por Júnia Puglia foto André Frutuôso
Em seu novo livro, “Racismo no Brasil e afetos correlatos” (Conversê Edições), Cidinha da Silva solta o verbo e os adjetivos em observações e análises diretas, profundas e contundentes sobre o que rola na nossa “casa grande e senzala” de todos os dias, aquela que alguns se esforçam para eliminar, enquanto muitos preferem alimentar. Com sua lupa voltada para os meios de comunicação, faz uma varredura completa. Oferecemos um aperitivo.
NR – É possível afirmar que há hoje mais sinceridade e transparência no que os meios de comunicação mostram sobre as relações raciais no Brasil do que, digamos, dez anos atrás?
Cidinha da Silva: Penso que “sinceridade e transparência” são expressões muito generosas e muito abrangentes. Há exceções que se enquadrariam nessa definição, mas, de um modo geral, vejo dois outros movimentos simultâneos. O primeiro é pautado por algumas mudanças positivas (presença temática e de sujeitos negros, em certos casos como protagonistas) e o segundo é uma reação conservadora, principalmente da televisão, orientada pelo que se discute na blogosfera e redes sociais. O caso recente da apresentadora Fernanda Lima/FIFA é elucidativo. Vejamos: 1 – aventaram-se os nomes de Camila Pitanga e Lázaro Ramos (atores negros) para apresentarem o sorteio dos grupos da Copa. 2 – Vazou a informação de que a FIFA os teria preterido em favor do casal de modelos brancos Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert. 3 – Houve reações generalizadas na Web acusando a FIFA de racismo. 4 – A FIFA responde às acusações por meio de nota que justificava a escolha dos modelos, embasada em experiência internacional e trabalho anterior para a instituição. 5 – A justificativa não cola e então Fernanda Lima vai a campo, questiona a reação do povo na web, defendendo-se como cidadã que paga impostos e “branquinha” perseguida que “não tem nada a ver com o racismo”. 6 – Não contente, ela usa o programa de televisão do qual é apresentadora para responder a um debate que ocorreu em blogues e nas redes sociais. Uma reação típica de modernização conservadora, que considera uma discussão de ponta, de criticidade apurada, como subsídio para produção de mais uma peça de escárnio aos negros brasileiros na TV. Fernanda Lima se veste de colonizadora, canta e dança “cada macaco no seu galho” esvaziando o sentido político da letra: “esse negócio da mãe preta ser leiteira / já encheu sua mamadeira / vá mamar noutro lugar”! A apresentadora ridiculariza o posicionamento que problematizava a escolha da FIFA, transforma o conflito racial em piada e reforça a crença de que o racismo é um problema dos racistas e dos discriminados, não dela, uma “simples pessoa do bem”.
NR – O Emmy dado à telenovela “Lado a lado” atropelou a campeã de audiência “Avenida Brasil”. É um sinal dos tempos?
Cidinha da Silva: Não creio. Penso que seja um sinal alvissareiro, um recado vindo de fora sobre o que deveria ser valorizado e reconhecido aqui dentro, mas não chega a ser um sinal dos tempos. Tecnicamente são dois produtos televisivos excelentes, com interpretações memoráveis de grandes atrizes e atores, entretanto, Lado a lado tem o requinte do tema e da abordagem inovadora das relações raciais e de gênero neste tipo de produto, para ater-me a apenas duas qualidades da novela. Mas não creio que chegue a ser um sinal dos tempos.
NR – Remar, remar, remar e chegar no concurso para eleger a nova Globeleza. Por que a televisão insiste no retrocesso? O público aprecia mesmo?
Cidinha da Silva: Porque a televisão se autocompreende, se projeta e se perpetua como máquina de produção de bobos, de gente acrítica que mantém o status quo, principalmente no que concerne às assimetrias raciais. O papel que a Globo atribuiu a Sheron Mennezes (e ela aceitou) nesta edição da Globeleza é muito triste. Assim o descrevi em crônica recente, intitulada “A roda gigante e o motor da casa grande”: “Em uma das salas da casa grande, outra atriz negra da novelaLado a Lado surpreende a gente altiva ao apresentar-se como pregoeira de um conjunto de bundas e pernas negras naturais (hiper malhadas) ou siliconadas: glúteos, vasto lateral, bíceps da coxa, trato iliotibial. Acém. Cupim. Músculo. Coxão duro. Paleta. E não se sabe que parte da imagem é mais triste e deprimente, a carne de segunda e seu corte de costas ou o filé mignon disfarçado, maquiado, bem vestido, de sorriso angelical e dengoso a serviço do leilão de mulheres no mercado dos corpos.”
NR – Você é bem jovem ainda e já tem uma obra considerável publicada, tanto em livros quanto na internet – sem falar no teatro. Como é lidar com os vários meios e linguagens ao mesmo tempo?
Cidinha da Silva: Obrigada pelo “bem jovem ainda”, Júnia. Eu gosto do dinamismo, ele me alimenta muito e é uma necessidade. Eu comecei a publicar literatura tarde, então tenho muitos projetos acumulados e não tenho mais tanto tempo para desenvolvê-los, porque não comecei aos vinte, comecei aos 39. Por isso trabalho muito e disciplinadamente no pouco tempo deixado pelo trabalho que garante a sobrevivência econômica para dedicação à literatura. A dramaturgia era um sonho que ora realizo com Capulanas Cia de Arte Negra e Cia Os Crespos, grupos de teatro negro de São Paulo. Tem coisas lindas sendo ensaiadas para 2014, tão lindas quanto “Sangoma” e “Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas”, as duas peças deste 2013.
NR – Como você consegue manter a contundência do texto num ritmo tão intenso? Fartura de material nesse nosso Brasil complicado?
Cidinha da Silva: O amigo e bailarino Rui Moreira diz que minha caneta é de Ogum, deve ser por isso. Mas minha meta é ser cada vez mais água, busco a beleza, a alegria, a poesia na escrita. Quero estetoscópios para descobrir a vida que escapa do cotidiano endurecido (e enfurecido). Quero uma espada banhada em mel na mão esquerda e uma caneta de Oxum na outra para traçar o caminho.