Empresas precisam rever critério de seleção para ampliar presença de profissionais negras

Quem sobe na carreira vive solidão de gênero e raça, desconfiança e até hostilidade de chefes e colegas

Por Marina Estarque e Priscila Camazano, da Folha de S.Paulo

Lisiane Lemos, liderança em uma multinacional da tecnologia Eliária Andrade/Folhapress

“São as pequenas agressões que nos detonam”, conta Lisiane Lemos, 30. “Isso é o mais dolorido de ser um profissional negro no mercado. Ninguém vai te chamar de preto sujo, porque a pessoa vai ser presa. Mas ela pode te detonar de diversas formas, como na análise de desempenho”, exemplifica.

Quando falou à Folha, Lisiane era especialista em soluções na Microsoft Brasil. Nesta segunda (7), iniciou nova trajetória em outra grande empresa de tecnologia.

As mulheres negras, contingente que reúne pretas e pardas, formam o maior grupo da população. Somam quase 60 milhões de pessoas —28% dos brasileiros, segundo a PNAD contínua do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Para traçar a trajetória delas na geração da riqueza nacional, a Folha ouviu 26 mulheres pretas e pardas e apresenta os depoimentos numa série de quatro capítulos. Nesta reportagem, o foco é trabalho e renda. ​

Segundo pesquisa do Instituto Ethos de 2015, mulheres negras correspondem a apenas 0,4% dos quadros executivos das maiores empresas do país.

Para aumentar essa presença, principalmente em cargos estratégicos, é preciso mudar os processos de seleção e a cultura interna das empresas, que podem reproduzir um racismo institucional, defendem especialistas.

Nas seleções, a preferência por candidatos formados em faculdades de renome, muitas particulares, a exigência de experiência internacional e domínio de línguas estrangeiras são comumente citados como barreiras para muitos profissionais negros qualificados.

“Várias empresas pedem inglês fluente e isso nem é necessário para a vaga. É uma forma de definir quem a empresa não quer”, diz a diretora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT), a psicóloga Cida Bento.

O anúncio da vaga e o meio de divulgação também podem ser excludentes. “Se a empresa pública em um jornal de grande circulação, vai atingir um determinado público. Muitos mandam só um email entre pares. Acaba tendo uma lógica de reprodução de elites”, afirma a representante interina da ONU Mulheres Brasil, Ana Carolina Querino.

Outra forma de atrair sempre o mesmo público é a contratação por indicação.

Como há poucas mulheres negras no meio empresarial, elas dificilmente têm acesso a uma rede de contatos.

“Nós não temos esse networking, o amigo do meu pai não é ninguém em uma empresa. O que temos é a história dos nossos pais de sobrevivência”, diz a fundadora do movimento Black Money, Nina Silva, que é gerente em uma empresa global de tecnologia.

Para fazer uma busca ativa de candidatos, algumas empresas contratam serviços especializados, como a EmpregueAfro, uma consultoria em recursos humanos com foco em profissionais negros.

“Às vezes apresentamos os candidatos, e a empresa encontra tudo quanto é desculpa para não contratar”, diz a fundadora, Patrícia Santos. Outro problema é que a maioria dos clientes oferece vagas de estágio ou trainee —posições efetivas são raras.

Combater o racismo no recrutamento envolve mudar procedimentos da empresa. Uma opção é investir em seleções às cegas, em que o rosto, endereço de residência e outras informações do candidato não são reveladas.

​Mas a contratação não é suficiente, diz Nina. Segundo ela, não adianta incluir na base, se não houver uma mudança de comportamento na empresa.

“Quando a empresa não é empática, não há desenvolvimento na carreira, os quadros gerenciais não são plurais. Com isso, a empresa não consegue reter a mulher negra. Ela entra e sai”, afirma.

Nina é gerente de projeto em uma empresa de tecnologia americana, onde liderou equipes com dezenas de homens brancos de meia-idade. “Quando perguntavam: ‘quem é a sua gestora?’ Eles respondiam: ‘aquela menina ali’, em um sentido pejorativo”, conta.

Lisiane conta diversos casos em que a sua competência foi questionada. “Digo que sou advogada e me perguntam se eu fiz o exame da Ordem. Ou começam a usar termos técnicos de tecnologia para ver se me pegam”, exemplifica.

Para realizar um processo de inclusão de longo prazo, programas de equidade racial fazem capacitações e mentorias, que podem complementar a formação de inglês e português, por exemplo.

“O candidato pode ter 70% dos atributos, os outros 30% precisam ser desenvolvidos”, diz Flávia Roberta Silva, 43, que é negra e assessora executiva da presidência da IBM América Latina.

A capacitação pode incluir orientações sobre como comportamento no ambiente empresarial. “Serve para se habituar a códigos institucionais e da cultura corporativa, que não fazem parte do universo das famílias negras”, diz Bento.

Além disso, um programa de equidade precisa estabelecer metas públicas, afirma ela.

A empresa pode definir que todas as seleções devem ter uma parcela de mulheres negras e estabelecer uma proporção almejada para cargos de liderança. “Não precisa reservar uma vaga específica, mas tem que dar a oportunidade de concorrer”, diz a economista Regina Madalozzo, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero do Insper.

Uma dificuldade de implementar tais programas é que eles precisam de um comprometimento interno. “Muitas vezes vamos depender da caneta do homem branco, do incluído, que se sente questionado por esses temas”, afirma Bento.

A falta de representatividade também prejudica a ascensão das mulheres negras, segundo Flávia, da IBM. “Sabe autoestima? Muitas vezes não nos vemos naquela função, não sabemos que é possível chegar lá também”, diz.

Dilma Souza Campos, 44, CEO e fundadora da empresa Outra Praia (Foto: Eliária Andrade/Folhapress)

Dilma Souza Campos, 44, fundadora da empresa de marketing Outra Praia, conta que demorou três anos para dizer que era CEO. “Tinha vergonha, pensava que as pessoas iam me achar pretensiosa”, conta ela, cuja empresa faturou R$ 7 milhões em 2018 e emprega 14 funcionários.

As poucas que chegam aos cargos mais altos precisam seguir uma estética que se afasta da cultura negra, segundo Bento. “A candidata [negra] ainda desejada pelas empresas faz escova progressiva, usa roupas pouco coloridas, muito conservadoras, quase uma barbie pintada de preto”.

Querino, da ONU Mulheres, afirma que muitas vezes a formalidade é uma desculpa para cobrar essa adequação. “Isso é um elemento de racismo. Por que roupas que fazem referência a elementos da cultura negra não podem ser consideradas formais?”.

Há também uma pressão para que a mulher negra mostre duas vezes mais capacidade, porque só assim ela teria uma chance no mercado.

É o que Dilma ouve desde pequena. A mãe botava o chinelo na mesa e cobrava que a menina soubesse a tabuada na ponta da língua. “Você já nasceu perdendo por ser negra. Se não tirar dez, nunca será escolhida”, dizia a mãe. Dilma reconhece o peso da cobrança. “Não é a coisa mais fácil de ouvir para uma criança.”

Cida Bento/ foto: Danilo Verpa/Folhapress

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