Em São Paulo, como pobres e ricos são tratados

Em entrevista, defensor público do núcleo de cidadania e DH analisa a diferença de tratamento dada pelo poder público do estado.


A sequencia de confrontos entre moradores e forças de segurança que ocorreram ao longo deste ano em São Paulo evidencia a divisão existente entre pobres e ricos dentro da cidade.

A análise é do defensor público e coordenador auxiliar do Núcleo Especial de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo Antonio Maffezoli Leite. Para ele, a agitação das favelas é uma resposta às constantes violências da polícia, que oferece às periferias o pior tratamento possível.

“Pegando o último [caso] de Heliópolis, em que há perseguição de um suposto bandido que viria de São Caetano, com tiroteio. Isso jamais aconteceria em um bairro rico. O Rio de Janeiro tem vários casos sobre isso também, recentemente. A forma da polícia atuar nos bairros pobres e nas favelas é diferente”, avalia.

Na entrevista a seguir, Maffezoli fala sobre as consequencias da desigualdade social para os moradores de áreas pobres, as responsabilidades do poder público e da mídia em relação à divulgação dos fatos e a necessidade de uma polícia que seja mais integrada ao cotidiano das comunidades.

Como vem sendo analisada essa sequencia de conflitos envolvendo moradores de áreas pobres de São Paulo e, de outro lado, forças policiais?

Primeiro que isso não é novidade. Agora aconteceram alguns casos em áreas grandes, envolvendo comunidades muito grandes como Paraisópolis e Heliópolis, e ganharam uma visibilidade da mídia. Isso acaba só demonstrando uma forma que é já histórica das polícias não só de São Paulo, como elas veem e tratam os moradores de comunidades carentes. Considerando inclusive essa estrutura militarizada da polícia de entender essas pessoas como inimigas, essas comunidades como inimigas, o que, no final das contas, é um traço cultural da nossa sociedade. A sociedade brasileira, com esse sistema de desigualdade social, acaba segregando uma grande parcela dela para guetos ou outros nomes que se dê a isso, e essas pessoas não são vistas como pessoas iguais a todas as outras, como todos nós. As forças de segurança desse Estado, que é o Estado formado por essa sociedade, acabam reproduzindo isso na medida em que quando têm que intervir em qualquer coisa, simples ocorrências do cotidiano, acabam usando uma força totalmente desproporcional e uma atuação sem controle. O paralelo é o seguinte: as intervenções acontecidas em vários desses casos, por exemplo, pegando o último de Heliópolis, em que há perseguição de um suposto bandido que viria de São Caetano, com tiroteio. Isso jamais aconteceria em um bairro rico. O Rio de Janeiro tem vários casos sobre isso também, recentemente. A forma da polícia atuar nos bairros pobres e nas favelas é diferente da maneira como eles perseguem bandidos ou intervém em conflitos entre pessoas. Em uma briga entre marido e mulher, por exemplo, em um bairro rico, a polícia intervém de uma forma diferente da forma como ela intervém em uma briga de marido e mulher em um bairro pobre por causa desse pré-conceito. E de não conseguir ver, nessas pessoas mais pobres que habitam essas regiões, pessoas iguais a nós, e nisso incluindo alguma coisa do tipo “são todos pobres e bandidos”. Eu ressalto essa questão que é cultural porque os policiais militares, principalmente, na sua maioria, advêm de classes sociais menos privilegiadas. Na verdade eles pertencem às mesmas camadas sociais, mas apesar disso eles [policiais] acabam reproduzindo essa visão preconceituosa, que afasta as pessoas e é excludente com o grosso da sociedade.

 Na sua avaliação, o que teria chamado mais atenção sobre esses casos por parte da mídia?

 

Primeiro porque foram em comunidades grandes e, segundo, porque essas comunidades reagiram de uma forma mais forte também. A revolta pela injustiça das mortes, do absurdo da atuação policial e também por terem acontecido em locais determinados. A gente têm casos recentes do Rio de Janeiro de perseguição policial em que foram dados tiros que atingiram uma família que estava em um carro parado, mas isso era em um bairro pobre, não era uma favela, onde a comunidade é mais identificada pelos limites territoriais, geográficos. Então imagino que por ter acontecido em Paraisópolis e Heliópolis, duas comunidades bem definidas geograficamente, muito grandes e já antigas e superestruturadas, com famílias que estão lá há muito tempo, comércios estabelecidos, pessoas já com uma condição financeira e cultural melhor do que comunidades bem mais desprestigiadas, essas pessoas não aceitaram com tanta passividade esses abusos policiais que acontecem cotidianamente e não aparecem porque são comunidades mais distantes. Acho que isso é um detalhe também, essas comunidades estão muito inseridas na cidade, elas são muito próximas a grandes centros financeiros, políticos e comerciais. A gente tem casos conhecidíssimos de abusos policiais no bairro do Pantanal, na zona leste, no Sapopemba, Cidade Tiradentes, que são regiões mais distantes do centro e acabam ficando escondidas as atuações dentro da própria região.

A execução de moradores sem qualquer relação com o crime é apontada como o estopim de várias manifestações. Nesse sentido, como avalia a opção do poder poder público de, muitas vezes, reforçar o policiamento dentro das comunidades, como ocorreu em Paraisópolis, com a Operação Saturação?

Essa resposta do poder público já é um caso pensado, não uma coisa acontecida na correria, na perseguição, de imediato, que você pode atribuir a uma coisa pessoal de um policial, “aquele policial não era preparado e aí saiu, atirou quando não devia porque os nossos cursos ensinam que não pode atirar em movimento, não pode atirar em local com aglomeração de pessoas”. As cúpulas sempre vão dizer isso e, eventualmente, até punir e afastar o policial, que também pode dizer “eu estava em uma perseguição, estava com medo, você não sabe o que é isso, podia morrer”. Agora, quando no momento seguinte, a população se revolta e a cúpula da segurança pública decide “nós vamos fazer uma operação de saturação, de controle, de invasão”, na verdade é a confirmação, aí sim, de política de Estado disso: de que aquele território é inimigo, é um território diferente, é um território alienígena, quando essas pessoas são, teoricamente, iguais a nós. Nós as ignoramos, no nosso caso pela condição social e, em outros países, por origem. Você tem o Estado tomando uma postura de guerra, de invasão e de controle em uma comunidade estruturada, bem estabelecida, com pessoas há muito tempo e trabalhadoras. Então essa reação do Estado, posterior, só confirma isso, e aí sem qualquer desculpa pela rapidez no momento, pela urgência, é isso mesmo: esse território é diferente, essas pessoas são diferentes, e nós, do conjunto da sociedade, precisamos controlá-las e diminuir seus ímpetos até as coisas passarem e voltarem a seu curso normal, que é o curso normal que esperamos para essas pessoas. Uma atuação do poder público também um tanto quanto limitada no sentido de garantir aqueles direitos fundamentais que todos têm de acesso à educação, saúde de qualidade e segurança nessas regiões cotidianamente, e em momentos de crise vem com essa força toda de invasão em prol da defesa da segurança.

Após esses episódios costumam aparecer uma série de versões, mas a que costuma predominar nos noticiários a tese de que o tráfico incitou os confrontos, gerando uma série de estereótipos para os moradores das comunidades. Como os moradores, porém, podem lutar contra esse estereótipo e tornar claras suas necessidades?

Eu acredito o seguinte: os moradores, no dia-a-dia de suas vidas, há muito tempo lutam contra esses estereótipos. Como eu já disse, a maioria dessas pessoas, quase a totalidade delas, trabalham arduamente, muitas em subemprego, com cargas horárias longas e salários menores porque são nomalmente serviços braçais. Mas muitas pessoas nessas duas comunidades especificamente já têm formação melhor, acesso a empregos melhores e lutam com isso, em ter que dar os seus endereços, “eu moro na favela de Paraisópolis” etc. Não sei se essas pessoas têm alguma coisa a mais do que tocarem suas vidas como tocam e tentar educar seus filhos nesse ambiente, com dificuldades e tudo. Quem tem que fazer alguma coisa contra esses estereótipos é o poder público e a imprensa, principalmente, na medida em que não repercuta essas acusações que sempre são sacadas pelo Estado, facilmente. “A culpa é do traficante ou é do PCC”, aí cria aqueles monstros que depois justificam outras medidas mais graves, aumentos de pena em Brasília ou grandes blitze policiais aqui em São Paulo. No caso da imprensa, é não repercutir, questionar sempre que o Estado apresente alguma coisa. Tem um caso na zona norte de São Paulo sobre isso, que a polícia diz que matou em um confronto, “plantou” uma arma, só que tinha testemunhas e o caso está saindo do comum, de que é tudo resistência seguida de morte. Os governantes, as pessoas responsáveis pelas políticas de segurança é que têm que lutar contra esses estereótipos e a imprensa também, na medida em que não divulgar, ou divulgar criticamente, questionando sempre essas versões fáceis dada pela polícia nos momentos de conflito. A população em si, mais do que essas comunidades têm feito, inclusive nessas duas também, com apoio da sociedade civil. O que tem de projetos sociais instalados lá dentro, despertando vocações para música, artes, dança. Elas mesmas não sei o que podem fazer mais.

Falta investigação para esses episódios?

Não conheço especificamente esses dois casos [Paraisópolis e Heliópolis], mas o que eu posso dizer é que normalmente, em casos que envolvem excessos policiais, as investigações são extremamente superficiais e acabam não chegando em lugar nenhum. É exceção, como esse caso na zona norte, que uma armação e um excesso feitos pela polícia acabem sendo desvendado. Esse é um problema crônico sobre a impunidade, que acaba acarretando um círculo vicioso de excessos policiais porque os policiais acabam sabendo que dificilmente vão ser punidos por alguma coisa. A gente está falando das coisas mais graves porque tem aquela coisa diária que, comparado a isso pode parecer até pequeno, mas que acaba alimentando aquelas abordagens policiais nos jovens negros e pardos cotidianas, com agressões, tapas na cabeça, que acontecem simplesmente porque são jovens, negros e estão na periferia. Então começa por esses abusos desde as coisas pequenas que acabam, em algum momento, estourando em casos graves e acaba acarretando a perda da vida de uma pessoa inocente, que não tinha nada a ver com a história.

Essa efervescência nas comunidades pode também ser um reflexo do não enfrentamento de problemas habitacionais da camada mais pobre da população?

Não só especificamente habitacionais, mas acho que o poder público acaba falhando em várias políticas sociais que permitem, inclusive, que as pessoas tenham possibilidade de ascensão social. Por exemplo, com educação. Uma pessoa que tenha nascido em uma comunidade carente mas que, em um determinado momento, o poder público tenha investido em educação de qualidade para fazer com que o filho daquela pessoa que mora ali, com uma educação melhor, possa acender socialmente e depois morar em um outro bairro. Então eu diria que, mais do que política habitacional, acho que essas questões envolvem a falha na política educacional e de planejamento urbano. Acho que a questão das favelas e dessas grandes comunidades em São Paulo, especificamente, se devem mais à falta de planejamento urbano e permitir que muitas e milhares de pessoas acabem ocupando dessa forma a cidade em condições que não são adequadas, que prejudicam a convivência social e acabam agravando muitas dificuldades.

Que medidas poderiam ser consideradas prioritárias para amenizar esses conflitos?

O mais importante seria uma aproximação das forças de segurança com essas comunidades, uma aproximação permanente e constante, cotidiana, em que essas forças, o batalhão da área, a delegacia da área, pudessem interagir com a comunidade no seu dia-a-dia, e quebrando esses estereótipos de que são bandidos, de que são inimigos e vendo que as pessoas são trabalhadoras, são organizadas, têm valor, têm ideais, anseios e sonhos de vida, permitindo isso e reforçando esse senso de comunidade nas forças de segurança. Acho que a polícia comunitária é um pouco isso, funcionou bem em um ou outro bairro de algumas cidades pelo Brasil. O policial está inserido naquele contexto, ele conhece todo mundo, se envolve com aquilo e não é uma força inimiga, uma força externa que chega em um determinado local em algum momento do conflito.

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