A Constituição brasileira, a mais democrática de nossa história e uma das mais democráticas do mundo, está completando 25 anos. Assim como foram os trabalhos constituintes, também os pronunciamentos sobre o seu significado e resultado são os mais variados e, muitas vezes, antagônicos, seja por considerações políticas, econômicas ou ideológicas. Uma das muitas disputas que ocorreram na constituinte foi sobre a laicidade do Estado.
Na elaboração da atual Constituição, pela primeira vez, além dos setores católicos organizados, atuaram também os evangélicos. Ambos disputavam benesses estatais para suas respectivas instituições religiosas. Obtiveram vitórias parciais, como o preâmbulo afirmar que ela foi elaborada “sob a proteção de Deus”, mas no conjunto a Carta garantiu o Estado laico, como diz o artigo 19:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (…)”.
Marx já nos alertava, nO 18 Brumário, que “assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade”. Embora o Estado laico esteja garantido constitucionalmente, as entidades religiosas influenciam a legislação e as campanhas estatais sobre prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, aborto, união civil entre homossexuais, conteúdo do ensino ministrado nas escolas públicas. Além disso, invadem a programação de rádios e televisões – inclusive públicas, portanto custeadas com dinheiro público – e eventos governamentais, como inauguração de obras e mesmo posse de autoridades.
Tanto o Legislativo nacional, quanto vários estaduais e municipais, abrem seus espaços para cultos religiosos, em especial cristãos. O parlamentar que abrir os trabalhos do Senado, seja de que partido ou crença for (ou ateu) obrigatoriamente, pelo Regimento da Casa (Artigo 155, § 1º), deverá dizer: “Sob a proteção de Deus, declaro aberta a sessão”. O mesmo é feito na Câmara. Embora existam mais de duas mil religiões, apenas o crucifixo – símbolo do cristianismo – é colocado nos locais públicos brasileiros, do Supremo Tribunal Federal, às escolas, hospitais e repartições públicas de todos os níveis. “Deus seja louvado”, estampam nossas cédulas de Real – não Ogum, Alá, Tupã ou qualquer outro, mas o deus judaico-cristão.
Segundo levantamento da Coordenação de Relacionamento, Pesquisa e Informação da Câmara dos Deputados, até 20 de junho, quatro propostas de emenda à Constituição e 89 projetos de lei tramitavam na Casa abordando temas religiosos – um deles foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, presidida pelo evangélico Marco Feliciano (PSC-SP), na quarta-feira, 16, livrando templos e igrejas de serem enquadrados no crime de discriminação se vetarem a presença de “cidadãos que violem seus valores, doutrinas, crenças e liturgias”. Há quem veja nisso a legitimação da homofobia. Outro projeto, já aprovado por uma comissão da Câmara, ficou conhecido como “bolsa estupro”. Ele incentiva mulheres estupradas a parir, registrar a criança com o sobrenome do estuprador e receber pensão alimentícia de um salário mínimo por rebento e foi proposto por parlamentares religiosos contrários ao direito da mulher decidir sobre o próprio corpo.
A Lei nº 9.093, de 12 de setembro de 1995, que dispõe sobre feriados, possibilita a criação de até quatro feriados religiosos (incluída a Sexta-Feira da Paixão). No entanto, os municípios não podem decretar feriados civis, como Dia da Consciência Negra, por exemplo. Nosso Estado laico celebra os seguintes feriados religiosos: Sexta-Feira Santa, Corpus Christi, Dia de Nossa Senhora Aparecida, Dia de Finados, além de feriados estaduais e municipais (padroeiras locais ou, no caso do Distrito Federal, Dia do Evangélico). Todos feriados cristãos; na quase totalidade, católicos.
Esta é a situação em que nos encontramos. Nas campanhas eleitorais, mesmo candidatos progressistas ao Executivo, assumem compromissos, com bancadas religiosas, ostensivamente contrários à Constituição e aos interesses populares e democráticos, na busca de votos. Mas a situação já esteve pior. A Constituição de 1824, a primeira do país, estabelecia em seu artigo 5º:. “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”.
Avançamos, graças à nossa luta – e ela deve ser permanente, porque o risco de recuo existe.
Estado Laico
Fábio Konder Comparato: “Constituição do Brasil é mera aparência democrática”
Fonte: Vermelho