Estatuto da Igualdade racial: avanço na conquista de direitos para população negra

Por: Raquel Júnia

 

 

Adital – Texto aprovado substitui termo raça por etnia e retira trecho sobre cotas e saúde. Movimentos sociais e pesquisadores divergem quanto à importância da lei.

Após mais de nove anos de discussão, o Estatuto da Igualdade Racial foi aprovado pelo Senado no último dia 17 de junho. Para a lei vigorar, falta apenas a sanção do presidente Lula. O texto foi aprovado com modificações: foram retirados os artigos que falavam sobre uma política de cotas para a população negra nas universidades brasileiras, além de alguns dos que se referiam a medidas para melhorar a saúde desta parcela da população. O trecho que garantia incentivos fiscais para as empresas que contratassem trabalhadores negros também ficou de fora da redação final. O projeto de lei inicial foi apresentado pelo senador Paulo Paim (PT-RS), em 2001.

Em todo o texto do Estatuto, a expressão raça foi substituída por etnia. O senador Demóstenes Torres (DEM-GO), relator do substitutivo aprovado pelo Senado, acredita que o termo raça pode, na verdade, incentivar a discriminação. “Na medida em que o Estado brasileiro institui o Estatuto da Igualdade Racial, parte-se do mito da raça. Deste modo, em vez de incentivar na sociedade brasileira a desconstrução da falsa ideia de que raças existem, por meio do Estatuto referido o Estado passa a fomentá-la, institucionalizando um conceito que deve ser combatido, para fins de acabar com o preconceito e com a discriminação”, argumentou no parecer da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania. Apesar da discordância, Torres foi favorável à aprovação do substitutivo, com a retirada dos artigos que tratavam das cotas, saúde e reserva de vagas.

Para o coordenador do Movimento Negro Unificado, José Carlos Miranda, a aprovação do Estatuto é um retrocesso e tanto o termo etnia quanto raça são ruins. “Trocou-se raça por etnia e ficou parecendo uma constituição multiculturalista, que define o Brasil como um país onde vivem diferentes etnias, que sofrem desigualdades em decorrência do preconceito obviamente de ‘outras etnias’, entre aspas, e não da estrutura de classes sociais e da concentração da riqueza”, opina.

José Carlos acredita que um nome mais compatível, seria, por exemplo, ‘Estatuto da Igualdade Social’, já que, para ele, o problema é uma questão de desigualdade entre as classes sociais. “Há um imenso abismo entre classes sociais, o que leva a que a população mais pobre sofra muito mais com os problemas de uma nação que tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. Não precisa de muita teoria para saber que a herança da escravidão, a falta de reforma agrária, de distribuição de riqueza social, de um desenvolvimento econômico acabou levando a esse enorme abismo, e que na base da pirâmide social estão os que têm a pele mais escura”, reflete. Para ele, o estatuto pode levar a uma racialização do Brasil, ou seja, pode reforçar as práticas racistas.

A professora do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF), Martha Abreu, acredita que a substituição do termo raça por etnia não resolve o problema. Mas, para ela, a sociedade brasileira já é racializada. “Sabemos que não existem raças, apenas a raça humana, a genética vem cada vez mais confirmando isso. Entretanto, se não existem raças teoricamente, na prática elas existem porque a nossa sociedade é muito racializada. Se existe um racismo, uma discriminação em relação ao negro, na vida cotidiana, existem raças, já que as pessoas são discriminadas por sua cor e origem”, destaca. A professora alerta, entretanto, que ao se usar o termo “raça negra”, corre-se o risco de uma biologização excessiva. “Apesar disso, só dá para não falar mais em raças, quando acabar o racismo”, argumenta.

Ao contrário de José Carlos Miranda, a professora aposta que a existência do Estatuto é importante, mesmo com as modificações com as quais foi aprovado. Para Martha Abreu, trata-se de um comprometimento do Estado brasileiro em combater a discriminação. “O fato de se combater o racismo através do fortalecimento de uma identidade negra não vai fazer diminuir os trânsitos entre a população, vai iluminar algo que fica muito escondido na sociedade brasileira, que é a questão da cor. As ações racistas acontecem e sempre se tem um jeito de dizer que não é racismo”, diz.

Martha destaca que o racismo no país convive com a mistura e as trocas culturais entre a população, o que dificulta muitas vezes o reconhecimento da prática discriminatória. “O caminho de luta de combate ao racismo passa pelo fortalecimento de uma identidade negra, não vejo outro caminho”, pontua.

Mais visibilidade

Martha Abreu acentua que atualmente o debate sobre a desigualdade e a reparação à população negra se fortaleceu bastante. Ela exemplifica com o número de professores que atualmente lecionam e pesquisam a história da África. “Só no departamento de história da UFF são quatro professores. Há dez anos, ninguém estudava África”, afirma.

A favor das cotas nas universidades, a professora lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF) irá julgar a constitucionalidade da matéria em breve e que as universidades têm autonomia para adotar ou não a ação afirmativa. “O fato de o Estatuto ter retirado não quer dizer que foi proibido. O legislativo deu o recado de que não quer discutir estas questões”, comenta.

José Carlos Miranda discorda da necessidade de ações afirmativas, como as cotas, nas universidades. Para ele, estas medidas mascaram o problema da desigualdade social. Ele dá o exemplo dos Estados Unidos. “Os EUA há quase 40 anos aplicam medidas de ações afirmativas com base na cor. O que aconteceu lá? Elegeu-se um presidente negro que bateu o recorde do orçamento militar daquele país. Além disso, mesmo hoje, no governo Obama, a maioria dos jovens afro-americanos, como eles chamam, entre 15 e 29 anos, está presa nos cárceres. Não mudou absolutamente nada”, acentua.

Para Isabel Brasil, doutora em Educação e diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a adoção de tal política, ainda que não resolva o problema, é importante. “Nós lidamos com uma sociedade capitalista, que poderíamos chamar de um capitalismo desigual e combinado. Então, nós, que temos outra visão de sociedade, que queremos outro mundo, temos que lidar com as contradições do real. É aí que entra esta discussão das cotas, mas sem a ilusão de que isso resolve. É uma medida circunstancial”, diz. A EPSJV/Fiocruz utiliza um sistema de cotas para ingresso de estudantes que tenham cursado o ensino fundamental em escolas públicas, com exceção dos ex-alunos das escolas federais, consideradas mais estruturadas.

Isabel lembra que no processo de decisão sobre a ação afirmativa na Escola Politécnica se cogitou a possibilidade da adoção de cotas raciais, mas, com as discussões, prevaleceu a proposta de reserva de vagas para as escolas públicas. “Mas se cruzarmos os dados, certamente a população negra é mais forte nas escolas públicas, então, esta parcela da população entra também”, garante.

A pesquisadora defende que as universidades também instituam uma política de cotas e que sejam considerados os dados de condição econômica. “Por exemplo, há classes campesinas brancas e pobres”, argumenta. Apesar disso, Isabel ressalta que não se opõe às cotas raciais: “Como uma luta do movimento negro, que aponta isso como avanço, eu referendo, mas sem achar que resolve o problema”.

Virgínia Fontes, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz e da UFF, também acredita que lutas como a das cotas na educação, por exemplo, podem ter ganhos parciais e são um primeiro passo, mas não se pode contentar com apenas um percentual de incorporação de grupos oprimidos. Ela destaca, neste sentido, que a luta também deve ser pela socialização de todo o conhecimento humano, de forma a que todos os jovens estejam nas escolas e universidades.

“Ora, o copo meio cheio também está meio vazio”, compara. E completa: “Não devemos ocultar, no processo da luta pontual, a possibilidade de avanços significativos que mova o conjunto dos trabalhadores contra os racismos, contra as xenofobias, contra os sexismos e contra as desigualdades que fomentam novas opressões. Esquecer isso é condenar a parcela restante do percentual das cotas à subordinação silenciosa, é silenciar sobre a metade vazia do copo, é esquecer que todos juntos produzimos o mundo de maneira dinâmica e não temos de nos contentar com a integração de apenas alguns, estratificada e naturalizada”, complementa.

Lutas específicas e desigualdade

Virgínia reconhece que os grupos que sofrem opressões, não apenas de raça/cor, mas também xenofóbicas e sexistas, entre outras, precisam enfrentar diferentes lutas e em situação especialmente penosa. “Não faz diferença para o capital o credo, raça, a história ou a tradição do trabalhador, contanto que o trabalhador produza o mais-valor. Esse é, entretanto, apenas um lado da verdade, pois o capitalismo, sendo uma relação de dominação e de sujeição, atualiza todas as formas precedentes de opressão e as recompõe sob um formato ambivalente e dúplice, ao mesmo tempo negando-as (discursivamente) e promovendo-as (praticamente)”, explica. Isso significa que esses grupos oprimidos, entre os quais está a população negra, vivem uma dupla dificuldade: “a de serem efetivamente desqualificados como diferentes e desiguais frente aos demais trabalhadores e a de descobrir-se como trabalhadores iguais frente às brutais desigualdades promovidas cotidianamente pelo capital”, define.

Na raiz dessa discussão está, para a pesquisadora, a importância de se aliar a luta pelo fim das opressões específicas com outra batalha, contra todas as desigualdades. “Se não exigirem o fim de todas as desigualdades, poderão ser em breve recapturados em novas e recauchutadas opressões. É preciso sempre lembrar que uma verdadeira diferença somente pode existir entre iguais. Entre desiguais há hierarquia, há mando e obediência, mas não igualdade nem diferença”, diz.

Saúde da população negra

A articulação entre as desigualdades de raça/etnia e classe é apontada também como um dos motivos da carência de análises sobre esse tema na área de saúde. A referência está no artigo Aspectos Epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil, da pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Dóra Chor, e de Claudia Risso, da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde.

De acordo com as pesquisadoras, há pelo menos três hipóteses sobre os motivos desta situação de falta de pesquisas na área: “(1) a aceitação do ‘mito da democracia racial’, que pode ter influenciado a carência de perguntas acadêmicas relacionadas à raça/etnia, consideradas pouco relevantes, desnecessárias, e até incorretas do ponto de vista ideológico; (2) as dificuldades de classificação étnico-racial e a necessidade de lidar com erros de medida; (3) a oposição entre ‘classe ou raça’, como se o estudo da dimensão sócio-econômica contemplasse o conjunto de significados da dimensão étnico-racial”.

Elas entendem como essencial que as pesquisas epidemiológicas considerem as desigualdades étnico-raciais em saúde para preencher esta lacuna. Para isso, sugerem que o campo raça/cor componha outras bases de dados nacionais em saúde, além do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informações sobre Nascimentos (Sisnac) utilizado pelo Datasus. “No âmbito da pesquisa epidemiológica, a oposição classe social ou raça, como explicações mutuamente exclusivas, não tem contribuído para a compreensão abrangente das desigualdades de saúde. Em sociedades como a brasileira, na qual relações de classe são racializadas e relações raciais são dependentes da classe social, a pesquisa epidemiológica deve buscar elucidar o impacto, na saúde, das desigualdades sócio-econômicas e raciais”, concluem.

A saúde da população negra acabou sendo pouco contemplada pelo Estatuto da Igualdade Racial já que, na sua versão final, foram retirados artigos importantes que diziam respeito ao assunto. O trecho que se refere à melhoria de coleta de dados sobre raça/cor, conforme sugerem as pesquisadoras no artigo, foi mantido. É o tema do inciso II, do capítulo 8º: “constituem objetivos de políticas nacionais de saúde integral da população negra (…) a melhoria da qualidade dos sistemas de informação do Sistema Único de Saúde no que tange à coleta, processamento e análise dos dados desagregados por raça, cor, etnia e gênero”.

No primeiro capítulo da parte dedicada aos direitos fundamentais, o Estatuto da Igualdade Racial formulava do 6º ao 10º artigos diretrizes para que se cumpra o direito à saúde desta parcela da população. Entretanto, a proposta aprovada pelo Senado excluiu todo o artigo 9º e quase a totalidade do 10º, com exceção do trecho que fala sobre a necessidade de incentivos específicos para que seja garantido o direito à saúde da população quilombola.

No artigo 9º, o Estatuto dizia que as três esferas de gestão do SUS deveriam se articular de forma a garantir um plano para execução de políticas nacionais de saúde integral da população negra. “O plano referido no caput terá como finalidade estabelecer as estratégias, os indicadores e as metas que orientarão a intervenção no Sistema Único de Saúde e seus órgãos de gestão federal, estadual, distrital e municipal, no processo de enfrentamento das iniquidades e desigualdades em saúde com enfoque na abordagem étnicoracial”, diz o parágrafo único do artigo.

Já o artigo 10, fala em estabelecer prioridades sanitárias para alcançar objetivos da saúde da população negra, como reduzir a mortalidade materna, infantil, de adolescentes jovens e adultos negros; as mortes violentas; garantir diagnóstico precoce e atenção integral às pessoas com doença falciforme e outras hemoglopinopatias, entre outros.

De acordo com os dados do Datasus do Ministério da Saúde referentes ao ano de 2007, 57% das vítimas da mortalidade materna eram pretas e pardas e 32% brancas. Os indicadores sobre mortes externas, que incluem homicídios e outras mortes violentas, dão conta que, no mesmo ano, 51% dos óbitos foi de pessoas pretas e pardas e 41% de pessoas brancas. Segundo os dados da última Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad 2008), 48,4% da população brasileira é constituída por brancos e 50,6% por pretos e pardos.

* Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz

Fonte: Racismo Ambiental

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