Número é do Ministério Público do DF, que lança livro sobre o tema e alerta para a necessidade de as vítimas registrarem a agressão e não se calarem
“Meu apelido de infância era ‘picolé de kichute’. Na escola, me chamavam de ‘Carolina Saravá’, em referência à religião praticada pela minha família. Além de neguinha, umbandista e macaca”, diz a psicóloga Carolina Saraiva, 34 anos. Ela faz parte de uma parcela da população que sofre preconceito diariamente por causa da cor da pele. Hoje, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPFT) lança um livro que reúne acusações de racismo no Distrito Federal nos últimos 10 anos. Apenas entre 2010 e 2016, o número de denúncias aumentou 1.190% na capital. Centenas de pessoas foram vítimas da intolerância e da falta de respeito de outros seres humanos, cidadãos que não souberam exercer a cidadania e se acharam no direito de ofender alguém.
Apesar de tudo que passou, é com voz tranquila e pausada que Carolina conta em detalhes todas as agressões verbais que já ouviu ao longo da vida. Ela garante que tudo isso não gerou revolta nem trauma. Na adolescência, era a única negra da turma em uma escola de padres. “Para ser respeitada, tornei-me a melhor aluna da sala. Eu era aquela garota que ganhava sempre menção honrosa.” Mesmo sendo uma estudante que ocupava lugar de destaque, ela não era convidada para participar de grupos de estudo porque os colegas achavam que poderia sujar o papel com a cor preta.
Nos últimos quatro anos, o promotor e coordenador do estudo Thiago Pierobom esteve à frente do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação. Durante esse tempo, o que mais chamou a atenção do promotor foi a quantidade de crimes raciais. “Quando não se atua de forma especializada nesse assunto não conseguimos ter a dimensão do que é verdadeiramente a realidade dessas pessoas. Só quando vemos a mesa com pilhas de processos é que passamos ter essa sensibilidade de enxergar melhor e compreender que as ofensas não são sentimentos normais dentro de uma briga. É necessária a atuação jurídica”, admite.
Recentemente, Carolina passou por uma situação de discussão com o ex-marido que não costuma ser nada comum. Inclusive, demonstra um pouco de aflição ao remexer nesse passado que, segundo ela, dá embrulho no estômago. “Já havia me separado dele quando esse homem bateu à porta lá de casa com várias bananas na mão. Ele começou a gritar e encharcou o piso de água, jogando as frutas no chão. Depois, pisoteou tudo e começou a me xingar de ‘macaca’ e ‘nega’” , relatou. A psicóloga enfrentou a situação com um celular na mão na tentativa de gravar tudo, mas o homem quebrou o aparelho. Carolina deu queixa na delegacia por ofensa racial, mas não havia testemunha no momento da agressão para poder provar.
Pesquisa
A pesquisa aponta que 34,7% das ocorrências acontecem no ambiente de trabalho. Camila Rodrigues, 28, vivenciou esse tipo de situação há três anos. Ao relembrar do episódio, ela segura as duas mãos com força e respira fundo. É algo que a incomoda até hoje. “Eu trabalhava como frentista em um posto de gasolina, em Águas Claras, quando um motorista de caminhão parou para encher o tanque. Do nada, ele começou a me xingar de ‘neguinha’, ‘vagabunda’. Fiquei constrangida com toda aquela situação, sem reação e perdi a voz. O único movimento que fiz foi caminhar em direção ao banheiro para me distanciar daquele homem que, por sinal, também é negro. Ele ainda me chamou de ‘macaca’, lembra. A reação de Camila foi como a da maioria das vítimas: se calar diante das ofensas. Mas ela também aproveitou para responder posteriormente da forma mais digna e justa. Camila registrou uma ocorrência na 21ª Delegacia Policial (Taguatinga Sul). O caso está na Justiça e o agressor responde por ofensa racial, agressão verbal e ameaça. “Tive que revê-lo duas vezes em audiências. Ele assumiu tudo o que fez e o seu advogado pediu acordo. Eu não aceitei. Quero que ele sinta na pele o peso das agressões que fez contra mim. A justiça saberá puni-lo”, declara.
Thiago Pierobom explica que os acordos processuais são algo positivo, pois impedem que os agressores pratiquem mais delitos como aqueles ou mais graves. Porém, o mais importante é eles terem sempre a certeza de que vão responder pelo que fizeram. “Os acordos também são as respostas mais rápidas da justiça, pois são dadas penas alternativas. Mas os réus não gostam de fazer acordos porque se sentem punidos”, explica.