Estados membros se unem em prol dos direitos dos afrodescendentes

Geledés na ONU, incidencia internacional de Geledés Instituto da Mulher Negra

Evento de Geledés em Genebra reúne atores estratégicos no processo da construção da Declaração dos Afrodescendentes

Em cenário em que a extrema direita coloca em xeque o multilateralismo, Geledés – Instituto da Mulher Negra obteve um considerável avanço ao reunir em uma única mesa importantes representantes de governos, da sociedade civil e do sistema de justiça para debater o andamento da futura Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos dos Afrodescendentes, a ser elaborada sob a coordenação do Grupo de Trabalho Intergovernamental para a Implementação Efetiva da Declaração e Programa de Ação de Durban. Em paralelo à 58ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, que acontece na sede das Nações Unidas em Genebra, o instituto promoveu nesta quinta-feira, 27, o evento “Como Garantir o Sucesso da Próxima Declaração sobre os Direitos das Pessoas Afrodescendentes”. 

O assessor internacional de Geledés e mediador do debate, Gabriel Dantas, destacou a relevância dessa discussão perante os crescentes desafios de colaboração entre as nações para se alcançar objetivos comuns nas questões dos africanos e afrodescendentes. Além de Dantas, fizeram parte da discussão a diplomata Camila Mandel Barros, primeira-secretária da Missão Brasileira em Genebra, Maïmouna-Lise Pouye, advogada especialista em direitos humanos, Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça do Estado da Bahia e Bafou Jeng, representante do Estado da Gâmbia. Vale ressaltar que nesta audiência estiveram presentes os representantes dos Estados da Colômbia, Chipre, Moçambique, Portugal, México, República dominicana, Cuba, Panamá, Togo, Burundi, Argélia e Honduras. 

“Ter a presença de diversos Estados em nosso evento foi mais um sinal de que Geledés está no caminho certo em seu trabalho na seara internacional. Este é um momento importante para unirmos os Estados em prol dos direitos da população afrodescendente, especialmente diante dos ataques praticados pela extrema direita ao multilateralismo e à agenda internacional de direitos humanos”, afirmou Dantas.

Embora o texto provisório da Declaração sobre os Direitos dos Afrodescendentes esteja construído sobre bases sólidas, sua eficácia dependerá do compromisso dos Estados-membros em garantir sua aplicabilidade dentro das diversas realidades regionais. Diferenças nos sistemas jurídicos, desafios sociopolíticos e variações na capacidade institucional que justamente exigem uma abordagem cuidadosa e eficiente para a implementação do documento. 

Portanto, o grande desafio colocado nesse encontro foi a proposta de harmonizar os princípios da Declaração com as prioridades nacionais e regionais, sem comprometer uma visão transformadora e abrangente, incitando os Estados membros da ONU a se engajarem nesse documento, além de preservar a linguagem progressista que atualmente consta no rascunho da Declaração.   

“Sabemos que o multilateralismo enfrenta grandes desafios hoje, mas o primeiro rascunho da Declaração demonstra claramente a importância desse tipo de processo. Observamos, ao longo da história, as consequências devastadoras de quando regimes autoritários tomam o poder e colocam em risco a vida e os direitos de populações racializadas, utilizando o racismo e o sexismo como ferramentas de governança”, afirmou Dantas.

Entre os pontos destacados por Geledés, está a necessidade de envolver atores historicamente ausentes dessa agenda, como os bancos multilaterais de desenvolvimento. Para Dantas, essas instituições podem desempenhar um papel estratégico na transformação econômica das comunidades afrodescendentes, especialmente por meio do financiamento de projetos de infraestrutura e transição ecológica. “Trata-se de uma oportunidade histórica para transformar o reconhecimento em ação, as desculpas em reparação, e para consolidar a justiça reparatória como eixo central de uma agenda de desenvolvimento sustentável”, disse ele. 

O assessor internacional de Geledés também mencionou a decisão da União Africana em adotar como tema de 2025 a “Justiça para Africanos e Afrodescendentes por meio das Reparações”, o que, na visão dele, é uma escolha que fortalece a união entre Estados africanos e a diáspora na construção de uma agenda global de reparações, com abordagem dos legados da escravidão, do colonialismo, do apartheid e da discriminação sistêmica.

Como um país da diáspora, a diplomata Camila Mandel enumerou os feitos do Brasil no cenário internacional, ao reafirmar o compromisso do país com o combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e às formas correlatas de intolerância, reiterando, inclusive, seu apoio à Declaração e Programa de Ação de Durban. Destacou ainda o compromisso do país nas negociações para a elaboração da futura Declaração.

“O Brasil continuará participando ativamente dessas negociações, defendendo uma Declaração abrangente que estabeleça obrigações claras para os Estados e que reforce a luta global contra o racismo e a discriminação racial. Convidamos todos aqui presentes e os que nos assistem, delegações de Estados e representantes da sociedade civil a se engajarem de forma construtiva nesse processo, garantindo que o documento final reflita os anseios e as necessidades da população afrodescendente ao redor do mundo”, disse ela.

Ainda neste âmbito nacional, a diplomata brasileira mencionou as cotas raciais nas universidades e no serviço público do país, além do fortalecimento de órgãos de promoção da igualdade racial e valorização da cultura afro-brasileira como medidas antirracistas adotadas. Mas lembrou também que, apesar dos avanços, o governo brasileiro reconhece que apenas o reconhecimento histórico não é o suficiente. “É necessário avançar na reparação das injustiças históricas por meio de políticas que garantam oportunidades reais para a população afrodescendente”, afirmou. 

Camila sublinhou ainda a necessidade de que histórias e vozes sejam plenamente integradas aos currículos escolares, às instituições de poder e aos espaços de decisão política. “A ausência de representatividade reforça desigualdades e perpetua a marginalização”, alertou.

Já a representante do Estado da Gâmbia, Bafou Jeng, mencionou o compromisso de seu país na elaboração de uma declaração transformadora sobre os direitos dos povos africanos. Segundo ela, o racismo e a injustiça são ainda marcantes na vida das populações de origem africana em diversas partes do mundo, um reflexo dos impactos históricos da escravização e do colonialismo.

“A população negra ainda enfrenta barreiras em áreas fundamentais, como acesso à educação e saúde, além de serem mais vulneráveis à violência e à discriminação nos sistemas de emprego e justiça”, afirmou a delegada.

Jeng defende que a Declaração seja um instrumento de combate à afrofobia e um marco na luta por justiça reparatória. No entanto, ela reforça que reparação não se limita à compensação financeira, mas envolve reconhecimento, memória e compromisso com a não repetição das injustiças históricas. “Enfrentar a afrofobia é essencial para que a justiça reparatória tenha sentido”, destacou ao citar o fato de que a União Africana elegeu para 2025 a temática da reparação como uma forma de garantir justiça para africanos e seus descendentes.

Apesar dos progressos, a diplomata gambiana ressaltou as tentativas em minimizar a luta antirracista na esfera global. “Há uma tendência de tratar essa pauta como secundária, mas precisamos falar com honestidade. Os princípios da declaração devem refletir a realidade e garantir um caminho claro para a implementação”, argumentou ela. 

Para Lívia Sant’Anna Vaz, a Declaração surge como “uma resposta necessária às violações históricas e contemporâneas sofridas por cerca de 300 milhões de afrodescendentes em todo o mundo”. Neste contexto, a promotora de Justiça do Estado da Bahia destacou entre os principais desafios o racismo estrutural, que, segundo ela, “normaliza a discriminação racial e dificulta o reconhecimento da urgência de medidas reparatórias”. 

Outro ponto crítico abordado pela promotora é a diversidade de contextos enfrentados pelas comunidades afrodescendentes ao redor do mundo. Embora o racismo seja um fenômeno mundial, suas manifestações variam conforme o país e a região, exigindo que a Declaração seja abrangente, mas, ao mesmo tempo, sem ignorar as especificidades locais. Neste sentido, o conceito de “pluriversalidade”, do filósofo sul-africano Mogobe Ramose foi citado para reforçar essa necessidade de diálogo e cooperação entre as nações.

No âmbito jurídico, Lívia ressaltou que a Declaração não deve ser analisada isoladamente. “Seu texto, pactuado entre os Estados envolvidos, resulta de consensos fundamentais para o reconhecimento internacional dos direitos e medidas ali estabelecidos. Suas diretrizes reforçam e orientam documentos já produzidos no âmbito internacional (como a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Declaração de Durban), mas também nos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos (a exemplo da recente Convenção Interamericana contra o Racismo) e, ainda, nas ordens legislativas dos próprios Estados envolvidos”, argumentou. 

Para a promotora brasileira, a Declaração pode ainda estimular a adoção de novas normas, inclusive regionais, a exemplo da Convenção Interamericana contra o Racismo, e impulsionar avanços legislativos nos países envolvidos. “Uma Declaração sobre os Direitos das Pessoas de Ascendência Africana não apenas legitima e atualiza os pactos já firmados, mas produz um efeito cascata de engajamento de outras esferas jurídicas de enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial”, disse ela. 

A advogada e especialista em direitos humanos, Maïmouna-Lise Pouye, centrou sua fala na escassez de recursos como um dos principais entraves para se avançar na temática, que, segundo ela, são essenciais para garantir a formulação e viabilização do documento que irá impactar a vida de milhares de afrodescendentes. 

A advogada apontou que esses recursos envolvem desde a contratação de especialistas para a redação de artigos em temas como migração, tráfico humano, direitos ambientais e reparações, até a participação de representantes da sociedade civil em reuniões internacionais. “Precisamos de fundos para financiar os especialistas que nos ajudam a produzir os melhores textos possíveis”, destacou. Neste contexto, um exemplo concreto mencionado por ela foi a consultoria de um especialista da Organização Mundial da Saúde (OMS) convidado para atualizar um artigo sobre o direito à saúde. 

De acordo com Maïmouna-Lise, a falta de financiamento limita ainda a participação de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) que representam os interesses das populações afrodescendentes. “Para muitas dessas organizações, estar presente nas discussões significa receber financiamento para participar das reuniões do Grupo de Trabalho Intergovernamental Aberto, em Genebra”, explicou. 

Assim como Lívia, Maïmouna-Lise colocou em debate a definição sobre quem se enquadra na categoria de “afrodescendente”. Em sua percepção, o conceito atual, baseado na descendência de vítimas do tráfico transatlântico, pode excluir grupos que sofreram impactos semelhantes.

“Acreditamos que precisamos de um novo paradigma para definir os afrodescendentes e sua localização no mundo”, explicou. Comunidades em regiões como Madagascar e Zanzibar, por exemplo, são descendentes de populações escravizadas, mas não são necessariamente reconhecidas como afrodescendentes sob a definição vigente.”

Para ela, a implementação da Declaração exigirá persistência e criatividade. E finalizou com um provérbio africano: “Se não puder entrar pela porta, passe pela janela”.


Boa tarde a todas e todos.

Meu nome é Gabriel Dantas. Sou assessor internacional do Geledés Instituto da Mulher Negra, do Brasil. Gostaria de dar as boas-vindas aos nossos distintos painelistas, aos participantes presentes e a todos que acompanham este evento paralelo tão importante.

Essa conversa é uma oportunidade para refletirmos e avançarmos coletivamente em estratégias para garantir o sucesso da próxima Declaração de Direitos da População Afrodescendente. Sabemos que o multilateralismo enfrenta grandes desafios hoje, mas o primeiro rascunho da Declaração demonstra claramente a importância desse tipo de processo. Já observamos, ao longo da história, as consequências devastadoras de quando regimes autoritários tomam o poder e colocam em risco a vida e os direitos de populações racializadas, utilizando o racismo e o sexismo como ferramentas de governança. Não é por acaso que discursos e práticas racistas se tornaram centrais em governos extremistas recentes — seja na América Latina, nos Estados Unidos ou na Europa. Nossa resposta precisa ser firme, coletiva e comprometida com os direitos humanos.

O evento de hoje nos permite avaliar o atual estágio da Declaração, seus desafios, possibilidades de aprimoramento e áreas que requerem atenção especial, notadamente justiça e reparação para africanos e afrodescendentes. É fundamental que incorporemos atores historicamente ausentes dessa agenda, como os bancos multilaterais de desenvolvimento. Essas instituições têm um papel estratégico na transformação da realidade econômica das populações afrodescendentes, sobretudo ao financiarem grandes obras de infraestrutura, políticas de transição ecológica e inclusão produtiva. A exigência de critérios raciais e de gênero nas decisões dessas instituições pode ser uma ferramenta concreta de justiça reparatória.

No cenário internacional, duas iniciativas merecem destaque. A primeira é a proclamação da Segunda Década Internacional dos Afrodescendentes pelas Nações Unidas, anunciada em dezembro de 2023. Trata-se de uma oportunidade histórica para transformar o reconhecimento em ação, as desculpas em reparação, e para consolidar a justiça reparatória como eixo central de uma agenda de desenvolvimento sustentável, justiça ambiental e inclusão digital. Como afirmou Barbara Reynolds, do Grupo de Trabalho da ONU sobre Afrodescendentes, o desafio agora é tornar realidade o que antes era apenas retórica.

A segunda é a decisão recente da União Africana de adotar como tema de 2025 a “Justiça para Africanos e Afrodescendentes por meio das Reparações”. Essa escolha fortalece a necessidade de um engajamento político e institucional para enfrentar os legados da escravidão, do colonialismo, do apartheid e da discriminação sistêmica. Trata-se de um chamado para que os Estados africanos e a diáspora atuem de forma coordenada na construção de uma agenda global de reparações.

A Conferência de Durban nos deixou um legado importante ao afirmar o racismo como uma violação dos direitos humanos e ao reconhecer a escravidão e o colonialismo como crimes que exigem medidas de reparação. Esse marco precisa ser fortalecido, e a próxima Declaração representa uma nova oportunidade de avançarmos nesse caminho, com mais ambição, mais escuta das comunidades afetadas e mais ousadia política.

Ainda que os debates sobre reparações não sejam consensuais, é importante lembrar que não há solução única: cada país e região pode e deve construir, à sua maneira, uma resposta que leve em conta a sua realidade local, sem abrir mão da centralidade da justiça histórica e racial.

Rapidamente, agradeço a presença dos nossos painelistas: Camila Mandel, Primeira Secretária da Missão Brasileira em Genebra, representando o engajamento ativo do Brasil nas negociações; Maïmouna-Lise Pouye, advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Penal Internacional, com atuação marcante em justiça racial, estudos decoloniais e ecocídio; e Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça do Estado da Bahia, comprometida com a equidade racial e justiça social.

Informação técnica: a interpretação está disponível remotamente via Zoom. Quem precisar de tradução pode apontar a câmera do celular para os QR codes disponibilizados. Pedimos que utilizem seus fones de ouvido para maior clareza.Sem mais delongas, passo agora a palavra aos nossos painelistas para suas intervenções iniciais de até 10 minutos cada. Após suas apresentações, teremos espaço para breves comentários e perguntas da audiência, seguido por uma rodada final de conclusões de cada painelista.

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