Entre palmas e vaias, cubano revela dois brasis

Médico cubano que enfrentou corredor polonês de xingamentos no Ceará foi aplaudido de pé em Brasília, na cerimônia de sanção da lei Mais Médicos; em torno da figura de Juan Delgado, País mostrou, em dois momentos, o que tem de pior e de melhor; da discriminação à solidariedade, sociedade ainda tem muito a avançar, mas calor humano dedicado à figura do profissional mostra que estamos no rumo certo para forjar homens e mulheres de um novo tipo; um tipo melhor

Já conhecido de todo o Brasil, o médico cubano Juan Delgado agora sabe que veio ao país fazer uma grande diferença. Ao ser enxovalhado no corredor polonês montado contra ele por médicos em Fortaleza, no Ceará, menos de dois meses atrás, Delgado revelou, involuntariamente, a pior face da sociedade nacional. Aquela que discrimina, exclui e faz da violência e da intimidação seus maiores argumentos.

O outro lado desta mesma sociedade apareceu nesta terça-feira 22, em Brasília – e mais uma vez Juan Delgado foi quem galvanizou alguns dos melhores sentimentos nacionais, como o do calor humano, da receptividade sincera, da sociedade que sabe conceder o aplauso consagrador. Na festiva cerimônia que marcou a sanção, pela presidente Dilma Roussef, da legislação em torno do programa Mais Médicos, o Dr. Delgado foi o principal homenageado, com um desagravo na forma de longos aplausos de pé.

O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, parece ter resumido a sensação generalizada em torno do médico cubano. “Aquele corredor polonês da xenofobia que te recebeu em Fortaleza não representa o espírito nem do povo brasileiro nem da maioria dos médicos brasileiros”, disse Padilha, coberto de razão.

HOMEM DE NOVO TIPO – Até o desembarque de Juan Delgado no Brasil, não se conhecia de perto, por aqui, esse modelo de ser humano chamado homem de novo tipo. E muito menos se tinha notícia de alguém que fosse capaz de corporificar essa expressão. O termo só era dominado pelos um tanto familiarizados com a literatura marxista-leninista ou com seus pilares filosóficos. A combinação de livros, textos e pensamentos deixados pelo filósofo alemão Karl Marx e pelo líder da revolução bolchevique de 1917, na Rússia, Vladimir Ilitch Ulianov, o Lenin, apontaram para a formação, por meio do regime socialista, do tal homem de novo tipo.

Quer imaginar como é um homem de novo tipo? Pense em Juan Delgado e lá estará ele.

Em lugar de ater-se exclusivamente aos benefícios pessoais que sua profissão pode lhe render, Delgado mostrou pela fleugma com que enfrentou o corredor polonês em silêncio e com altivez que sua visão sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre o seu papel no mundo lhe garantem, que é bem diferente dos seres, digamos, de ‘velho tipo’ que o destrataram. Chamado de “escravo” pelos médicos do Ceará, calou-se até ter a oportunidade de responder apenas quando questionado por jornalistas: “Sim, sou um escravo da saúde”.

Acreditavam Marx e Lenin que somente a criação de uma sociedade sem classes sociais, na qual o objetivo de todos e de cada um seria o bem estar coletivo, em lugar da mera busca por resultados individuais, poderia gerar esse homem novo.

A construção desse novo homem deu errado, sabe-se, mas não deu de todo errado.

SERVIR ANTES DE SERVIR-SE – Em Cuba, que pode ser chamada de ditadura, que tem presos políticos e problemas de diferentes ordens, passam a saber os brasileiros que, sim, há uma geração de seres humanos mais atenta ao servir do que ao servir-se. Os médicos cubanos, em particular, são influenciados, até hoje, pelo programa de medicina familiar, comunitária e coletiva implantado pelo também médico Ernesto Guevara. O Che foi, sem dúvida, um embrião e propagador do homem de novo tipo.

Juan Delgado e seus colegas são a prova viva disso. A esta altura dos acontecimentos, eles já poderiam estar arrependidos de ocuparem os rincões, inquietos com boa parte de seus novos salários indo parar nos cofres do governo cubano ou, até mesmo, realizando movimentos para articular deserções. Afinal, pelo que se pinta na mídia tradicional, qualquer lugar do mundo é melhor para se viver do em Cuba. Porém, os médicos cubanos continuam fiéis e ligados ao regime socialista da ilha cercada de capitalismo por todos os lados, não apenas no Brasil, mas em todos os países nos quais exercem o mesmo papel que estão desempenhando aqui: o de ocupar espaços que os profissionais locais se recusam a atender.

O favor que o Dr. Delgado já prestou à sociedade brasileira é inestimável. Em dois momentos, na vaia e no aplauso, ele mostrou o quanto temos de melhorar para entender mais sobre humanismo, solidariedade e fraternidade. Valores que muitos dos brasileiros nem sabemos o que realmente significam, mas que outros tantos, certamente a maioria, ainda reconhecemos como fundamentais para se viver em sociedade. Seja ela socialista, como a que forjou o caráter do Dr. Delgado, seja ela capitalista, à qual pertencem ao médicos cearenses do corredores polonês – e também os profissionais de branco que, nesta terça 22, em Brasília, reconheceram o tamanho do erro de seus colegas e o consertaram com o longo aplauso.

A seguir nessa marcha, sem dúvida a sociedade brasileira está no caminho certo para evoluir, objetivamente, em todos os sentidos. O bater de palmas significou um grande mea culpa sobre o preconceito e a discriminação, e um maior ainda ‘muito obrigado, dr. Delgado’.

Fonte: Brasil 247

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