[Freyre] “Considerava que a “inferioridade” atribuída aos negros era consequência da ordem social escravista e não do fato de serem negros.
Não seria cego, entretanto, às políticas afirmativas, pois as distorções da escravidão terminaram por limitar as oportunidades dos negros até hoje.”
Folha – No recém-lançado livro de memórias “De Menino a Homem”, Gilberto Freyre faz uma deferência ao sr. ao criticar o “submarxismo sectariamente ideológico” dos sociólogos da USP, com a ressalva: “O que de modo algum inclui um marxista do tipo de Fernando Henrique Cardoso”. Como foi a troca intelectual e o contato pessoal entre Freyre e o jovem sociólogo FHC?
Fernando Henrique Cardoso – Tive pouquíssimos contatos diretos com GF. Recordo-me de haver feito uma visita a ele em sua casa em Apipucos [Recife], creio que na época em que eu fazia uma pesquisa sobre o empresariado nacional. Ou seja, no começo dos anos 60. O outro encontro foi em um almoço, talvez na Folha, com várias outras pessoas [em janeiro de 1979, numa reunião de colaboradores da página “Tendências/Debates”].
Surpreendi-me ao ler a referência a mim na reportagem sobre o livro recém-publicado. Imagino que ele deva ter lido algum trabalho meu e, francamente, “submarxista sectariamente ideológico” nunca fui mesmo.
O sr. integrou uma corrente que se opunha a Freyre. Em que momento exato descolou-se desse grupo e percebeu a importância e o alcance das ideias dele?
Na conferência que farei na Flip direi que Freyre nunca foi apenas um “ensaísta”, expressão dita com desprezo, como era usual.
Tinha uma metodologia não quantitativa, que lhe dava espaço para interpretações subjetivas, mas sempre procurou embasar suas análises em um conjunto factual impressionante extraído de fontes escritas e de entrevistas. Nós, os sociólogos das novas gerações, eu inclusive, deixávamos de lado esse aspecto de seu trabalho para insistir na romantização de algumas de suas interpretações que, de fato, não tinham base para se sustentar.
As poucas vezes que escrevi sobre GF tratei de qualificá-lo melhor, reconhecendo seu pioneirismo em muitos campos, sem deixar de reconhecer o lado menos consistente de algumas de suas interpretações.
O sr. definiria Freyre como um antirracialista? Como imagina que ele se posicionaria em relação às cotas para negros em universidades?
Freyre certamente não seria um “racialista”, isto é, não acreditaria que as diferenças entre as raças devessem preponderar como critério para atribuir vantagens ou desvantagens às pessoas.
Ele era um apologeta da miscigenação e, em suas análises sobre a contribuição dos brancos, negros e indígenas para a formação do Brasil, insistia em que os portugueses já tinham seu sangue misturado com o sangue negro e berbere.
Considerava que a “inferioridade” atribuída aos negros era consequência da ordem social escravista e não do fato de serem negros.
Não seria cego, entretanto, às políticas afirmativas, pois as distorções da escravidão terminaram por limitar as oportunidades dos negros até hoje. Teria, contudo, imagino, restrição a cotas com base em diferenças puramente raciais, mesmo se definidas a partir de identidades autoatribuídas.
Dito isso, GF incorria frequentemente em qualificações raciais, às vezes pejorativas, como no caso de algumas sobre judeus ou mesmo da valorização de alguns contingentes raciais negros em comparação com outros.
Como a obra de Freyre afetou os seus estudos sobre escravidão no Sul do Brasil -estudos que de certo modo rejeitavam parte das teses dele?
Afetou a partir das próprias razões para a escolha do objeto de análise: no Sul o escravo trabalhava mais nas charqueadas, quase como um operário, e não nos latifúndios; mais vivia nas cidades do que só no campo.
Não por acaso, houve um certo processo de mobilidade social, dada a integração relativamente mais fácil do negro urbano ao mercado de trabalho. Ao analisar este processo verifiquei que, a despeito disso, a discriminação e o preconceito vigiam.
Nunca aceitei, por isso, a ideia (que não foi formulada propriamente nestes termos por GF) da existência de uma democracia racial entre nós. Embora tampouco seja certo homogeneizar as relações raciais no Brasil com as vigentes, por exemplo, nos EUA.
Qual a pertinência da homenagem a Freyre neste momento histórico específico? A organização da Flip avalia que “com a crescente atuação do Brasil no cenário internacional (…), a escolha de homenagear o autor que primeiro analisou a constituição da sociedade brasileira sob perspectiva positiva promete incentivar acaloradas discussões em Paraty”. Concorda?
Dizer que Gilberto foi o primeiro a ter uma visão positiva sobre o Brasil é um exagero. Acho que José Bonifácio tremeria na tumba e mesmo alguns outros políticos e pensadores. Só para citar mais um: o conde de Afonso Celso.
Terá sido o primeiro, na década de 1930 (e mesmo antes, com seus estudos acadêmicos) a romper com o evolucionismo cientificista, com o corporativismo e com ideias de determinismo geográfico e biológico que começaram a preponderar nos anos 1920 e chegaram ao auge dos anos 30 em diante, com Oliveira Vianna.
As razões de primazia apontadas já o são de sobra para homenageá-lo.
Uma nota publicada há poucos dias no jornal “O Globo” informou que a Petrobras desistiu de patrocinar a Flip porque o sr. faria a conferência de abertura, o que foi negado pela organização e pela petrolífera. O sr. foi informado de algo? Considera que a política pode contaminar a sua participação no evento?
Só sei o que vi nos jornais. Comuniquei que se fosse verdadeira a informação, embora honrado pelo convite, poderiam sentir-se desobrigados dele, dado que manter a Flip é mais importante do que uma eventual participação minha. O convite foi reafirmado.
Quanto a imaginar que eu poderia me aproveitar do momento para “contaminar politicamente” o evento, a opinião, se verdadeira, é fruto da pobreza de espírito e do desconhecimento de minha atitude como intelectual que não confunde o plano analítico com o volitivo.