A essência da técnica não é nada de técnico. Entrevista especial com Renato Janine Ribeiro

“Dá mais trabalho assumir a responsabilidade por sua vida do que terceirizá-la. E terceirizar a própria vida, as ciências humanas bem sabem, é um caminho certo para dar errado. Outras ciências não têm tão clara essa percepção”, diz o filósofo.

Por Patricia Fachin. do IHU

Foto: www.brasilescola.com

“A essência da técnica não é nada de técnico.” É citando essa frase do filósofo alemão Martin Heidegger, que Renato Janine Ribeiro propõe reavaliar a contribuição das ciências humanas nas universidades e na sociedade. Ao passo que cresce o interesse pelo desenvolvimento das ciências exatas e das tecnologias, as Humanidades têm de “promover a discussão mais aprofundada sobre uma sociedade que acredita tanto assim na tecnologia, a ponto de esquecer os fins em favor dos meios. Em especial, a discussão dos valores é algo que a filosofia, como as várias psicologias e a antropologia, devem efetuar. Ou seja, nosso papel é absolutamente central neste mundo que dá tanta importância aos aportes tecnológicos”, assevera, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail.

Segundo ele, as áreas de Humanas, por serem as que mais estudam as relações sociais e políticas, são as que “têm os melhores instrumentos para discutir como a Universidade – que inclui pesquisa, docência, extensão, ou seja, vai além do ensino – se articula com uma sociedade complexa como a nossa”.

Apesar do potencial das Humanidades, Janine Ribeiro lamenta que infelizmente essa discussão não está sendo feita. Entre as razões, pontua, “há uma relativa timidez de muitos pesquisadores de Humanas, que preferem não entrar na arena do debate ou se limitam a reiterar argumentos que já não cabem na sociedade atual. Por outro, um número razoável de pesquisadores de outras áreas pensa, por exemplo, que basta ser um bom cientista para saber ensinar física ou matemática, sem conhecer bem as pesquisas mais fortes sobre aprendizado”.

Especialista em Ética e Filosofia Política, Renato Janine Ribeiro também comenta o cenário eleitoral das eleições presidenciais deste ano. “Vejo esta eleição como uma transição, que poderá encerrar um tempo, mas ainda não abre outro. Os três principais partidos a disputar a presidência precisarão rever suas identidades. Isso é o que importa”, conclui.

Janine Ribeiro é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e mestre pela Sorbonne, em Paris. Entre seus livros, destacam-se A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (2000) e A universidade e a vida atual – Fellini não via filmes (2003).

Confira a entrevista.

Foto: WILSON DIAS/AGÊNCIA BRASIL

 

IHU On-Line – O senhor afirma que “a relação entre a Universidade e a sociedade é objeto por excelência das ciências humanas”. Pode desenvolver essa ideia, explicitando o que isso significa e como essa relação tem sido desenvolvida no Brasil?

Renato Janine Ribeiro – As áreas de Humanas são as que mais e melhor estudam as relações sociais e políticas, portanto, são elas que têm os melhores instrumentos para discutir como a Universidade – que inclui pesquisa, docência, extensão, ou seja, vai além do ensino – se articula com uma sociedade complexa como a nossa. Mas infelizmente não tem sido assim. Por um lado, há uma relativa timidez de muitospesquisadores de Humanas, que preferem não entrar na arena do debate ou se limitam a reiterar argumentos que já não cabem na sociedade atual. Por outro, um número razoável de pesquisadores de outras áreas pensa, por exemplo, que basta ser um bom cientista para saber ensinar física ou matemática, sem conhecer bem as pesquisas mais fortes sobre aprendizado e, por outro lado, sem tematizar como se dá a apropriação social do conhecimento assim transmitido. Uma reflexão mais atuante das Humanas neste campo seria benéfica.

IHU On-Line – Que transformações percebe no investimento dado à área de humanidades nos últimos anos, no Brasil? Aplica-se aqui o que já acontece em alguns países do exterior, ou seja, departamentos de filosofia serem menos valorizados do que o de outras áreas?

Renato Janine Ribeiro – Tradicionalmente, as áreas de Exatas e Biológicas pedem mais recursos, até porque seus equipamentos são ou eram mais caros. Um laboratório demanda muito dinheiro. E as Humanas iam atrás, isto é, quando se criou o Pronex, no governo FHC, foi por uma demanda das Exatas, mas não dava para deixar de fora as Humanas: então, elas foram fazer projetos para atender a um edital, em vez de exigir um edital para projetos já existentes. No governo atual, porém, o programa Ciências sem Fronteiras tem praticamente excluído as Humanas, o que não é bom. No caso dos cursos de Filosofia, não me parece que estejam sendo mais maltratados do que outros de Humanas.

IHU On-Line – É possível comparar os recursos que o Estado brasileiro destina às áreas humanas e às áreas exatas? Como avalia o investimento financeiro do
Estado nas universidades do país?

Renato Janine Ribeiro – Normalmente ele dá mais dinheiro a outras áreas, mas estas também são mais combativas. Elas organizam suas sociedades científicas de modo a elegerem prioridades e a pressionarem os governos melhor do que nós fazemos. Talvez porque sem grandes verbas para laboratórios a maior parte das Exatas e Biológicas sucumba. É questão de vida ou morte para elas. Nas Humanas, há menos empenho neste rumo. Mas também esse cenário se deve à crença tão difundida em nossa sociedade de que dá para resolver problemas humanos de maneira mecânica, por exemplo, dando comprimidos. As ciências humanas sabem que isso não funciona, e por isso mesmo são impopulares. Dá muito mais trabalho passar por uma terapia ou uma análise do que tomar um remédio. Dá mais trabalho assumir a responsabilidade por sua vida do que terceirizá-la. E terceirizar a própria vida, as ciências humanas bem sabem, é um caminho certo para dar errado. Outras ciências não têm tão clara essa percepção.

 

“No governo atual, porém, o programa Ciências sem Fronteiras tem praticamente excluído as Humanas, o que não é bom”

 

IHU On-Line – Que espaço e relevância as universidades brasileiras têm dado para as
áreas humanas nos últimos anos, especialmente por conta dos avanços na área de ciência e tecnologia? Nesse sentido, que contribuição as humanidades e, especialmente a filosofia, podem dar à era da técnica?

Renato Janine Ribeiro – O eixo de nossa contribuição é a frase seminal de Heidegger, “a essência da técnica não é nada de técnico”. Podemos dizer que essa essência é política, por exemplo. Por isso, cabe a nós promover a discussão mais aprofundada sobre uma sociedade que acredita tanto assim na tecnologia, a ponto de esquecer os fins em favor dos meios. Em especial, a discussão dos valores é algo que a filosofia, como as várias psicologias e a antropologia, devem efetuar. Ou seja, nosso papel é absolutamente central neste mundo que dá tanta importância aos aportes tecnológicos.

IHU On-Line – No debate entre o espaço das ciências humanas com as demais áreas, uma das discussões refere-se ao progresso. É possível falar de progressos ou
avanços nas humanidades? Se sim, em que sentido?

Renato Janine Ribeiro – Defino Humanidades a partir da filosofia, da literatura e das artes, ou seja, como produções humanas para as quais a ideia de progresso não tem valor ou sentido. Nas ciências exatas, biológicas e mesmo em várias humanas, há progresso, entendido não só como uma aquisição cada vez superior de conhecimento qualificado, como também uma crescente racionalização do que se descobre ou faz. Na filosofia, Platão está tão válido quantoHeidegger, da mesma forma que na literatura “D. Quixote” não foi refutado. Essa validade simultânea de toda a produção humana é um traço específico desses três campos. Isso pode ser muito útil para uma “humanitização” das ciências humanas. Explico melhor. As ciências geralmente querem o último resultado “online” disponível, como se fossem atualizadas o tempo todo – ao passo que nas Humanidades o passado continua valendo. Mas nas próprias ciências humanas, sem que sempre elas tirem todas as conclusões disso que vou dizer, coexistem teorias opostas entre si. Não há último resultado online, há disputas por vezes ásperas. Ora, compreende-se melhor essa situação a partir da validade simultânea dos opostos, que é o traço que acentuo nas Humanidades.

IHU On-Line – Como vê os índices de avaliação de produtividade na academia brasileira e outros países do mundo? Como mensurar a produção acadêmica nas
humanidades?

Renato Janine Ribeiro – Muito difícil. Quando fui diretor da Capes, demorei quase cinco anos para implantar uma avaliação de livros, condição para que esta forma de produção preferida pelas áreas de Humanas fosse devidamente respeitada – e deixei a agência antes que fosse adotada nos melhores moldes. Acresce que estes últimos anos a produção científica mudou tanto de figura que os modelos assentados nos fatores de impacto e no Qualis da Capes dão menos conta, do que no passado, do que sai de realmente bom. A avaliação teria que ser revista de ponta a ponta, e não só nas Humanas.

IHU On-Line – Qual é o futuro das humanidades e da filosofia, considerando que universidades do exterior estão reduzindo verbas nos departamentos de filosofia? Que contribuição as humanidades podem dar às universidades diante desse quadro?

Renato Janine Ribeiro – Enfrentar desafios. Curiosamente, a internacionalização das universidades brasileiras nem sempre as melhora. Por vezes, elas simplesmente assumem uma posição subalterna em face de centros internacionais que elas reconhecem como melhores. Em certas áreas, são mesmo os melhores e a estratégia de incorporação subordinada não está errada. Mas, nas Humanas, com frequência elas renunciam, ao se internacionalizar, a estabelecer agendas próprias, questões delas mesmas, e assim enfrentam poucos desafios.

Por exemplo, na França e Alemanha é normal um filósofo se dedicar a pensar uma questão suscitada a partir da política local, e escrever um livro belo e bom a respeito. No Brasil, isso não é bem visto. Mas, curiosamente, se você escrever um trabalho contando como o filósofo francês Untel escreveu um belo livro a partir dos escândalos amorosos dos dois últimos presidentes da República, essa resenha ou paráfrase será aceita. É como reconhecer que o espaço da reflexão livre estivesse lá fora, e nos coubesse somente sua repetição. Não concordo.

IHU On-Line – Em que consiste o seu projeto de uma graduação interdisciplinar em
humanidades?

Renato Janine Ribeiro – É a ideia de um curso sempre experimental, em que os alunos entrariam em contato com as várias eidéticas de diferentes áreas das ciências humanas, sob a égide das Humanidades. Por exemplo, em Literatura, lidariam sucessivamente com o romance, o drama e a lírica. Isso viria junto, em Filosofia, do estudo de Descartes e a modernidade, de Platão ou Aristóteles e, no último caso, de Rousseau e a intimidade. Assim eles aprenderiam diferentes embocaduras para como compreender o mundo, como se fossem várias chaves, cada uma servindo a casos diferentes. Outro exemplo: a ciência política lida sobretudo com a modernidade, ao passo que só pode ser antropólogo quem tem pelo menos uma forte desconfiança dessa senhora. Isso abriria extraordinariamente as cabeças dos jovens.

IHU On-Line – O senhor menciona a democracia, a república, o socialismo e o liberalismo como os quatro elementos centrais do que o senhor chama de “boa política”, considerando o último século. Primeiro, por que esses valores não são excludentes e, portanto, como se relacionam e, segundo, como os identifica na política brasileira?

Renato Janine Ribeiro – São dois pares de opostos. Democracia diz respeito ao desejo da maioria, que é de pobres, por ser mais e, para tanto, ter mais. Não é possível ter democracia apenas política, ela inclui desde o início o social. Isso, os gregos sabiam. Foram os modernos, no século XVIII, que fizeram esse recorte forçado. Já a república diz respeito ao bem comum e é menos popular que a democracia, tanto que entre os romanos ela era aristocrática. De todo modo, não há boa política se os dois termos não estiverem presentes, numa relação tensa.

Já o outro par de opostos é mais conflitante. O socialismo crê mais na cooperação, o liberalismo na competição. Mesmo assim, o ponto de partida de todo liberalismo genuíno – que não é o que a gente vê no Brasil – é a absoluta igualdade de oportunidades no ponto de partida, de modo que cada um possa florescer em sua diferença.

O liberalismo não quer intervenção do Estado nem de nenhum poder, como Igreja ou outro, a não ser para extirpar as ervas daninhas que te impedem de florescer. Por isso, se for genuíno, o liberalismo quer ações afirmativas, para ter a igualdade no ponto de partida. Agora, no ponto de chegada, não.

Já o socialismo considera que dar demasiada importância à competição piora a qualidade do ser humano. Daí que ele discorde de avaliações de mérito muito acentuadas. A cena do filme “Sete anos no Tibete”, em que Brad Pitt dá um show de patinação e ninguém presta atenção porque todos estão acudindo seu amigo que se machucou, é um bom exemplo do que chamo socialismo, ainda que os budistas, no caso, nada, nada tenham a ver com o comunismo, muito ao contrário. São dois rumos opostos, mas entre os quais é possível conciliar.

“Ciência política lida sobretudo com a modernidade, ao passo que só pode ser antropólogo quem tem pelo menos uma forte desconfiança dessa senhora”

IHU On-Line – Como o senhor avaliou o cenário eleitoral de disputa à presidência da República deste ano? Como entende, nesse sentido, declarações corriqueiras como “vou votar no menos pior”, referindo-se ao PT?

Renato Janine Ribeiro – Nenhum dos três principais candidatos entusiasmou a maior parte da população. Muitos votaram em qualquer um deles como o menos ruim. E isso é da democracia. Raras vezes temos o ideal, geralmente só o possível. O PSDBesgotou seus ideais há bastante tempo e não soube renová-los. OPT está esgotando os seus, sem renová-los, e se mantém no páreo porque a inclusão social continua sendo relevante e incompleta. ARede tem ideais, sim, mas ainda estão vagos e muitas vezes contradizem os meios que ela pretende usar. Vejo esta eleição como uma transição, que poderá encerrar um tempo, mas ainda não abre outro. Os três principais partidos que disputaram a presidência precisarão rever suas identidades. Isso é o que importa.

IHU On-Line – As manifestações de junho de 2013 e os protestos antes da Copa tiveram algum eco na disputa eleitoral deste ano? Por que e em que sentido?

Renato Janine Ribeiro – Aparentemente, os manifestantes não disputam a eleição, ao contrário do Chile, em que fizeram pelo menos dois deputados. A cultura política brasileira é pobre. Eles não veem que precisavam traduzir sua raiva em projetos. Por isso, 2013 pode não dar frutos, ou só a longo prazo.

IHU On-Line – A que atribui a “intolerância política” entre candidatos e militantes?

Renato Janine Ribeiro – À mesma incultura política. Não sabemos discutir com quem é diferente de nós. Parte-se facilmente para o xingamento ou desrespeito. No fundo, é uma deficiência cognitiva.

IHU On-Line – Por que a discussão acerca do futuro ou do desenvolvimento das
universidades brasileiras não aparece na discussão política eleitoral?

Renato Janine Ribeiro – Boa pergunta. Deveria aparecer. Mas, quando aparece, é só como acesso numérico, não como tipo de ensino. E a educação está em tal mudança que seria bom trazê-la para a praça pública.

(Por Patricia Fachin)

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