Entre racismo e separações, ela reconstruiu a vida na Itália

Enviado por / FontePor Edison Veiga, do DW

Marize se mudou para a Úmbria há 25 anos sem dominar o idioma e com um casamento arranjado. Hoje é cuidadora de idosos e pretende um dia voltar a abrir um salão de beleza.

Os 25 anos vividos na Itália imprimiram marcas até no jeito de falar da baiana Marize Soares, de 59 anos. Seu português tem uma cadência própria, e as frases são salpicadas de expressões italianas. Se hoje ela não se vê morando em outro lugar que não seja a Itália, em 1996, quando chegou a Narni, cidadezinha da Úmbria, comunicar-se em outro idioma era uma tarefa impossível.

A decisão de mudar de país foi por conta de uma prima que já vivia na Itália. Nos anos 1990, Marize — formada como técnica em análises químicas, sem exercer essa profissão — tinha um salão de beleza em Salvador. “Ela vinha ao Brasil, fazia cabelo comigo e dizia que na Itália tudo era maravilhoso e tal”, recorda.

Separada do primeiro marido e mãe de três filhos pequenos — Paloma tinha 12 anos, Rafael, 10, Vinícius, 9 —, Marize acreditou nas histórias da prima e pensou em tentar a vida em solo italiano. 

O começo foi decepcionante. “Ela [a prima] só tinha contado mentira. Falava que era tudo maravilhoso, funcionava bem, que tudo era muito bom. Na verdade ela tinha um marido que a sustentava”, diz.

Marize diz que não tem mais contato com a prima. Relata que, quando chegou, já tinha um casamento arranjado para que, dentro dos três meses da validade do visto de turista, sua permissão de viver na Itália fosse convertida em direito garantido a cônjuges de cidadãos. “Me casei e fiquei. Mas depois o casamento deu errado. Ele era uma pessoa problemática. Eu continuei aqui e segui minha vida”, comenta.

Preconceito racial

O casamento foi fundamental porque, para Marize, era inadmissível optar por um caminho seguido por muitos imigrantes brasileiros — o da vida irregular, fora da legislação. “Não vivi vida maluca, não. Minha vida no Brasil sempre foi difícil e corrida, mas certinha”, repete. 

Marize ressalta que o marido italiano era um exemplo de honestidade e credita às diferenças culturais o fracasso do casamento. “Ele não era preparado para se casar com alguém de outra cultura. Eu sempre fui mulher independente, sou baiana, venho de um país onde as mulheres são livres. Fui para uma cidade pequena, com uma cultura muito fechada”, lembra.

“No começo, tudo é lindo, maravilhoso. E quando a gente não entende a língua e o que os outros dizem, fica só com a parte deslumbrante. Eu nunca tinha saído do Brasil. Mas depois, com a convivência, vi que tudo era mais difícil”, conta.

A brasileira destaca que o preconceito racial foi algo que a fez sofrer muito. E não só dentro da família do então marido. “[Naquela época] não tinha nenhum brasileiro na cidade. Na Bahia eu era morena, eu sou mulata. Aqui logo passei a ser vista como negra. E o pessoal me parava para me tocar, como se eu fosse uma extraterrestre”, relata. “Eles diziam: ‘ó, que pele’. Me olhavam. Tocavam. Aquilo me deixava arretada da vida, pensava: ‘mas onde é que eu tô’?.”

E, recorda Marize, perguntavam a ela se no Brasil tinha luz elétrica, se tinha água encanada. “Isso me deixava virada”, diz. Quando reflete sobre o passado, ela conclui que esse tipo de abordagem ocorreu porque “as meninas [do Brasil] que vinham [para a Itália] naquele período vinham para trabalhar com dança, nessa área… Tudo menina da noite”. 

“Aí me viam bonitinha de pele escura e pensavam que estava disponível, que poderia dançar, mostrar o físico. Ou que era prostituta”, acrescenta. “Eu sou enquadrada. Não venho de família em que a gente fica dançando e se mostrando. Para mim a coisa mais difícil foi porque não sabia que tinha esse preconceito.”

Mas o estopim mesmo para a separação do marido italiano foi o fato de que ele se opunha ao plano de Marize de trazer os filhos — que haviam ficado no Brasil sob os cuidados de sua mãe e de sua irmã. 

A mais velha, Paloma, ela conseguiu convencê-lo e trouxe oito meses após a mudança. “Os outros dois só vieram depois que me separei. Não tinha condição de trazer antes. Meu marido era filho único e dependia da mãe. E a mãe interferia em tudo. Enquanto ela fosse viva, eu não poderia trazer os outros filhos”, reclama. “Essa foi uma das razões pelas quais me separei.”

Espírito empreendedor

A essa altura, Marize já estava reconstruindo sua independência financeira na Itália. Começou a trabalhar em um salão de beleza na cidade — “meu dom é ser cabeleireira”, garante — e, com o dia a dia, aos poucos passou a dominar o idioma. 

O casamento durou dois anos e meio. Como o dinheiro que ganhava cortando e arrumando cabelos era pouco, Marize se tornou babá de “uma família importante da cidade”. Foi assim que terminou de criar os filhos e fincou raízes de vez na Itália.

No ano 2000 decidiu investir as economias acumuladas e abriu seu próprio salão. Durou até 2009. “Precisei fechar com a crise [econômica que atingiu principalmente a Europa no período]”, conta. Chegou a voltar para o Brasil por dois anos, mas não se adaptou e, como diz, decidiu “reentrar” na Europa. 

Duas décadas e meia depois de emigrar, Marize faz parte dos 161 mil brasileiros que oficialmente residem na Itália. Segundo dados do do Ministério das Relações Exteriores, isso faz com que o país seja o sexto principal destino para brasileiros que decidem viver no estrangeiro. A Itália experimenta um crescimento grande desse contingente — em 2018 eram menos de 86 mil brasileiros. Isso se explica, em parte, por a legislação italiana permitir o reconhecimento de cidadania por ancestralidade — não importa o número de gerações, desde que sejam obtidos documentos que provem a descendência. 

É um fenômeno que Marize notou. Hoje ela participa de comunidades no Facebook que congregam brasileiros que vivem na Itália e, mesmo no dia a dia, reconhece vários conterrâneos no ir e vir. 

Ela ganha a vida como “badante”, ou seja, cuidadora de idosos. “Atendo uma senhora de 90 anos”, conta. Não mora mais em Narni — agora vive em Espoleto, também na Úmbria. Dos três filhos, apenas a mais velha, Paloma, seguiu vida na Itália. Casou-se com um italiano, com quem tem duas filhas — uma de 14 anos, outra de 7. 

Marize gosta de estar perto das netas e acalenta o sonho de um dia abrir novamente um salão de beleza. Desta vez, tendo a filha como sócia. “Ela já trabalha como cabeleireira, é jovem e muito competente”, comenta. “Quem sabe quando as coisas melhorarem, depois que o coronavírus passar?”

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