Entre a vida, a morte, a discriminação, a (in) justiça, a impunidade e o poder

Por Ane Cruz, Aparecida Gonçalves e Eunice Léa de Moraes

Entre copa do mundo, eleição, desaparecimento, assassinato, amor, ódio, morte, nascimento, estupro, publicidade ofensiva e desvalorização da mulher, a sociedade brasileira assistiu nas últimas semanas notícias estarrecedoras de uma barbárie contra as mulheres que choca e ainda assola o Brasil do século XXI.

Ao iniciarmos esta reflexão, gostaríamos de fazer um registro do lugar de onde escrevemos – mulheres, feministas, negras, indígenas, educadoras, militantes partidárias, indignadas com as injustiças, discriminações, preconceitos e violência, que principalmente nós mulheres negras e indígenas sofremos no dia-a-dia de nossas vidas.

Portanto, as duas questões: de gênero e étnico-racial, para nós, estão entrelaçadas, num contexto complexo, perverso, injusto, de muita luta diária, de muitas insistências e desistências. Mas de muita alegria e dignidade de ser mulher. E ser mulher em uma sociedade que nas últimas décadas lutou contra a ditadura militar, transitou de uma idéia de sociedade civil democrática como campo político-cultural, espaço de lutas e conquistas democráticas e novas formas hegemônicas de poder para ir aos poucos efetivando uma prática democrática, inclusiva, ética, participativa, justa de direitos humanos, oportunizando a viabilização de políticas públicas de reconstrução digna da vida política, econômica, cultural, educacional, social que de modo geral assiste chocada os crimes contra as mulheres todos os dias.

As mulheres brasileiras de diferentes classes sócio-econômicas, etnias, raças e orientação sexual, vêm historicamente levantando bandeiras de lutas contra a sua invisibilidade, contra a discriminação e desigualdade em que foram colocadas a centenas de décadas.

Este movimento que é tão isolado e construído com suor, lágrima, sangue, sorriso e alegria é também solidário, conjunto, articulado entre sociedade civil e Estado, é que tem se transformado em políticas públicas, em leis, em novos valores, comportamentos, atitudes, respeitos e vontade de contribuir com a transformação do país.

Então ocorre algo brutal, bárbaro, estúpido que foi a morte de uma jovem mulher, mãe, assim como o estupro de uma adolescente de 13 anos e outras violências contra as mulheres que não tiveram lugar na mídia, ao mesmo tempo é publicada uma charge nesta mesma mídia contra a companheira Dilma, candidata a Presidenta da República pelo PT, que expressa o pré-conceito que cotidianamente tenta imprimir na opinião pública sobre o estereótipo de vulgarização que determinados homens ainda persistem em impingir às mulheres. Não bastasse isso, de igual forma o ator Mel Gibson também chamou sua namorada de prostituta justificado na sua forma de vestir e que ela “estaria provocando e que se fosse estuprada por negros a culpa seria dela”.

É fundamental que aqueles e aquelas que lidam no seu cotidiano profissional com a lei, com a segurança pública, com a política, com a mídia, com a educação, com a saúde que, por favor, leiam, cumpram e façam valer a Lei Maria da Penha.

Pois, “não precisamos mais consultar ninguém para concluirmos a legitimidade dos nossos direitos, da realidade angustiosa de nossa situação e do acumpliciamento de várias forças interessadas em nos menosprezar e condicionar, mesmo, até o nosso desaparecimento!” Manifesto da Convenção Nacional do Negro Brasileiro. (A Gazeta, 13 de novembro de 1945, In: Nascimento, 2003).

As leis internacionais dos direitos humanos expressam, em seus manuais, a garantia a todas as pessoas de direitos iguais, independentemente de sexo, raça, classe. Apesar destas leis, as mulheres continuam sem direitos iguais aos dos homens no que se refere à terra, à propriedade, à mobilidade, à educação, à oportunidade de emprego, de moradia, de alimentação, de culto religioso e sobre a vida de seus filhos e filhas.

As mulheres não têm nem mesmo o direito de controlar e cuidar seus próprios corpos, de sua saúde e seus direitos sexuais e reprodutivos. Em muitas culturas, os corpos das mulheres são lesados e mutilados em rituais e as mulheres são rotineiramente espancadas e até mesmo assassinadas em nome da tradição cultural, a despeito do fato de que as leis internacionais sobre os direitos humanos proibirem práticas culturais que prejudiquem estes direitos. “A violência contra a mulher é um abuso dos direitos humanos” (Okley, in Manual de Formação em Gênero, da Oxfam, 1999).

A despeito de muitos limites, o Brasil avançou por meio dos movimentos de mulheres e pelas políticas públicas que conseguiram criar e instalar as Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres e outros equipamentos de promoção, proteção e garantia de direitos, dando-lhes maior segurança para fazer denúncias de maus-tratos, agressões, ameaças de morte e poderem procurar apoio para a punição dos agressores, além da conscientização sobre seus direitos, assistência jurídica e psicológica.

No Brasil, a opressão de gênero se inter-relaciona com a opressão de raça, identidade étnica e classe. A Constituição brasileira rejeita qualquer forma de discriminação ao proclamar que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza sendo inviolável o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Assim, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil está a promoção do bem de todos e de todas, (grifo nosso), sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – II PNPM da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, como resultado da mobilização de milhares de mulheres que participaram das conferências municipais, estaduais e nacional de políticas para as mulheres, realizadas no ano de 2007, tem como princípios aprovados nas conferências a igualdade e respeito à diversidade, a eqüidade, a autonomia das mulheres, a laicidade do Estado, a universalidade das políticas, a justiça social, a transparência dos atos públicos e a participação e controle social.

O plano tem um significado importante e um papel relevante na promoção dos processos de educação, cultura e trabalho, das representações e práticas favoráveis a igualdade de gênero, seja no âmbito da elaboração de diretrizes, procedimentos e do exercício pedagógico que desmistifique a concepção preconceituosa de gênero e raça, possibilitando formulação e implementação de políticas capazes de erradicar as diversas maneiras de discriminação contra as mulheres das diferentes etnias, orientações sexuais, regiões e gerações, seja na gestão e na aplicação da legislação, incentivando culturas organizacionais não discriminatórias, da escola, das famílias, das empresas, dos meios de comunicação e dos sujeitos sociais que devem fomentar entre si e as várias gerações, novas formas de relações sociológicas que objetivem a igualdade entre as pessoas nas suas diversas dimensões biológicas e sociais.

Dentre as diversas políticas do II PNPM destacamos aqui, o quarto eixo “Enfrentamento de Todas as Formas de Violência Contra as Mulheres”, incluindo a Lei Maria da Penha e o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que é uma iniciativa do governo federal com o objetivo de prevenir e enfrentar todas as formas de violência contra as mulheres, desenvolvendo um conjunto de ações de políticas públicas amplas e articuladas, direcionadas prioritariamente às mulheres rurais, negras e indígenas em situação de violência, em função da dupla ou tripla discriminação a que estão submetidas em virtude de sua maior vulnerabilidade social.

Entre suas metas, estão à implementação de ações nas mais diferentes esferas da vida social, por exemplo, na educação, no mundo do trabalho, na saúde, na segurança pública, na assistência social, entre outras. Um dos objetivos do Pacto é promover uma mudança cultural a partir da disseminação de atitudes igualitárias e valores éticos.

O reconhecimento da violência doméstica como problema da sociedade e do Estado, as denúncias dessa violência no plano social e judicial, deram às mulheres a possibilidade de denunciarem a violência sexual e doméstica sofridas por muito tempo e engolidas como natural. Este é um dos fatos que marca a história contemporânea de nossa sociedade emergida pelo feminismo, abraçada pelos movimentos de mulheres e materializada em lei, pela política pública, conhecida como Lei Maria da Penha Lei 11.340/2006 que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do parágrafo 8º do artigo 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Domésticas e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.

As mulheres brasileiras do campo, da floresta e da cidade, de todas as raças, etnias, idades e orientação sexual gritam em alto e sonoro coro:

CHEGA DE VIOLÊNCIA. CUMPRA-SE A LEI MARIA DA PENHA!

Ane Cruz é especialista em gênero, feminista e militante do PT do RS
Aparecida Gonçalves é educadora, feminista e militante do PT do MS
Eunice Léa de Moraes é socióloga, feminista e militante do PT do PA

Fonte: Expressão Feminista

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