Em 1917 negros já marchavam na 5ª Avenida declarando que ‘vidas negras importam’

O único som era dos tambores abafados, dos passos no asfalto e dos soluços de parte das 20 000 pessoas que observavam a passeata. Mulheres e crianças usavam branco. Os homens, preto.

Na tarde de 28 de julho de 1917, um sábado, quase 10 000 negros americanos marcharam na 5ª Avenida, em silêncio, protestando contra a violência racial e a supremacia branca nos Estados Unidos.

Nova York, e o país, nunca tinham visto cena parecida.

A “Marcha Silenciosa de Protesto”, como veio a ser conhecida, foi a primeira manifestação de massa realizada por negros e marcou um momento histórico do movimento pelos direitos civis. Como escrevi em meu livro “Torchbearers of Democracy” (líderes espirituais da democracia, em tradução livre), os negros americanos desafiaram o racismo nos Estados Unidos e no exterior durante a Primeira Guerra Mundial. Tomando as ruas para protestar contra o tratamento brutal dos negros, os participantes da marcha denunciaram as injustiças no país.

E essa denúncia permanece sendo verdadeira hoje.

Milhares de manifestantes participam de protesto em Seattle pelos direitos das minorias e contra a violência policial, em abril de 2017. (Foto: AP PHOTO/TED S. WARREN)

Cem anos depois, os negros continuam insistindo que “Vidas Negras Importam”, e a “Marcha Silenciosa de Protesto” é uma lembrança vívida do poder da liderança corajosa, da organização social, da ação direta e da necessidade coletiva de lutar para acabar com a opressão racial em nossos tempos conturbados.

Violência racial e os distúrbios de St. Louis

Uma das maiores conquistas do movimento Vidas Negras Importam foi demonstrar o contínuo da violência racista contra negros em toda a história americana, bem como a história da resistência. Mas, enquanto continuamos lidando com a hipervisibilidade das morte de negros, talvez seja fácil esquecer o horror da violência contra os negros um século atrás.

Antes da “Marcha Silenciosa de Protesto”, a violência coletiva e os linchamentos de negros estavam se tornando cada vez mais crueis. Em Waco, no Texas, uma turba de 10 000 brancos assistiram ao linchamento do agricultor negro Jesse Washington, em 15 de maio de 1916. Um ano depois, em 22 de maio de 1917, um lenhador negro, Ell Persons, morreu diante de mais de 5 000 brancos em Memphis. Ambos os homens foram queimados e mutilados, e partes de seus corpos foram distribuídas e exibidas publicamente como lembretes.

Mesmo em comparação com esses atos terríveis, o que aconteceria no verão daquele ano na parte leste de St. Louis seria ainda mais chocante. Tensões trabalhistas entre brancos e negros explodiram na noite de 2 de julho de 1917.

Durante 24 horas, turbas de brancos esfaquearam, balearam e lincharam qualquer pessoa de pele negra. Homens, mulheres, crianças, velhos, portadores de deficiência – ninguém foi poupado. Casas foram incendiadas, e seus ocupantes, mortos a tiros quando tentavam fugir. Milicianos brancos observavam a carnificina de braços cruzados. Alguns participaram ativamente. O número de mortes pode ter chegado a 200.

Os 6 000 negros que sobreviveram ao massacre tornaram-se refugiados.

Ida B. Wells. (Foto: LIBRARY OF CONGRESS)

O leste de St. Louis foi um pogrom americano. A destemida ativista Ida B. Wells foi à cidade em 4 de julho e colheu relatos em primeira mão das consequências. Ela descreveu o que viu como “uma terrível orgia num matadouro humano”.

À devastação de St. Louis, somou-se o fato de que os Estados Unidos estavam em guerra. Em 2 de abril, o presidente Woodrow Wilson declarara a entrada do país na Primeira Guerra Mundial. Ele o fez afirmando o lugar único dos Estados Unidos no cenário mundial e seu objetivo de tornar o mundo “seguro para a democracia”. Aos olhos dos negros, St. Louis expôs a hipocrisia da visão de Wilson e do próprio país.

A NAACP entra em ação

A Associação para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) rapidamente respondeu ao massacre. Fundada em 1909, a entidade ainda não tinha se estabelecido como verdadeira representante dos negros de todo o país. Com a exceção de W.E.B. Du Bois, um dos co-fundadores da NAACP e editor da revista The Crisis, a liderança nacional do movimento era toda branca. Os escritórios estavam quase todos no norte dos Estados Unidos, apesar de a maior parte dos negros viver no sul. Assim, a NAACP raramente respondia aos horrores diários vividos pelos negros com a urgência necessária.

James Weldon Johnson. (Foto: WIKIMEDIA COMMONS)

Tudo mudou com James Weldon Johnson. Advogado, diplomata, romancista, poeta e compositor, Johnson era um verdadeiro negro do renascimento. Em 1916, ele entrou para a NAACP como secretário, e seu impacto logo foi sentido. Além de ampliar a presença da entidade no sul dos Estados Unidos, Johnson reconheceu a importância de expandir a influência da NAACP além da elite negra.

Ele deu a ideia de um protesto silencioso em uma reunião do comitê executivo do escritório da NAACP no Harlem, em Nova York, logo depois dos distúrbios de St. Louis. Johnson também insistiu que o protesto incluísse toda a comunidade negra da cidade. Com a liderança de Johnson e de pastores, logo começaram os planos.

Um dia histórico

Ao meio-dia de 28 de julho, vários milhares de negros começaram a se reunir na rua 59. Multidões ocuparam as calçadas da 5ª Avenida. Policiais ansiosos ocuparam as ruas de Nova York, cientes do que estava por acontecer, mas com os cacetetes prontos para lidar com os problemas.

O protesto começou por volta das 13h. Quatro homens começaram a tocar seus tambores começaram lenta e solenemente. Um grupo de pastore negros e funcionários da NAACP formavam a linha de frente. W.E.B. Du Bois, que recentemente havia retornado de uma investigação da NAACP em St. Louis, e James Weldon Johnson marcharam lado a lado.

A passeata foi um espetáculo deslumbrante. Na frente, mulheres e crianças de branco simbolizavam a inocência dos negros diante da culpa da nação. Atrás, os homens, vestindo ternos escuros, transmitiam dignidade triste e determinação severa de defender seus direitos como cidadãos.

Eles carregavam placas e bandeiras denunciando os Estados Unidos e o tratamento destinado às pessoas negras. Alguns cartazes diziam: “Suas mãos estão cheias de sangue”, “Não matarás”, “Mães, linchadores vão para o céu?” Outros ressaltaram o contexto do tempo de guerra e o vazio dos ideais dos Estados Unidos: “Lutamos pela liberdade dos brancos americanos em seis guerras; nossa recompensa foi St. Louis”, “Patriotismo e lealdade pressupõem proteção e liberdade”, “Faça a América segura para a Democracia”.

Durante a passeata, os manifestantes permaneceram em silêncio. O New York Times descreveu o protesto como “uma das manifestações mais silenciosas e ordenadas já vistas”. O silêncio finalmente foi interrompido com saudações quando o desfile terminou, na Madison Square.

O legado da Marcha Silenciosa de Protesto

A “Marcha Silenciosa de Protesto” marcou o início de uma nova época na longa luta pela liberdade negra. Ao aderir a uma certa política de respeitabilidade, uma estratégia empregada por afro-americanos que se concentraram na luta contra os estereótipos racistas por meio de aparência e comportamento dignos, o protesto, dentro de seu contexto, representou uma reivindicação radical da esfera pública e uma poderosa afirmação da humanidade negra. O protesto declarou que a chegada de um “Novo Negro” iniciou uma tradição de protestos públicos negros que seria vista nas passeatas da Associação Universal pela Melhoria dos Negros, as manifestações pelos direitos civis da década de 1960 e os protestos do Vidas Negras Importam de hoje.

A “Marcha Silenciosa de Protesto” nos lembra que a luta contra a violência racista e o assassinato de negros permanece tão relevante agora quanto há cem anos. A morte negra, seja pelas mãos de um policial de Baton Rouge ou de um supremacista branco de Charleston, é um espectro que continua a perseguir os Estados Unidos. Corpos negros descartáveis são uma tradição americana, e a história é testemunha da duração desse legado violento.

Mas a história também oferece inspiração, propósito e visão.

Ida B. Wells, James Weldon Johnson e outros defensores da liberdade de sua geração devem servir como modelos para ativistas hoje. Que a “Marcha Silenciosa de Protesto”tenha atraído negros de todos os tipos atesta a necessidade de organizações como a NAACP lembrarem e abraçarem suas origens. E, ao construir e sustentar o movimento atual, podemos tirar lições das lutas passadas e trabalhar de forma estratégica e criativa para aplicá-las ao presente.

Porque, no fundo, as demandas dos negros em 2017 continuam sendo as mesmas de cem anos atrás, como dizia um dos cartazes da manifestação daquela tarde de julho de 1917:

“Me dê uma chance de viver.”

Este texto foi originalmente publicado no The Conversation e traduzido do inglês.

+ sobre o tema

Discurso de Posse

Meus caros concidadãos Estou aqui hoje humildemente diante da tarefa...

Igrejas negras americanas crescem e figuram como referência na evangelização

Atualmente a importância da igreja negra americana tem crescido...

Descanse em paz, caro Stuart! – Por: Sandra Machado

Há alguma esperança... O professor e pesquisador do multiculturalismo, Stuart...

para lembrar

spot_imgspot_img

Brasil e EUA voltam a articular plano contra discriminação racial; veja como funciona o acordo entre os países

O Brasil e os Estados Unidos promoveram a primeira agenda entre congressistas e a sociedade civil desde a retomada do acordo de cooperação bilateral...

Economista Lisa Cook será a primeira mulher negra na cúpula do Fed

O Senado americano confirmou nesta terça-feira (10) Lisa Cook será a primeira mulher negra na cúpula do Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano). Sua...

Astronauta da Nasa será primeira mulher negra na tripulação da Estação Espacial

A astronauta da Nasa, Jessica Watkins, se tornará a primeira mulher negra na tripulação da Estação Espacial Internacional. Ela deve ser lançada ao espaço em abril...
-+=