Entrevista Júlio Braga: “Sou criança em relação a esse mundo milenar”

O babalorixá e antropólogo Júlio Barga conta suas experiências no campo da religião e da academia

Por Cleidiana Ramos Do mundo Afro

Os 42 anos da experiência de magistério em universidades como a Federal da Bahia, a Estadual de Feira de Santana e a Nacional do Zaire forjaram o discurso envolvente de Julio Braga, 72. Doutor em antropologia e babalorixá, ele domina o código acadêmico, mas também o da oralidade cheia de sabedoria das religiões afro-brasileiras. Transitar entre esses dois mundos parece confortável para o autor de 11 livros, dentre os quais Candomblé: a cidade das mulheres e dos homens, com lançamento previsto para o dia 7 de fevereiro, na biblioteca pública de Itaparica. Além desse, Julio Braga já prepara uma coletânea de poemas que divide com amigos do Facebook e que chama de “prosemas”, misturando poesia e a prosa em que é mestre. Para perceber isso, basta ouvi-lo narrar a aventura da primeira viagem internacional para Dakar, Senegal, onde tomou forma a melhor definição que encontrou para si mesmo: o antrópologo na encruzilhada, título de um dos seus livros. Nessa entrevista, ele conta que, em sua trajetória, o estranhamento, próprio de quem vê a encruzilhada, não veio do povo de santo ter dentre os seus pares um homem da academia, mas, curiosamente, desta. “Eu era professor e macumbeiro. Foi difícil”. Nada que curvasse um filho de Iansã, orixá a quem é consagrado, e de quem, em suas pesquisas, descobriu novas faces, como a da lealdade.

O senhor formou gerações de cientistas sociais. Aposentou-se após 42 anos de ensino na Ufba e Uefs, de onde saiu em 2010. Qual é a sensação de ficar longe da sala de aula?

É uma sensação de perda. Mas eu sou aposentado, inativo nunca (risos). Tenho um candomblé, o Terreiro Axeloiá, que me dá prazer em administrar. Além disso, continuo minhas pesquisas e já estou com o livro Candomblé: a cidade das mulheres e dos homens pronto. Ele será lançado dia 7, em Itaparica. Esse livro objetiva um foco distinto do trabalho de Ruth Landes (A Cidade das Mulheres), mas a ele não se opõe. Pelo contrário, procura verificar em que medida, ao lado das mulheres, os homens contribuíram para manter e consolidar as religiões afro-brasileiras na Bahia. Andei também fazendo umas tentativas poéticas no Facebook, que chamo de “prosemas”. Esse é o título da coletânea que vai trazer 50 desses textos. Ela deve sair no primeiro semestre desse ano ao lado do livro Dá-me licença aí Sereiá – A pesca de xaréu na Bahia.

O senhor participou de um período rico da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da Ufba. Conviveu com personalidades como Pedro Agostinho, Vivaldo da Costa Lima.

Entrei na universidade muito jovem. Primeiro, eu fiz filosofia. No meu terceiro ano como estudante da Ufba, o Ceao (Centro de Estudos Afro-Orientais) resolveu, em 1963-1964, retomar os estudos afro-brasileiros, numa perspectiva antropológica mais elaborada a partir de pesquisa de campo extremamente cuidadosa do ponto de vista metodológico. E eu entrei nessa plêiade de grandes nomes como pesquisador. Dez dias depois de terminar a licenciatura, fui morar na África. Viajei em 1967.

Qual foi o seu primeiro destino?

Fui para Dakar, no Senegal. Não sabia falar francês e enfrentei minha primeira viagem de avião. Embarquei para o Rio , de onde o voo sairia. Mas aí o avião quebrou e nós fomos levados para o Hotel Glória. Imagine eu, pobre, instalado naquele hotel. Quando seguimos viagem, ocorreu uma escala na Libéria, onde estava acontecendo um golpe de Estado, e nos levaram para um hotel com escolta policial. Finalmente, cheguei a Dakar. O problema é que a pessoa que ficou de me esperar aguardava meu desembarque para dias antes. Como disse, não falava francês. Aí, como bom retirante, sentei na mala porque assim não tinha como ninguém roubá-la. De madrugada, chegou um avião de Buenos Aires onde vinha um francês que era professor da Universidade de Dakar, para onde eu havia sido enviado. Ele me levou para o campus da universidade. Tempos depois, Pierre Verger, que regularmente ia à África, apareceu por lá e me convenceu a ir para o Benim.

Foi onde começaram suas pesquisas?

Eu tinha começado uma pesquisa no Senegal, mas por sugestão de Verger, fui para Cotonou, no Benim, e depois Porto Novo, que fica na fronteira com a Nigéria. Mas aí Verger, que tinha me recebido lá, teve que viajar e fiquei um pouco isolado. Aí aconteceram coisas que redefiniram meu projeto existencial. A primeira é que tive malária e perdi 25 quilos. Além disso, namorava uma mulher extraordinária e muito inteligente. Eu a acompanhava em suas pesquisas , mas aí aconteceu um acidente trágico. Uma criança atravessou de bicicleta na frente do carro dela. Foi terrível. Ela teve que ir embora e sofreu muito com isso. Aí conheci uma pessoa que me disse para me cuidar espiritualmente. Verger voltou e fui passar um tempo na casa dele em Sakatê (região entre Nigéria e Benim). Então um sacerdote disse que eu tinha que fazer a obrigação “de cabeça” e outra como ojé, que é aquela que dá o título a quem passou pela última etapa iniciática ao culto de babá Egum, um espírito ancestral. E assim o fiz. Em 1968, foi a vez da minha obrigação de cabeça e Iansã veio para dizer que meu nome era Oyá Tundé, que significa “Iansã voltou”. Comecei minhas pesquisas sobre a religião dos orixás. Obviamente, já como filho de Iansã, me concentrei nas coisas desse orixá. Foi assim que descobri que Iansã é um orixá das águas para descontentamento de muita gente no Brasil (risos). Ela é a rainha do Rio Níger. A históra maior de Iansã está entrelaçada com a travessia que ela faz do país nupé, atravessando o Rio Níger para se encontrar com Xangô no reino de Oyó.

Como foi para um homem de ciência se tornar um sacerdote?

Vou contar uma história como os africanos fariam, que é paradigmática para explicar minhas dificuldades. Eu me candidatei a diretor da faculdade (de Filosofia e Ciências Humanas), nos anos 80, numa época em que professores, alunos e funcionários podiam votar. O candidato mais forte era o professor Mário Nascimento, que acabou se tornando o diretor porque eu fui vítima de um jornalista, veja só. Ele estava fazendo matéria para um jornal da universidade. Mário Nascimento disse que, se fosse eleito, como era católico, mandaria celebrar uma missa. Eu disse que, como era de candomblé, iria sacrificar dois galos na porteira da faculdade. Isso caiu como uma bomba. Eu fui eleito, mas a congregação não permitiu a minha posse. Acho que isso é bem sintomático das dificuldades que são colocadas para uma pessoa que zelou pela inteligência, pela interpretação das coisas etnológicas e, ao mesmo tempo, se entregou de corpo e alma, muito mais de alma, à religião afro-brasileira. Havia escárnio a cada instante. Até o próprio departamento era intolerante.

E do lado do povo de santo? Ninguém nunca lhe viu com desconfiança por ser um pesquisador ?

Nunca. Porque nunca perguntei nada a ninguém como antropólogo. Eu tive a felicidade de, ao voltar da África, ser recebido no Aganju, casa de Obaraín (nome sagrado do babalorixá Balbino Daniel de Paula) e ter vivido 15 anos ininterruptos lá dentro. Eu vivi o candomblé pela espinha, ou seja, por dentro.

Dos elementos que formam o arquétipo de Iansã, com quais se identifica?

(Risos, seguidos de um curto silêncio) Eu confesso que ninguém havia me feito uma pergunta dessa natureza, o que me obriga a refletir sobre o que vou dizer. Mas como tive um conhecimento diferenciado sobre a mítica de Iansã, posso colocar a sinceridade. Se no candomblé não sei uma coisa, digo que não sei, até porque, como religioso, devo saber que se mente para o ser humano, mas não para o orixá. Iansã foi uma mulher extremamente sincera e a esposa devotada de Xangô. Quando ele perdeu a guerra, Obá e Oxum não o acompanharam já como desterrado. A única que o seguiu, foi Iansã. Essa leitura é diferenciada do que se recompôs aqui, e fez do arquétipo de Iansã o de uma mulher safada. Na verdade, ela teve muitos amores, mas nunca ao mesmo tempo. Eu tive muitas mulheres, mas amei a todas e fui sempre sincero. Talvez tenha escorregado algumas vezes, mas, como não tem pecado no candomblé, logo me redimi (risos). Dizem que na vida a gente tem que plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro. Pois eu plantei uma fazenda de cacau, tenho nove filhos e escrevi 11 livros. Portanto, acho que estou a salvo e, com certeza, com lugar guardado ao pé de Olorum. Se bem que espero que demore para chegar lá, pois como diz uma cantiga da nossa tradição, ainda sou criança em relação a esse mundo milenar extraordinário.

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