‘Era muito tímido. Acho que me apaixonava três, quatro vezes por dia’


Mia Couto:

O escritor moçambicano Mia Couto deu uma entrevista ao jornal português ionline.pt, na qual fala de si e das suas obras. Pela importância da entrevista, passamos a publicá-la na íntegra.

De onde vem o nome Mia?

Vem de um convívio que eu tinha com gatos, com dois, três anos. É óbvio que eu não me lembro, mas os meus pais contam-me, e têm fotos para comprovar, que eu comia com gatos, dormia com gatos, pensava que era um deles. Eram gatos vadios que foram para a nossa varanda e ali ficaram. E um dia decidi que queria ser chamado Mia. Eles aceitaram e passei a chamar-me assim. Acho que foi o meu primeiro acto de ficção.

Estudou Medicina durante dois anos, mas desistiu para ser jornalista, em 1974. O que é que aconteceu?

Fui para Medicina porque queria ser psiquiatra. Mas depois desiludi-me, porque tinha uma visão romântica, daquela coisa da psicanálise, do tempo em que se está com alguém de forma à terapêutica ser sobretudo relacional. Quando visitei o hospital psiquiátrico, percebi que a conversa era outra. A clausura e a violência… e já estava muito ligado aos movimentos pela independência, fazia mais política do que estudava. E a Frelimo, que na altura ainda estava na clandestinidade, disse que eu devia ser jornalista, que devia infiltrar-me – o termo usado era este – e eu comecei a minha carreira como infiltrado.

E foi uma carreira duradoura.

Eles sugeriram que eu ficasse só um ano e depois retomava os estudos, porque o país precisava de médicos, e acabei por ficar 11 anos. Foi óptimo, porque aprendi muito e uma ou outra coisa que foi muito importante para mim.

Chegou a ser director da Agência de Informação de Moçambique.

Na altura era preciso criar uma agência que desse luz à nossa luta. No momento em que ela estava a ser instalada, viajei por todo o país para criar uma rede de contactos e correspondentes. Foi muito interessante.

Como estava o espírito moçambicano na altura?

Foi um momento épico, a quase totalidade do país estava a favor do que estava a acontecer. A Frelimo na altura era o país. O mal é que se convenceu de que era mesmo. Havia uma festa permanente, uma espécie de um sonho, em que tudo era possível. Mas é óbvio que depois esses momentos têm uma duração muito breve. Vivíamos numa espécie de nuvem e pôr os pés no chão é sempre duro.

Porque decidiu deixar o jornalismo? Ficou desiludido?

Foi uma aprendizagem, mais que uma desilusão. Aprendi que esse projecto de mudar o mundo e torná-lo mais justo não funciona por modelos ou imposições externas. Tem de ter tempo e fazer-se de uma geração para a outra. Saí, primeiro, por uma razão ideológica. Quando percebi que não era exactamente aquilo, decidi que não queria ser cúmplice dessa mentira. Ainda voltei para Medicina, mas durou dois dias, vi que não era o que queria fazer. Num país como aquele, ser médico era uma obrigação que eu não podia suportar. Seria uma entrega missionária.

E foi estudar Biologia. Porquê?

Tinha essa paixão e pensei que poderia trabalhar com os grandes mamíferos nas reservas. Junto da minha cidade natal existe o parque Gorongosa, que é uma coisa extraordinária, e a minha paixão era trabalhar nesse ambiente, distante da cidade e das minhas próprias referências.

Aos 14 anos teve os seus primeiros poemas publicados no jornal. Em que é que um miúdo tão novo se inspira?

A maior parte da inspiração eram as meninas por quem eu me apaixonava. Platonicamente, porque eu era muito tímido, acho que me apaixonava três, quatro vezes por dia. Mas não tinha essa capacidade de sair de mim e falar, apresentar-me ao mundo. Então vivia tudo isso em ficção. E lembro-me que um dos poemas publicados foi para o meu pai, que era poeta. E a minha mãe uma contadora de histórias.

Tem irmãos?

Tenho dois, eu sou o do meio. E tenho aquela síndrome de irmão do meio. Acreditava que era muito mal-amado, mas obviamente fui tão amado quanto os outros.

Mas por que esse sentimento?

Lembro-me que… nós não éramos ricos. O meu pai era jornalista e teve de fugir de Portugal por razões políticas e nós tínhamos uma situação muito regrada. E era assim que eu pensava e não era verdade: quando havia bife, os maiores eram para o mais velho porque precisava e para o mais novo que estava a crescer e também precisava, e eu ficava com o pequeno. Mas o mais importante é que vivíamos numa casa da poesia, muito longe do mundo e da realidade, e isso marcou-nos muito a todos.

De que forma?

Vivíamos num mundo à parte. Os meus pais contavam muitas histórias, porque era uma maneira de visitarem Portugal. Conheci o país através de histórias.

De onde são os seus pais?

São do Norte. O meu pai da zona do Porto e a minha mãe de Trás-os-Montes. Foram para Moçambique no princípio dos anos 50 e nós todos nascemos lá.

Em 1971 mudou-se da Beira, onde nasceu, para Maputo. Foi sozinho? Como foi a mudança?

Fui sozinho. Tinha 16 anos. Foi um renascimento. E para mim, que era um miúdo tímido, com muito pouco jeito para viver e que inventava uma vida à parte, foi óptimo. Uma escola de vida, de realidade. Tenho uma filha que vem agora estudar para Lisboa, tem 21 anos, e a grande questão para mim não é que ela aprenda, faça um curso, mas que aprenda a gerir o seu tempo, a valer-se a si própria, saiba conquistar aquilo de que precisa. Essa é a grande escola, não me importa que ela não tenha uma grande nota.

Disse que era tímido. Os seus irmãos aborreciam-no por isso?

Os meus pais usavam os meus irmãos como termo de comparação. “O teu irmão tem estes anos e já vai às compras sozinho e traz tudo certo”. O meu pai, sendo do Porto, chamava-me morcão. Eu era um tipo pasmado, distraído. A certa altura, deu-me um bocado de jeito, porque era dispensado das tarefas domésticas, porque partia, estragava, perdia. Os meus irmãos olhavam para aquilo como uma meia verdade, “este tipo já está a inventar para tirar partido disto”…

Nos seus livros, percebe-se que em Moçambique a ligação aos antepassados é muito importante. Também vive isso?

Vivo, mas de outra maneira. Tenho uma mistura de grandes coisas, de sistemas, com esse mundo não visível. Por um lado, sou materialista, no sentido em que acredito na matéria. Não tenho religião, mas sou muito religioso.

Como é que isso funciona?

Não tenho crença num Deus particular, não sigo uma religião, mas preciso muito de estar em comunhão com o não visível. Uma pessoa quando pensa em não visível pensa logo em espíritos, mas, por exemplo, a beleza e a harmonia são aquilo que não está imediatamente visível. A religião africana, que nem tem nome, a gente chama-lhe animista, mas não é, acaba por ser a tolerância. Em todas as religiões moçambicanas há uma coisa em comum que é rezar aos antepassados. Os deuses são os antepassados de cada um. Eu tenho os meus, você tem os seus e nenhum é melhor que o outro. Há coisas que existem em África que são muito felizes. Por exemplo, a ideia de que alguns animais têm alma. Isso ajuda a descentralizar o homem. Achamos sempre que somos únicos e especiais, o topo da evolução, e não é nada disso.

Que animais, segundo os moçambicanos, têm alma?

A hiena, o macaco-cão, os hipopótamos, o leão. E rezam a esses espíritos dos animais. Gosto disso, põe-nos em pé de igualdade em termos espirituais, ou seja, aceitar que o outro tem espírito e que temos de lhe pedir favores. Isso é fantástico.

 

 

 

Fonte: O País

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