Especialistas defendem acesso à internet e tecnologias de ensino como bens públicos

FONTEPor Maria Fernanda Ziegler, da Agência FAPESP
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A educação tem sido uma das grandes vítimas da pandemia em todo o mundo, sobretudo no Brasil. O fechamento de escolas, a falta de acesso à internet, de dispositivos eletrônicos e o atraso em alavancar planos de ensino remoto terão impacto em toda uma geração de estudantes e no futuro do trabalho, resultando em um aumento brutal de desigualdades.

“Neste momento, passados 12 meses de pandemia, quando o Brasil perde por dia cerca de 2 mil pessoas para a COVID-19, é necessário que haja um debate na sociedade sobre o acesso ao wifi e à internet banda larga como um bem público, assim como é a água e a energia. Isso é particularmente importante neste momento da pandemia, com benefícios importantes para todos, especialmente para os mais vulneráveis. Garantir esse acesso permite avançar em tecnologias digitais de ensino remoto”, disse Lorena Barberia, pesquisadora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), durante o webinário Education: COVID-19 and social inequalities”, no dia 3 de março, o 9º da série FAPESP COVID-19 Research Webinars, organizada com apoio do Global Research Council (GRC).

Para a pesquisadora, que liderou um estudo sobre o ensino durante a pandemia nos diferentes Estados brasileiros, sobretudo neste momento de pico de hospitalizações e morte o debate precisa ir além da dualidade de abrir ou não as escolas. “A questão é mais profunda, o problema ainda não acabou e já está trazendo consequências duradouras”, afirmou.

De acordo com Barberia, além da demora em introduzir programas de ensino remoto em todos os Estados – a média foi de mais de um mês para alavancar esse tipo de ensino –, o que se viu em 2020 foram programas fracos, que não apresentaram soluções para ampliar o acesso.

“Poucos Estados no Brasil aumentaram o acesso ao ensino remoto. Falta internet e muitos alunos não têm computador nem celular. Muitas famílias têm apenas um celular para cinco ou sete pessoas dividirem, o que obviamente impede que um aluno acompanhe as aulas”, disse.

Com isso, criou-se um abismo de desigualdade entre a parte da população que teve acesso à educação e outra que nem sequer teve um dia de aula em todo o ano. “A educação já era extremamente desigual no Brasil e isso se ampliou ainda mais no ano passado. Muitas escolas continuaram com as aulas, mas apenas para os que tinham acesso à internet.”

Barberia alertou que a avaliação sobre a reabertura das escolas deve ser diferenciada, considerando as heterogeneidades no acesso e a intensidade da cobertura do ensino remoto. Uma sugestão seria, por exemplo, desenhar programas para os que tiveram algum tipo de aula remota e os que não tiveram. “Muitos ficaram meses sem nenhum tipo de aula e outros começaram a ter aula pela televisão. Mas é completamente diferente para aqueles que tiveram acesso ao ensino remoto por várias horas e com supervisão. Acredito que os grupos com menor acesso ao ensino devem receber atenção especial. Há desigualdades importantes.”

EUA: os efeitos da segregação

Nos Estados Unidos, as desigualdades também se ampliaram ainda mais com a pandemia. “Não é uma coincidência que haja uma desigualdade educacional entre os diferentes bairros e vizinhanças de uma mesma cidade. Isso tem a ver com a nossa história de segregação racial e econômica”, afirmou Prudence Carter, da University of California, em Berkeley nos Estados Unidos, e que também participou do seminário.

De acordo com a socióloga, muitas das escolas que não fecharam nos Estados Unidos optaram por se manter abertas porque são empresas. “As escolas públicas, por causa da segregação econômica e racial, fecharam e então vimos as consequências da segregação digital. Nem todas as casas têm internet, um computador ou um responsável que possa ajudar os estudantes.” Carter também defendeu que o acesso à internet seja considerado um bem público.

A pesquisadora ressaltou que os desafios impostos pela pandemia são múltiplos – uma intersecção da sociologia, educação, saúde e economia – e, por isso, precisam de múltiplas soluções de políticas públicas.

“Já havia uma preocupação grande com a desigualdade histórica, recriada e aumentada com a pandemia. Há ainda uma preocupação grande com o gargalo de oportunidades entre os estudantes. Mas, em vez de pensar apenas na perda, precisamos pensar em como reverter isso e também repensar o que esperamos dessa geração. O que pode ser feito? Precisamos repensar a maneira de ensinar de maneira remota, porque ela é diferente, precisa de maior interação e isso em todos os níveis, do ensino fundamental até a universidade”, afirmou.

Carter apresentou os resultados de um estudo do PEW Research Center que mostrou como a questão da reabertura das escolas também foi politizada nos Estados Unidos. “Entre a população negra, latina e asiática, 80%, 69% e 72%, respectivamente, preferiam esperar a reabertura das escolas até que todos os professores fossem vacinados. Entre os brancos esse percentual foi de 51%. Há uma diferença grande também quanto à renda. Mas o principal destaque é que essa questão foi, sobretudo, muito politizada. Enquanto 79% dos democratas preferiam esperar a vacinação dos professores, apenas 34% dos republicanos tinham a mesma opinião”, relatou.

França: educação e confinamento

Na França, o período de dois meses em que crianças e adolescentes tiveram aulas remotas também foi analisado por pesquisadores. “Na França não temos uma tradição de pesquisa sobre o envolvimento parental na educação dos filhos. Também não usávamos o ensino remoto antes da pandemia. Por isso resolvemos observar os efeitos que o peso da educação remota teria para os pais e começamos a ver como as desigualdades se manifestam e se ampliam nesse contexto”, disse Romain Delès, da Université de Bordeaux na França.

Para entender essa situação inédita de ensino remoto no país durante o período de confinamento, o pesquisador elaborou um questionário para todos os pais e responsáveis de alunos do sistema educacional francês e entrou em contato com mais de 63 mil escolas públicas e privadas, do jardim de infância ao ensino médio. Mais de 32 mil pais e responsáveis responderam à pesquisa.

“Se, por um lado, o ensino remoto foi compulsório, por outro, todas as famílias estavam livres para fazer o que quisessem para apoiar as crianças. Os professores enviavam trabalhos diários, mas os pais podiam escolher como e quando auxiliar o trabalho da escola Os professores davam suporte, mas os pais poderiam escolher entre internet ou programas de TV exclusivos para esse período. Essa liberdade foi uma espécie de armadilha para algumas famílias”, disse.

De acordo com o estudo conduzido por Delès, a participação dos pais nas atividades escolares foi próxima de 100% entre as famílias cujos filhos cursavam as séries iniciais e passou a cair a partir da oitava série (86%). “Os pais das classes mais ricas afirmaram que o período de confinamento e o ensino remoto não representaram um grande problema. Eles estavam otimistas com essa novidade por estarem juntos fazendo algo que não faziam antes. Havia até um mecanismo para minimizar o esforço escolar.”

Outro achado da pesquisa foi que as classes mais ricas puderam tirar vantagens de formas mais variadas de apoiar os seus filhos, criando situações de ensino não tão escolares e que priorizaram as artes plásticas, cultura e música para avançar o aprendizado. “Houve uma preocupação em garantir maior autonomia das crianças em aprender e o uso de formas alternativas de auxiliar o ensino, não tão focadas na lição de casa”, disse.

O webinário está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-sqKirWXK3s.

 

Fonte: Por Maria Fernanda Ziegler, da Agência FAPESP 
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