Em seis meses, Ana Fontes ensinou 10 mil mulheres a empreender, negociar e ser feliz

A empresária, finalista na categoria Autonomia Econômica, firmou parceria com o Google, que investiu 1 milhão de dólares no Ela Pode, programa que já beneficiou vítimas de violência doméstica, negras, indígenas, trans, refugiadas e egressas de presídios. A iniciativa alcança principalmente as regiões Norte e Nordeste, onde o Estado está ausente

Por PATRÍCIA ZAIDAN E IRACY PAULINA , da MARIE CLAIRE

Filha de mãe costureira e pai torneiro mecânico — alagoanos que migraram para Diadema (SP) com oito crianças fugindo da seca –, Ana Lúcia Fontes, 53 anos, teve que se virar desde cedo para ajudar a levar dinheiro para casa. “Comecei aos 11 anos. Fazia bicos, ajudava vizinhas e minha mãe. Aos 14, estava registrada. Trabalhei em bazar, chão de fábrica, em áreas administrativas”, conta. Boa parte da carreira ela desenvolveu na indústria automotiva, onde ficou por18 anos. Em 2007, resolveu abrir seu primeiro negócio, uma plataforma na internet de recomendação de bons serviços. “Cometi todos os erros que os empreendedores cometem e vi que era preciso entender melhor o universo digital e o dos negócios”, lembra Ana, que vive na capital paulista.

A oportunidade de guinada surgiu em 2010, quando foi selecionada para participar do Programa 10 mil Mulheres da FGV, criado pela Fundação Getúlio Vargas. Ainda nesse projeto, Ana resolveu aventurar-se em um blog, abordando os medos, as dúvidas e as tormentas do empreendedorismo feminino. Gostou da experiência e do retorno recebido. Percebeu que seus questionamentos e dificuldades eram muito comuns na vida da maioria das mulheres que a seguiam. Assim, a iniciativa evoluiu e, em 2014, virou a Rede Mulher Empreendedora (RME), a primeira e uma das maiores plataformas de apoio ao empreendedorismo feminino no país. A RME integra quase 500 mil brasileiras e transformou-se no principal negócio de Ana.,

A empresária, porém, achava que era necessário ter um braço social e concebeu o Instituto Rede Mulher Empreendedora, que, com ajuda de parceiros, promove uma série de ações auxiliando as mais carentes a conquistar independência financeira e a tomar decisões sobre as próprias vidas.

A iniciativa é para lá de urgente. Segundo o Anuário das Mulheres Empreendedoras e Trabalhadoras em Micro e Pequenas Empresas (Sebrae/2016), elas estão à frente de 32,67% dos negócios desse porte no país. Para três em cada dez, a atividade representa o único sustento da família, aponta um estudo feito em 2018 pela RME. Grande parte (86%) começa o negócio sem estrutura ou planejamento prévio – a principal causa de fracasso. E uma boa parcela (37%) se lança na empreitada só com a cara e a coragem, já que não conta com capital inicial.

“A sociedade põe a mulher para baixo, diz que ela não pode isso, não pode aquilo. Nós desconstruímos a interdição. Alimentamos a autoconfiança e a coragem de dar o próximo passo para ter dinheiro e independência”

Ana Fontes

Em quase uma década acompanhando de perto essa realidade, que reflete o acanhamento das mulheres, Ana costuma ensinar a elas o caminho promissor: “Digo que devem assumir a posição de quem pode fazer as coisas. Que são capazes de ter um negócio de sucesso. Têm competência para encarar a gestão e cuidar das finanças – o grande desafio”. Mas para dar certo, é necessário estar muito bem preparada. Então, Ana desenvolveu o programa de capacitação Ela Pode, em parceria com o Google, que entrou com um investimento de 1 milhão de dólares. “Nesse programa procuramos desconstruir tudo aquilo que a sociedade disse que a mulher não pode fazer e alimentar sua autoconfiança para que ela consiga perseguir a independência”, explica Ana, uma das finalistas na categoria Autonomia Econômica.

Oferecida em quatro dias, as aulas presenciais abordam, entre vários temas, educação financeira e a construção de liderança. Também ensina a falar em público, conduzir uma negociação, construir redes de relacionamento e usar ferramentas digitais.

O Ela Pode abrange o país inteiro, mas tem atenção especial nas regiões Norte e Nordeste. “O foco principal é nas mulheres em situação de vulnerabilidade social e emocional, especialmente em localidades onde elas não têm acesso a serviços desse tipo, onde o poder público não atua”, explica Ana. A falta de políticas públicas específicas para a mulher constitui-se como uma violência de estado. E se a mulher não tem apoio para se tornar independente, acaba sendo presa fácil de relacionamentos abusivos e opressores, caem no subemprego, expõe-se muito mais aos riscos urbanos e acaba reproduzindo a miséria, pois, sem recursos, criará filhos com poucos estímulos para crescer.

As candidatas à capacitação são selecionadas a partir de parcerias que o instituto de Ana faz com as entidades de cada local que defendem os direitos das mulheres. Já passaram pelas aulas vítimas de violência doméstica que estão amparadas por medidas protetivas, egressas do sistema prisional, meninas que cumpriram medidas socioeducativas na Fundação Casa, em São Paulo, mulheres trans, negras, indígenas e refugiadas venezuelanas que se abrigam em Roraima.

Ana Fontes sempre quer saber como anda a rotina de cada mulher e de que forma a experiência a ajudou. São feitas duas avaliações sobre o aproveitamento do programa: três e seis meses depois de concluída a capacitação. “Verificamos se os conhecimentos adquiridos ajudaram a encontrar emprego, iniciar negócio próprio ou melhorar o que já existia”, explica. “Também avaliamos se a beneficiada atuou como multiplicadora do que aprendeu. Não queremos fazer a diferença apenas na vida dela. Um dos propósitos do programa é levar essa mulher a sentir-se forte o suficiente para ajudar outras da sua comunidade”, observa.

O impacto de Ana
O programa Ela Pode teve início em fevereiro deste ano. Até agosto, 10 mil participantes já haviam sido capacitadas por ele. A ambição de Ana é preparar para os negócios cerca de 135 mil mulheres até 2020.

 

 

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