Em entrevista a Djamila Ribeiro, Chimamanda aconselha jovens negras: ‘Não peçam desculpas por serem vocês mesmas’

17/11/25
Escritora nigeriana conta como a maternidade mudou sua visão de mundo, celebra leitores brasileiros e rechaça rótulo de ativista

O apoio de Chimamanda Ngozi Adichie às mulheres negras no Brasil atravessa minha trajetória. Estivemos juntas três vezes. A primeira foi em 2021, quando compus a bancada que a entrevistou no “Roda viva”, da TV Cultura. Em 2022, nos conhecemos pessoalmente. Mediei sua participação no Salão do Livro Carioca e jantamos. A conexão foi instantânea. Dividimos, além de debates, momentos de afeto. Naqueles dias, vivi uma experiência inesquecível: a escritora se ofereceu para prefaciar “Where we stand”, a tradução de “Lugar de fala” para o inglês, gesto que mudou minha trajetória ao me abrir, com a generosidade de uma madrinha, as portas do mercado editorial americano.

Nosso terceiro encontro foi virtual, em julho, mês seguinte à sua última visita ao Brasil, quando tive a honra de entrevistá-la para ELA. Durante sua passagem estelar pelo país, Chimamanda recebeu a equipe da revista para um ensaio fotográfico exclusivo. A autora estava por aqui para falar sobre seu mais recente livro, “A contagem dos sonhos” (Companhia das Letras), na Bienal do Livro, onde foi entrevistada por Taís Araújo. Conceição Evaristo acompanhou da primeira fila. Em São Paulo, Aline Midlej e Luciany Aparecida mediaram outros eventos com a escritora, que destacou o trabalho de mulheres negras brasileiras em sua rede social.

Nossa conversa apresenta perspectiva de quem há anos conhece o sucesso avassalador de público e crítica, mas também dedica parte de sua trajetória a apoiar outras mulheres negras a publicarem seus livros. A escritora nigeriana acumula títulos de doutora honoris causa de dezenas de universidades ao redor do mundo e é uma figura de inflexão na cena política e cultural da Nigéria e dos EUA, países onde mantém residências. Seus livros já foram traduzidos a dezenas de idiomas e já venderam milhões de exemplares.

Prestes a completar 48 anos, lança sua primeira obra de ficção em uma década — embora, nesse intervalo, tenha publicado um livro infantil e um ensaio comovente sobre o luto pela morte do pai. Além disso, anunciou, neste ano, o nascimento de filhos gêmeos. Feminista, administra como poucas pessoas o equilíbrio entre manter seu compromisso com a literatura e a expectativa sobre seus posicionamentos em um mundo com tanto barulho. Na entrevista, Chimamanda fala sobre a influência da maternidade em sua escrita (também é mãe de uma menina de 9 anos), problematiza o rótulo de “ativista” (que insistem em colar à sua ficção) e explica por que faz questão de abrir espaço para outras.

DJAMILA RIBEIRO – Enquanto mulher, mãe e escritora, como se sente em relação ao mundo de hoje?

CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE – Desorientada, descrente. Leio as notícias e penso: “Isso está mesmo acontecendo?”. O mundo me causa incerteza. Como escritora e mãe, me sinto incrivelmente grata. E cansada. Sou uma velha correndo atrás de meninos pequenos (risos).

Como proteger sua escrita?

A escrita dá sentido à minha vida, é uma vocação. Tenho viajado muito, mas me esforço para me conectar com minha criatividade. Leio, faço anotações. Não tenho escolha, não importa o quão maluco esteja o mundo, tenho que escrever. Ou tentar.

Chimamanda Ngozi Adichie — Foto: Fe Pinheiro

Como sabe que chegou a hora de apresentar uma nova história aos leitores?

Não há um momento certo. “A contagem dos sonhos” estava na minha cabeça havia anos, mas eu não conseguia escrever, passei por um período de seca criativa. Nunca acho que meus livros estão prontos, sempre quero mexer um pouco mais até me dizerem que é hora de entregar para a editora (risos).

Aí você só desiste (risos)…

Eu me rendo (risos). O trabalho da imaginação nunca está realmente pronto. Meus romances só vão chegar ao fim quando eu morrer. Estou sempre reescrevendo as mesmas coisas.

A literatura pode decolonizar a imaginação?

Com certeza. Ler autores africanos como Chinua Achebe (nigeriano, 1930-2013) e Camara Laye (1928-1980, guineense) na adolescência mudou dramaticamente minha visão da literatura. Antes, eu pensava que livros falavam da vida de pessoas brancas, mas entendi que o meu próprio mundo era digno da literatura. Educação não é só aprender, é também desaprender. A literatura nos ajuda a desaprender, porque tem o poder de reconfigurar nossas mentes.

Embora você seja ficcionista, esperam que você seja ativista, não?

Na Nigéria, muitos foram mortos pela ditadura militar por ousarem falar. Eles foram ativistas de verdade, eu não mereço esse título. Também não quero que o ativismo se sobreponha à minha escrita. Me escutam quando eu falo porque a literatura me deu uma plataforma. Dizem que sou uma “escritora feminista”, mas não é verdade. Sou escritora e feminista. Falo publicamente sobre temas que são importantes para mim, mas meu trabalho é contar histórias. Vivemos num mundo tão injusto que me parece irresponsável ter uma plataforma e não usá-la para incentivar a mudança.

Que conselho você dá para jovens negras?

Não peça desculpas por ser quem você é. É impossível agradar a todos, então é melhor ser você mesma. Seja o seu eu mais autêntico. Me entristece muito ver jovens negras que sentem que precisam se encolher para não serem julgadas. É fácil cair no estereótipo da “mulher negra raivosa”. Em todo lugar, mulheres em posição de poder e influência têm que provar sua competência o tempo todo.

Chimamanda Ngozi Adichie — Foto: Fe Pinheiro

O que é o sucesso para você?

Há uma parte de mim que continua faminta por fazer mais. Sinto uma fome criativa. Sou feliz por estar onde estou, mas não quero parar por aqui.

Ser mãe mudou a escritora que você é?

A maternidade me mostrou um amor que eu não conhecia. Me lembro de olhar para minha filha e me dar conta de que eu era responsável por esse ser humano e não havia nada que eu não faria por ela. Nunca fui ansiosa, mas descobri que a ansiedade está no centro do amor materno, você duvida de si mesma, da sua capacidade de proteger a criança. Ser mãe também me fez ter mais empatia com outras mulheres, julgá-las menos e entender como são complexas as escolhas de uma mãe. Não é saudável uma mulher ficar num relacionamento ruim por causa dos filhos, mas agora entendo como o amor por um filho pode te levar a tomar decisões que não são necessariamente as melhores para você.

Você esteve no Brasil recentemente. A sua percepção do país mudou com o tempo?

Na primeira vez que visitei o país, lembro-me de perguntar “onde estão as pessoas negras?”. A negritude era invisibilizada de modo muito perverso. Nas imagens que conhecia do Brasil praticamente não havia pessoas negras! Minha percepção mudou porque conheci pessoas negras em posições de destaque, mas ainda há muito o que avançar. Admiro muito a resiliência dos negros brasileiros, embora saiba que o custo emocional é gigantesco. Não é como se o país todo estivesse do lado de vocês, mas vocês não desistem e me dão orgulho.

Como é a relação com o público brasileiro?

Sempre me senti em casa no Brasil. É lindo ser abraçada pelos leitores. Gostaria de saber português porque alguma coisa se perde na comunicação. Existe um calor humano que, como africana, eu reconheço não só nos negros brasileiros, mas em todos. Muitas jovens me disseram que se assumiram feministas por minha causa, o que me deixa muito feliz.

Escreveu o prefácio da edição americana de “Lugar de fala”. Num meio tão competitivo, onde colocam mulheres contra mulheres, é muito especial ver uma autora que apoia outras.

É bom para mim e para o mundo todo que Djamila Ribeiro e outras mulheres tenham um público amplo. Se eu fui sortuda o suficiente para subir alguns degraus da escada, quero ajudar outras mulheres inteligentes e talentosas a fazer o mesmo. É bom lembrar que os homens se ajudam. Nós mulheres temos que nos ajudar, porque o mundo não é feito para nós, há muitos obstáculos para superar.

Seu último romance se chama “A contagem dos sonhos”. O que você anda sonhando?

Sabe em concursos de beleza quando as concorrentes dizem que o sonho delas é a paz mundial (risos)? Na verdade, esse é mesmo o meu sonho. Também quero continuar saudável para criar meus filhos e contar minhas histórias.

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