serve para o eugenista baiano também”, afirmou, comparando-o a James Marion Sims, ginecologista norte-americano, acusado de realizar experimento com mulheres negras como cobaias.
“Defeito de fabricação”
No artigo Feminismo Negro: raça, identidade e saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993), publicado na Revista Estudos Feministas, volume 20, de 2012, as autoras Mariana Santos Damasco, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz) informam que “as campanhas publicitárias em torno da inauguração do CEPARH deram visibilidade ao viés racial nas ações políticas no campo da saúde reprodutiva.
Ainda segundo o artigo, no ano de 1992, Coutinho teria utilizado novamente o slogan “defeito de fabricação”, acompanhado de uma foto de um jovem assaltante negro com uma faca na mão e uma tarja nos olhos, para divulgar o programa gratuito de planejamento familiar oferecido pelo CEPARH.
As campanhas provocaram intensa indignação e mobilização realizada pelo Grupo de Mulheres do MNU, que utilizaram o Carnaval de Salvador para denunciar o cientista, considerado pela pelas militantes “o exterminador do futuro”.
No livro Claros e Escuros — identidade, povo e mídia no Brasil, de 1999, Muniz Sodré utiliza as campanhas do CEPARH para demonstrar “os lugares sintomáticos de discriminação, em geral disfarçados, mas às vezes bastante explícitos”, fruto do “imaginário etnocida” da sociedade brasileira.
Na página 235, Sodré descreve: “cartazes publicitários com o título defeito de fabricação acima da imagem de um garoto negro, com correntinhas no pescoço, canivete na mão e uma tarja nos olhos. Abaixo o texto: Tem filho que nasce para ser artista. Tem filho que nasce para ser advogado e vai ser embaixador. Infelizmente, tem filho que já nasce marginal. Outro cartaz mostrava uma mãe negra, grávida, coberta com um lençol branco e a legenda: também se chora de barriga cheia”.
CPMI resultou em lei sobre planejamento familiar
A CPMI da Esterilização resultou no projeto de lei sobre planejamento familiar aprovado pelo Congresso Nacional em 1996 e que estabelece: “É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade da mulher em documento escrito e firmado após a informação dos riscos da cirurgia”.
No comunicado sobre o falecimento do médico, a Clínica Elsimar Coutinho (CEC) informa que o pesquisador foi referência na área hormonal, com destaque para o planejamento familiar e a saúde feminina, além de ter sido pioneiro nas suas pesquisas. “Polêmico e inovador, Elsimar Coutinho ganhou notoriedade internacional e usou bem a comunicação para defender e esclarecer os seus pontos de vista científicos com convicção”, diz o comunicado.
O Ceparh segue funcionando em Salvador, como uma referência na área de reprodução humana. “Não fazemos nenhum tipo de seleção por raça, cor ou condição social. Atendemos tanto quem tem plano de saúde, como pessoas pobres, de forma gratuita. Realizamos palestras em bairros nobres e na periferia da cidade”, afirma o enfermeiro Fábio Barbosa, coordenador da área de Planejamento Familiar do Ceparh.
Ele informa que não acompanhou os anos iniciais das pesquisas de Elsimar Coutinho, mas esteve ao lado do médico nos últimos anos e defende: “Era uma prioridade dele apresentar todas as opções de tratamento para que as próprias mulheres escolhessem. Mantemos este procedimento que envolve palestras, conversas com assistente social, consultas médicas e acompanhamento psicológico para confirmar a decisão da paciente”. O enfermeiro diz ainda que a prioridade são os métodos menos invasivos: “Dos 500 atendimentos mensais apenas 40 são laqueaduras e 120 vasectomias. Os outros são colocação de DIU, pílulas e muitas orientações”.
Para Emanuelle Goés, o patriarcado incide sobre os corpos das mulheres e sobre a autonomia reprodutiva, tanto no aborto quanto na esterilização.
“E para as mulheres negras, a interseção com o racismo torna mais distante o direito de decidir, porque os direitos reprodutivos estão sob a égide dos sistemas de opressões, com isso o exercício pleno, a autonomia, a tomada de decisão tornam-se impossíveis. Por isso também, ampliamos o olhar sobre os direitos reprodutivos, quando falamos que o que precisamos é de justiça reprodutiva”.
Mesmo com todas as denúncias latentes e incansável militância das mulheres e homens negros, a necropolítica continua, em nome de Deus, da ciência ou da superioridade racial, em pandemia ou fora dela, a autorizar que corpos negros sejam constituídos como ‘inimigos do Estado’, legitimando a licença institucional para matar.