Emicida

Por Pedro Alexandre Sanchez

 

O cantor paulistano Emicida tem sido nômade desde a infância, embora nunca tenha morado fora da cidade natal. Nascido na periferia norte da capital, peregrinou ao longo da vida por bairros como Jardim Fontales, Jaçanã, Jardim Brasil Novo, Vila Zilda, Jardim Filhos da Terra, Cachoeira, Santana, Tucuruvi. Deve se mudar em breve para a Água Fria, na mesma região. “Vou morar numa casa própria. Minha filha vai crescer tendo uma casa. É a primeira vez na história da minha família”, celebra, emocionado, numa noite de segunda-feira, no Laboratório Fantasma, seu escritório-empresa-gravadora-editora-produtora, em Santana, também na zona norte da cidade.

Foi a partir dali que Leandro Roque de Oliveira, hoje com 26 anos, começou a se projetar e progredir, graças à paixão pelo rap e pela cultura hip-hop. É a partir dessa base que, desde 2009, Emicida grava, produz, fabrica, copia, embala e distribui CDs sempre artesanais, que ele chama “mixtapes”. Até hoje, não lançou um disco oficial, menos ainda algum trabalho bancado por uma gravadora tradicional. Inclusive, já recusou convites de várias.

Pra Quem Mordeu um Cachorro por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe… foi a primeira mixtape, em 2009. Depois vieram Emicídio (2010) e Doozicabraba e a Revolução Silenciosa (2011). De lá para cá, já cantou e gravou com artistas de rap, samba, MPB e tecnobrega, como Elza Soares, Martinho da Vila, Mart’nália, Fabiana Cozza, Mariana Aydar, MV Bill e Gaby Amarantos. Caiu na simpatia da mídia tradicional. Tocou na periferia e no circuito Baixo Augusta, e em cidades das cinco regiões do Brasil.

Ele anda especialmente sensibilizado com a recente ação da Polícia Militar paulista na comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos. “A minha mulher é de Jacareí, que é do lado. Tenho vários amigos no Vale do Paraíba”, explica. Mas não é só por isso. Órfão de pai desde os 6 anos, Leandro zanzou a infância e a adolescência com a mãe, Jacira, entre moradias provisórias, noites dormidas embaixo de lona e refeições filadas em cultos religiosos, fossem evangélicos, católicos ou de candomblé. A casa onde a mãe e o padrasto moram até hoje, ao pé da Serra da Cantareira, é de alvenaria. Mas ali mesmo a família já enfrentou disputa judicial entre supostos loteadores, despejo, demolição, reconstrução. “Como o pessoal do Pinheirinho, eu sou uma dessas pessoas que um dia foram expulsas de um lugar”, diz.

Opõe-se frontalmente à forma como o poder público e a PM ocuparam a Cracolândia e a Favela do Moinho, no centro de São Paulo. Traça paralelos entre esses acontecimentos e os conflitos entre estudantes da USP e a polícia, quando a repressão se abate também sobre os filhos da elite e da classe média. Vê como exemplo inquestionável de racismo o célebre vídeo em que um policial discute com um grupo de uspianos e agride o único aluno negro entre eles. As consequências do racismo brasileiro dito “cordial” são constantes em seu cotidiano. Mesmo já conhecido por ter sido entrevistado por Jô Soares, Marília Gabriela e Ratinho, diz que apenas nos últimos quatro meses tomou três “enquadros” violentos da polícia, com arma apontada para o peito e agressão física. “Até hoje vejo uma viatura e fico receoso. Nunca devi nada à polícia, mas todas as vezes fui extremamente maltratado.” Lamenta também o tratamento recebido em delegacias, como quando foi prestar queixa contra um taxista que o havia chamado de “macaco”. “Perdi o show daquele dia, mas fiz o B.O., o bichão também perdeu o dia de trampo dele. Mas foi registrado como injúria, não como racismo”, impacienta-se.

Há uma diferença crucial entre Emicida e os rappers de gerações anteriores, representadas principalmente pelos Racionais MC’s de Mano Brown. Ao contrário desses, ele acredita na necessidade de atravessar as pontes reais e simbólicas que separam centro e periferia de São Paulo (e do Brasil). Demonstra prazer em dialogar, em ir à mídia, em relatar mesmo as experiências mais difíceis que vivenciou. E também, talvez principalmente, em exaltar as não poucas conquistas em meros três anos de deslanche profissional. Leandro, que virou Emicida pela fama de “matador de MCs” nas batalhas de improviso (ou freestyle) de rappers, fala nas linhas abaixo sobre sua cidade, seu estado, seu país. Em outras palavras, fala sobre si próprio. E já começa a falar sobre a polícia, antes mesmo de qualquer pergunta: “Estou no pior momento com a polícia. Os últimos três enquadros que tomei, tomei com arma na cabeça. Estava do lado do carro, em frente à minha casa. ‘Cadê seu documento?’. ‘Pô, mano, você vai me desculpar, estou na frente da minha casa, não vou carregar carteira pra descer na calçada’. O cara me reconheceu, ficou sem graça. Aí fico mais puto ainda, porque muda totalmente o jeito de lidar.”

Coronel Camilo
Por Arthur Guimarães

Por toda a infância, o penteado de Álvaro Batista Camilo foi “sem novidade”, só para emprestar uma expressão da manjada lista de jargões policiais. Corte de cabelo com design arrojado, vulgo “americano”, lâmina seca nas laterais e franja extremamente curta na testa, a aparência, digamos, militar, nunca foi exatamente uma novidade para o espelho. Seu pai não era um barbeiro rigoroso, mas sim um policial que, de tão apaixonado pelo serviço fardado, forjou a mentalidade daquele pré-adolescente. Embebido na cultura do combate ao crime, apostou na carreira e seguiu os rumos de duas gerações de ancestrais – além do avô e do pai, tem também um irmão na instituição e congratula-se de ter o filho na Academia do Barro Branco.

A estratégia de vida, quase um sonho, deu certo. O então recruta Camilo subiu na profissão – em uma jornada meteórica. Hoje, depois de muito estudo, esforço e de um mergulho sem bóias no mundo cão da violência, virou o xerife maior da Polícia Militar de São Paulo – esgotadas as progressões hierárquicas, entra para a reserva ainda neste semestre.
“Meu avô era policial da força pública e lutou na revolução de 32. Tomou tiros em combate e seus restos mortais estão no Obelisco de São Paulo”, diz, orgulhoso.

Seu pai igualmente trabalhou por toda a vida na instituição. Foi sargento por muito tempo e se aposentou como tenente. Indo além dos antepassados, o hoje coronel Camilo, comandante-geral da PM do Estado, é um homem que veste sem medo a camisa da corporação. Não foge de briga, mesmo quando os assuntos tratados flertam com a polêmica e reviram, sem escudo ou colete a prova de balas, as ações tumultuadas de seus homens, como a desapropriação de famílias do terreno de Pinheirinho, em São José dos Campos, ou o combate aos nóias da Cracolândia, farrapos humanos que, dizem especialistas em saúde, mereceriam mais soro do que bala. Na hora de tratar de tais temas espinhosos, aliás, ele mal aceita interrupções.

Em sua sala no QG da PM, ele descarta sem muito remorso uma ligação do próprio prefeito Gilberto Kassab, que o chamava no celular no momento em que explicava ao repórter sua visão sobre a investida feita na Luz. “Fale que eu ligo depois”, avisa ao assessor que acompanha a entrevista. A esnobada ao chefe do Executivo da capital paulista, para bom entendedor, indica que os desentendimentos entre as esferas estadual e municipal podem não ser apenas fruto de especulação (o governo do estado, patrono da PM, não vem se bicando com a secretaria municipal de saúde, que prega uma abordagem pacífica e medicinal para o narco-descontrole visto na Cracolândia). “Todo mundo fala da Luz por trás dos gabinetes. Mas quem fala sabendo o que está acontecendo de verdade é a polícia, que está vendo tudo diariamente e já percebeu a triste situação daqueles cidadãos”, alfineta.

Apesar de parecer ríspido quando provocado, o coronel é conhecido pela fala mansa, postura calma e perfil agregador. É tido como um progressista que promoveu inúmeras pequenas revoluções na mentalidade da polícia paulista. Em 2007, por exemplo, quando estava no comando do policiamento da região central, trouxe para dentro do quartel todas as lideranças envolvidas na Parada Gay, evento que nunca tinha tido uma atenção aberta e sem preconceitos. “E os travestis faziam questão de vir para a reunião vestidos a caráter”, conta. Como ele mesmo explica, na ocasião houve certa resistência, além de alguns entreveros bem práticos. “Os travestis não queriam usar o banheiro masculino, mas as policiais mulheres também não queriam que eles usassem o feminino. Tivemos que montar um banheiro só para eles. Ou elas, enfim”, recorda.

Na entrevista a seguir, consciente de que as mesmas perguntas feitas a ele seriam repetidas como o rapper Emicida, Camilo faz um panorama de sua trajetória na polícia, narra a visão que sua família tem de tão arriscada profissão e mostra que, apesar de estar com 51 anos, tem sangue jovem e é uma espécie de geek responsável por modernizar e informatizar toda a logística e gestão da PM. Ao lado de dois computadores que opera com maestria, ele se gaba de ter engendrado a instituição nas redes sociais e assume que faz pressão para que todos os batalhões criem suas páginas em Facebook ou no Twitter. “Fui o primeiro policial a ter um blog e a divulgar meu próprio e-mail para toda a corporação.”

Você mora sozinho?
Emicida:
 Moro no Tucuruvi, mas vou mudar pra Água Fria, eu, minha esposa e minha filha. Comprei uma casa, cara. Vou morar numa casa própria, minha filha vai crescer tendo uma casa. É a primeira vez na história da minha família, sem ter treta de reintegração de posse, esses bagulhos. A casa em que minha mãe mora é dela, mas a gente passou um inferno ali. Ela conseguiu comprar o terreno numa área que foi loteada e vendida pros moradores como se pertencesse a uma pessoa. De repente aparece o verdadeiro dono e chegou uma ordem de despejo. Falam muito de construção em área de manancial, esse é o argumento principal. E pra nós é bizarro, porque você olha pra Serra da Cantareira e tem uma pá de mansão no meio das árvores. Cada vez abrem-se mais clareiras, luzes acesas no meio da floresta. A gente tinha uma cachoeira, cercaram, a cachoeira virou o quintal de alguém. Quando a gente saiu, todas as casas foram demolidas. Passado um tempo, a gente simplesmente resolveu voltar, viu que era uma coisa natural de todos os moradores, voltar. Foi quando os moradores se organizaram, começaram a se comunicar, e aí a gente arrumou uns madeirites, todo mundo fez as barracas de madeirite, tudo improvisado, luz irregular, água irregular. Não tinha esgoto, a rua era de terra e muito íngreme, qualquer chuva abria erosão. A associação começou a se comunicar com o proprietário real, e aí nasceu um diálogo, eles tinham o desejo de tornar aquilo um bairro. Foi quando começou a acabar nosso medo de que no dia seguinte a prefeitura viria derrubar. A gente fez uns cordões humanos pros caminhões levarem cascalho, jogar pedra nas ruas. O asfalto chegou praticamente agora, é novo. 
Coronel Camilo: Moro há 28 anos casado com minha esposa Silvana. E moro também com meus dois filhos mais jovens, apesar de um deles ficar no internato estudando para ser policial militar.

O que achou da reintegração de posse do terreno Pinheirinho, em São José dos Campos?
Emicida:
 O que me fez ter dimensão foi o dia que vi a foto dos caras com aqueles tambores cortados no meio [para servir de escudo]. Fiquei feliz de ver o povo unido. Em geral uso meu site pra avisar de show, mas dessa vez resolvi cutucar. A gente precisa aparecer, tocar, fazer música nova, e às vezes você cumpre demais as funções midiáticas e se esquece do princípio um: você começou a fazer música porque queria mudar essa porra toda. Comecei a me achar muito alienado. Falei: não, tô todo errado, cara. Comecei a ler de novo, sobre política, porque até então tava lendo só quadrinhos.
Coronel Camilo: Para o policial, é sempre um momento difícil, como na Cracolândia. O policial gostaria de não precisar estar naquela ação. No caso do Pinheirinho, era uma determinação judicial. Tinha uma ordem que precisava ser cumprida. É um momento em que a polícia não tem que decidir se vai ou não fazer. Ela tem que ir. Então houve uma determinação para o emprego da força. Nenhum policial gosta de desalojar alguém, mas tem que cumprir. Então precisamos deixar bem claro. Planejamos muito isso. Usamos um número grande de policiais pra evitar problema. Tem ali [no Pinheironho] meia dúzia de agitadores. O resto são pessoas de bem. Então tinha taxa de condomínio, tinha taxa de não sei o quê, vira uma exploração das pessoas. Tinha tráfico. É difícil tirar uma família da própria casa, mas tinha que fazer. Não tem como não executar. Se em algum momento teve algum excesso, a gente apura. Mas, se teve, foi muito pontual. Se tem alguma coisa que a PM prima, é por investigação interna. Ensinamos tanto nas escolas, batemos na tecla de respeito às pessoas. E onde isso não acontece, a gente toma providencias.

Lê com prazer, ou por obrigação?
Emicida:
 Leio por obrigação, mas tenho prazer, porque passo a entender o que tá acontecendo. Quando fui no VMB, da MTV, recitei um verso que falava do Movimento Sem Terra. O MST viu, me mandou um salve. Todos esses pontos foram se ligando pra mim, e culminou que isso reacendeu a minha origem. Eu sou uma dessas pessoas que um dia foram expulsas de um lugar. Hoje tô aqui, outro dia tava ali. A gente só não teve um ataque da polícia. Mas a gente já tinha visto confrontos várias vezes. A gente passava as noites embaixo da lona lá, todo mundo brigando pra ter uma casa. Minha mãe fazia parte do barato mesmo, ia pra Brasília em passeata.

Quais são seus grandes ídolos na música?
Coronel Camilo:
 Gosto muito do Roberto Carlos. Gosto muito do Zeca Pagodinho. Do Elvis também sou fã. E admiro muito Led Zepellin, do Pink Floyd e até do Black Sabbath. Tudo depende do estado de espírito.

Por que a polícia é mal vista na periferia?
Emicida:
 Cara, eu não gosto de polícia. Tem coisas que são involuntárias em mim, me fazem ficar muito mal. Até hoje vejo uma viatura e fico receoso. Nunca devi nada pra polícia, mas todas as vezes fui extremamente maltratado. Nesse último enquadro, o polícia falou: “Você canta raps xingando a polícia”. “Ah, mano, eu canto rap falando a verdade”. “Você já teve experiência ruim com a polícia?” “Só tive experiência ruim com a polícia.” Ele ficou sem graça. A duas ruas daqui, no escuro, já tomei soco. Os caras vieram andando do meu lado durante um tempo, falei: não vou parar, o cara não me pediu pra parar. Do nada, jogam a viatura em cima da calçada e já sacam a arma no meu peito. Não estava com droga, com arma, com nada. Sabe qual foi meu erro? Falar na gíria. Perguntou: “Você tá armado?”. “Não, mano.” “Não sou seu mano”, e me meteu um soco nas costas. Eu tinha 14 anos, esse foi meu primeiro enquadro. O primeiro já foi com um oitão cromado no peito. Fiquei olhando pra ver se tinha ficado com alguma marca no meu corpo. Não tinha coragem de dizer pra minha mãe que tinha apanhado de um policial na rua, não queria humilhar ela. Voltei pra casa e fiquei em choque, com o corpo quente. E pra quem você vai reclamar? Pra corregedoria, que também é polícia? Vou reclamar do polícia pro polícia? 
Coronel Camilo: Estamos trabalhando muito nessa imagem para que isso mude. A polícia no passado, em alguns momentos, se impôs pelo medo, de forma mais rude, pois era enfrentada desse jeito. Quando você atua em uma região central, numa região como o Jardins, onde as pessoas consomem menos álcool, há normalmente um enfrentamento de diálogo. Mas quando você vai para a periferia – e isso não é aqui, mas em todo o mundo –, você tem um envolvimento maior. Há drogas, álcool, crimes contra a pessoa. E o policial pode morrer. Ele não vai ter uma ocorrência mais grave aqui na avenida Paulista. Porque na periferia, é, infelizmente, onde se prolifera mais a violência. Então muitas vezes o policial se impôs. Mas isso está mudando. Estamos trabalhando muito com os procedimentos operacionais. E isso tem mudado ao longo do tempo drasticamente. A idéia é que o policial sempre se antecipe, não use a forca, e até deixe o bandido fugir se for causar um mal maior.

Algum amigo seu virou policial?
Emicida:
 Tenho dois camaradas que viraram polícia. Gosto deles, e nunca mais encontrei depois que viraram polícia. A gente cresceu nos mesmos lugares, jogando bola no mesmo lugar, falando as mesmas merdas. Os moleques que riam com nós, cresceram com nós de repente ficaram em outra postura, começaram a chamar os moleques de vagabundo.

Tem amigos de infância que viraram músicos ou bandidos?
Coronel Camilo:
 Perdi totalmente o contato com a maioria dos meus amigos de infância, mas, que eu saiba, nenhum foi para o crime, assim como também não me recordo de alguém que tenha seguido a carreira musical.

A PM é mais violenta do que deveria? 
Emicida:
 Pelas minhas experiências de vida, não consigo pensar num ponto positivo pra falar sobre a polícia. Mas existe uma parcela da população que se sente segura. Eu sei que a minha avó não tem problema nenhum com a polícia. ‘Tem que bater nesses meninos mesmo, que eles estão na rua’, ela diz. Já fui abordado por policial que fez o trabalho direito. E achei do caralho. Se essa fosse a postura, a imagem da polícia mudaria. Quando lida com cidadão comum, tem que respeitar. Mas é raridade. Existindo a possibilidade de eu estar errado, é sempre com essa que eles trabalham, de eu estar devendo alguma coisa. Se estou certo e vou numa delegacia, é a mesma fita. Quando fui prestar queixa contra o taxista que foi racista, fiquei das cinco da tarde às onze da noite na delegacia, esperando. E me disseram: ‘Não, isso aí não é racismo, não. Racismo é outra coisa.’
Coronel Camilo: A polícia não deveria ser violenta. Nunca. A polícia só tem que adotar meios moderados para fazer e restabelecer a ordem. Na realidade, a gente trabalha sempre evitando o confronto. Muitas das ocorrências você vai ver que a pessoa fugiu da polícia. Fugiram mesmo. A idéia é que, se for colocar em risco outras pessoas, tem de deixar fugir. Não pego o criminoso hoje, mas pego amanhã. Mas tem horas em que os criminosos disparam contra a polícia. Aí não dá. Ele (o policial) precisa se manter vivo antes de salvar alguém.

A Rota tem que estar na rua?
Emicida:
 Não. A Rota é a pior polícia que tem, a mais agressiva de todas. A Guarda Civil Metropolitana, que antigamente nem arma tinha, cuidava dos patrimônios, hoje tem arma e ficou do mesmo jeito. Se vejo a Rota à noite, minha perna treme. Um dia a gente estava em frente da escola, duas horas da tarde, a Rota passou e todo mundo desviou o olho, de medo. O policial grita: ‘Ninguém tem coragem de encarar a lei, né?’.

Mas o policial também deve ter medo de morrer, não?
Emicida:
 Só que ele tem preparo pra lidar com aquilo, eu não. A polícia pré-condena. O vídeo do moleque da USP personifica como a polícia trata a gente. Quando vi, logo me liguei. É o único negão, vai tomar um sal. MV Bill tem uma rima foda: “É complicado ser revistado por um mulato fardado que acha que um preto favelado é o retrato falado”. Mas até ontem você estava deste lado, cara, você está enquadrando e agredindo você mesmo.

Existe racismo na PM?
Emicida:
 (Ri.) Não existe um segmento do Brasil em que não exista racismo. Não é uma característica de nenhum setor, é de todos ao mesmo tempo. Quando a gente viaja, vai pra hotel chique, os caras têm aquela simpatia amedrontada, todo mundo se mexe quando a gente chega pra tomar café. É estar numa loja, as pessoas vêm pedir pra mim, ‘pega tal produto’. O uniforme da loja é verde, e eu tô de camisa amarela.
Coronel Camilo: Não existe racismo. A PM trabalha muito bem com todas as linhas. E talvez seja a única instituição do mundo em que a mulher ganha a mesmo que o homem. E atinge os últimos postos. De 60, temos 4 coronéis negros. Temos 2 japoneses e 3 mulheres. Aqui dentro, é extremamente democrático. No ano passado, o governador fez uma lei, inclusive por proposta nossa, acabando com a diferenciação. Qualquer mulher pode ser comandante geral. Na atuação nas ruas, nas periferias, também não tem. Podem ter casos isolados. Vamos lembrar que são 100 mil policiais. Esses são recrutados na própria sociedade. Por mais que tentamos incutir valores, pode ficar algum resquício. Aliás, a maioria vem da classe mais baixa. Institucionalmente não tem racismo. E, quando tem, é algo totalmente pontual.

Como você definiria a relação entre a polícia e o rap? 
Emicida:
 A relação da polícia com a arte é totalmente torta. Vai ver o jeito que abordam músico de rua. A gente tem que agradecer essa ao Kassab também, ele que proibiu. Quantos artistas grandes começaram tocando na rua? Mata a oportunidade daquilo proliferar e crescer, um bagulho que dá muito orgulho pra nós. É perseguição com pobre. Ninguém vai tocar piano nem harpa na calçada.

O que você acha de Virada Cultural?
Emicida:
 Já toquei, mas não gosto, porque a gente não tem outras iniciativas ao longo do ano. É festa de graça durante 24 horas, mas e depois? Dá até preguiça de falar dos hábitos da elite do Brasil. Fomos participar de uma intervenção de publicidade, com artistas de rap, eu era o artista principal. Falei: “Tô cansadão dessa porra, nós vamos sair fora. É evento de rap e não tem nenhum preto”. Os caras [produtores] saíram correndo pra ligar pra uns figurantes. A gente ligou pros nossos camaradas, pra eles ganharem dinheiro também (risos).

E o tumulto no show do grupo Racionais na Virada Cultural?
Coronel Camilo:
 Eu ainda não estava no comando. Foi uma conjunção de fatores que deveriam ter sido melhor pensados. Colocar um conjunto, naquele horário, naquele local, e sabendo que é um grupo que incentiva a agressividade, isso não deveria ter sido feito. E você os coloca para tocar em um lugar que você reúne muitas pessoas, mas não consegue ter um controle total da situação. Quando teve um atraso, as pessoas já estavam agressivas. E partiram para cima da polícia, que teve que tomar uma posição, usar armamentos não letais. As pessoas subiram em bancas de jornal, invadiram prédios, subiram em marquises e ficou uma coisa bem descontrolada. E a polícia tinha que restabelecer a ordem. Mas, quando assumi a corporação, disse que eventos como aquele não podem acontecer. A polícia é alguém que vai trabalhar ao lado do cidadão – e não contra.

E quanto a ação na Cracolândia?
Emicida:
 Se a gente for tirar alguma coisa de positivo disso é: deram atenção pra esse lugar. Fora isso, em que lugar do mundo induzir as pessoas à abstinência de uma maneira agressiva cura elas da doença que é a droga? Tá tudo errado, pra começar é a polícia que tá conduzindo. Polícia tratando de doente. A sociedade preconceituosa não fala sobre sexualidade, racismo, violência, drogas. Como vai solucionar um problema que você finge que não existe, que é problema da família dos outros?
Coronel Camilo: A ação é necessária. Por muito tempo, a polícia ouviu que era para não ir muito ali, pois estava sendo feito um trabalho social. Isso foi falado muitas vezes, que nossos homens iriam atrapalhar o vínculo com os viciados. No final do ano passado, fomos chamados para várias reuniões envolvendo prefeitura e governo do estado. A Assistência Social e a Saúde falaram claramente que era preciso uma intervenção policial naquele local, pois os traficantes não os estavam deixando trabalhar. Chegou ao ponto em que todo mundo concluiu que alguma coisa deveria ser feita. E não tenha dúvida que, para pegar traficante, uma hora ou outra vão surgir problemas. Por exemplo, usando uma arma de bala de borracha, e isso acaba marcando um pouquinho. Mas, na realidade, a polícia gostaria de não precisar intervir ali. Mas isso não é de hoje. Isso tem mais de 30 anos. Foi uma degradação da área. Aquele era o point de São Paulo na década de 60. Muitos hotéis, muitos neons… e daí a rodoviária vai pra outro lugar. O Metrô passa a ser mais importante que o ônibus. O point muda, mas os hotéis ficam ali. A prostituição invade, a droga idem, e isso sempre foi considerado um problema social. Depois, virou um problema policial. E a policia começou a perceber que o esquema era a prevenção. E prevenção era tirar os consumidores dali. E chegou um ponto em que os agentes de saúde não tinham mais como atuar. Os coletores de lixo não tinham como entrar. Hoje já está melhor e tende a ser cada vez melhor.

Você já usou drogas? 
Emicida:
 Cara, já experimentei (ri). Mas eu tenho uma relação muito zoada com os entorpecentes. Sou tão noiado que não me deixa na brisa. Fico, ‘caralho, que merda que eu tô fazendo?’. Por isso, não uso. Não me deixa loucão, me deixa mais chato. Prefiro mil vezes estar do jeito que tô aqui. Minha família inteira foi destruída por causa da bebida, várias pessoas bebem na minha família. Isso também incentiva as pessoas a ir pra droga: umas são proibidas e outras não. Alcoolismo não é uma doença? Chega um estágio que é só destruição na vida das pessoas. A diferença é que o cara que vende cachaça paga imposto. Hoje a coisa mais normal é encher a cara e sair dirigindo. Quando bate, mata outra pessoa, que não tinha nada a ver com a parada.
Coronel Camilo: Nunca usei. E não pretendo. E não tenho nem condições de pensar nesse sentido.

O senhor é a favor da descriminalização das drogas?
Coronel Camilo:
 Eu sou contra, pois as drogas mais baratas são aquelas que elevam o consumo das drogas mais fortes. Então, você trabalhar com a descriminalização da maconha acaba incentivando o uso de outras drogas. E vou mais além. Eu acho que deveríamos criar mais limites para o uso do álcool. Ele mata mais do que qualquer droga. Sou a favor de maior restrição ao álcool, que na minha visão é a nova droga do século.

O que acha da pichação e do grafite?
Emicida:
 É arte livre, intervenção. Acho grafite mais bonito. O pixo é ousado, fazem nuns lugares que você desacredita. Os gringos amam, tiram foto. Mas artisticamente pouco me atrai. Já fiz grafite, mas é tipo pintar um muro, e raramente você consegue uma autorização. Então você é considerado pichador, independentemente se está pintando um ursinho colorido ou escrevendo ‘foda-se o sistema’. A orientação da polícia com relação a isso mudou. Uma vez a gente tava pintando em Pinheiros, um camarada foi abordado e levado pra delegacia. Chegando lá, o delegado deu uma comida de rabo no polícia: ‘Você tá prendendo grafiteiro?’. Esse assunto é delicado porque fala de violação de patrimônio privado, na visão do proprietário é foda. Pixo é violação. São dois pontos de vista diferente, que nunca vão coexistir. Dá pra ver razão dos dois lados.
Coronel Camilo: O grafite precisava ser melhor trabalhado. Acho que há excessos sim [na existência de pinturas pela cidade] e precisava ser melhor canalizado. O grafite é uma arte. Em Brasília, por exemplo, existe o projeto Picasso Não Pichava, como forma de incentivar as pessoas a não fazerem a deterioração do espaço público. Gosto dessa idéia.

Como você definiria a juventude de São Paulo? É apática ou atuante?
Emicida:
 Em geral acho a juventude do Sudeste dispersa. A do Nordeste, por exemplo, acho mais politizada e consciente. A mídia que a gente tem aqui cria uma juventude dispersa. Todo mundo tá preocupado em ter a carreira mais fodida, a posição social mais fodida, mas ninguém sabe de onde veio.

Faltam líderes? É preciso ter líderes?
Emicida:
 Falta mobilização e união na classe artística, com relação a assuntos que lesam todos os artistas. Teve essa parada da Sopa e da Pipa e os artistas não falam nada! Quando os artistas vão falar, fazem aquele vídeo de Belo Monte. Você nunca mais viu nenhum daqueles artistas do vídeo falarem sobre a parada. Concluo que é publicidade, não é um problema deles, não fazem ideia do que estão falando. Posso estar errado. Acho mesmo que as obras de Belo Monte têm que ser revistas, mas essa maneira de levar informação não é honesta, é dramática, vai no coração das pessoas, e elas têm que aprender a raciocinar, a usar a razão. Ninguém no Pinheirinho está pedindo esmola. O sonho da casa própria é bizarro, uma casa não tem que ser um sonho, tem que ser o básico.

Bandido bom é…
Emicida:
 Bandido bom (ri)? O que a gente tem que rever é o conceito de bandido. Se a justiça for pra todos, aí bandido bom é o bandido que pague pelos seus erros. No conceito da polícia, bandido bom é bandido morto, mas o que quer dizer bandido pra polícia? Preto. Pobre. Por que o cara que catou o revólver e assaltou na rua tem que ser jogado num camburão e humilhado na cadeia enquanto o Paulo Maluf merece reverência?
Coronel Camilo: Aquele que vai preso.

PM rima com o quê?
Emicida:
 Ironicamente, PM rima com treme. Treme de medo.
Coronel Camilo: Defesa do cidadão.

Você tem medo de morrer?
Emicida:
 Hoje tenho, depois que virei pai. Sempre vivi de uma maneira muito, “ah, foda-se, o que vier veio”. Eu não tinha perspectiva nenhuma na minha vida, essa era a verdade. E demorou pra cair a ficha e ver o que nós [rappers] tínhamos feito aqui. Teoricamente, faço música, um grupo de rap, só. Mas não. Nós sabemos que injetamos uma vida sem tamanho nas favelas.
Coronel Camilo: Tenho medo de morrer. Quem fala que não tem não está falando a verdade. Mas não permeia meus pensamentos. O medo de morrer não é o medo da morte, mas sim o medo de não ter os projetos encaminhados, de não ver os filhos formados. Tenho medo de não terminar meu projeto de vida.

Qual é seu ritual na hora que acorda?
Emicida:
 Levanto, tomo banho, escovo os dentes e venho pra cá [Laboratório Fantasma]. Brinco um pouco com a minha filha. Sempre deixo pra tomar café aqui no trabalho, mas quero mudar isso, quero ficar mais com a minha filha.
Coronel Camilo: Acordo às 6h todo dia. Faço alongamento, ligo a TV e vejo o noticiário. Faço questão de acordar cedo para ficar com minha família. Prezo muito a qualidade nesse relacionamento, já que trabalho muito e fico muito fora de casa. O policial é um dos poucos profissionais que nunca sabe se voltará para casa. Então, costuma ser uma pessoa que aproveita bastante os bons momentos.

Você reza? Tem religião?
Emicida:
 Não. Passei por várias, mas minha religião é estar bem. Se eu tô feliz, Deus tá feliz. Se eu tô triste, Deus tá triste. O conceito de religião é bagunçado, mais ligado ao pecado que à felicidade. Porra, mano, a gente vai encontrar Deus pra ficar chorando as pitangas, pedindo desculpa? 
Coronel Camilo: Faço oração antes de dormir. Agradeço a Deus e peço que ele me oriente, ajude a PM, pensando no cidadão de São Paulo.

Existe amor em SP?
Emicida:
 Existe, nossa luta é prova desse amor. Tem dias em que a gente acredita que não, mas tem dias que isso aqui é o melhor lugar do mundo. Ver minha filha, os caras aqui todos virando pais de família…
Coronel Camilo?
Sem dúvida, existe amor entre as pessoas. Existe amor nas localidades. Existe amor no centro.

Não é curioso que têm surgido esses slogans, provocações, “Não Existe Amor em SP”, “Mais amor, por favor”, “O amor é importante, porra”, todas citando o amor?
Emicida:
 Sim, como uma solução, um remédio. As pessoas se odeiam há muito tempo, sem se conhecer. Tá na Bíblia, “amai-vos uns aos outros”. Distorceram isso aí pra separar as pessoas. Se as pessoas lerem a Bíbila distante do que a Igreja fala, a Bíblia é um livro foda. Eu não leio, não (risos), mas já li vários trechos. Ficamos zoando que vamos fazer a Bíblia 2.0, com os termos das ruas. Me deram o Alcorão e o cara me abordou e falou que eu tenho que virar muçulmano. Falo com a minha mulher se eu ia poder ter outras mulheres, mas fui barrado nessa instância, aí desconsidero. O grande problema da Bíblia é quando você transforma no guia de caçar pecador, que é o que as igrejas fazem. Vai caçar pecador? Beleza, vai lá, pecador…

 

 

Fonte: Portal Alone

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Michelle Obama: “Os homens de minha vida não falam assim sobre as mulheres”

Há emoção nos comícios de Michelle Obama a favor...

Fim da saída temporária apenas favorece facções

Relatado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o Senado Federal aprovou projeto de lei que põe fim à saída temporária de presos em datas comemorativas. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA),...

Morre o político Luiz Alberto, sem ver o PT priorizar o combate ao racismo

Morreu na manhã desta quarta (13) o ex-deputado federal Luiz Alberto (PT-BA), 70. Ele teve um infarto. Passou mal na madrugada e chegou a ser...

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...
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