Estatuto do Nascituro: sobre quem é esta conversa?

Nas últimas semanas, o Estatuto do Nascituro tem sido tema recorrente nos debates feministas. Muito já foi falado sobre o tema (como você poder ver aqui e aqui, por exemplo), mas há algumas perspectivas, resultado de experiências bem específicas, que não foram mencionadas. E é sobre elas que eu gostaria de falar.

Como um homem transexual, possuo capacidades reprodutivas que, biologicamente, são identificadas como do sexo feminino: útero, ovários, possibilidade de gestar, amamentar, etc. Assim sendo, faço parte do grupo de pessoas que, em algum momento da vida, poderia, por seja lá qual a razão, querer/precisar fazer um aborto. Não que o aborto seja algo permitido atualmente, mas o Estatuto traz uma série de retrocessos que representam uma violência aos nossos corpos, a nossa dignidade e a nossa integridade física e moral.

Assusto-me imensamente diante da possibilidade de ser estuprado, forçado a uma relação sexual sem consentimento. Confesso, no entanto, que o que mais me assusta não é a violência do momento, mas, sim, a possibilidade de sair dessa violação com uma gravidez. Alguns homens trans querem engravidar, e eu não vejo qualquer tipo de problema nisso. É uma escolha que cabe aos sujeitos, individualmente (da mesma forma que compreendo a situação quando se trata de mulheres), mas essa não é a escolha que eu faria. Não penso em engravidar. Não quero, não desejo; tenho minhas razões para isso, mas não querer já me parece razão suficiente para que eu não seja obrigado a vivenciar isto.

 

Com o Estatuto, então, e a possibilidade de ser obrigado a manter uma gravidez mesmo em caso de estupro, tudo que consigo pensar é que eu não seria capaz de conviver com isso. Talvez, seja um tanto quanto duro colocar as coisas dessa forma, mas diante de uma gravidez, eu escolheria o suicídio. Sim, uma gravidez representaria o maior dos sofrimentos, um sofrimento que eu não conseguiria suportar.

Refletindo um pouco mais, podemos perceber que o aborto reafirma um controle do corpo das mulheres. O controle por parte do Estado, dos pais, dos maridos (e, agora, o controle até mesmo por parte do estuprador, que teria garantida a paternidade da criança); basicamente, o Estatuto do Nascituro declara, de uma vez por todas, que o corpo das mulheres cisgêneras não pertence a elas mesmas e que não serão elas, então, a ditar as regras. É o resultado maior e mais expressivo das estruturas patriarcais que ainda predominam em nossa sociedade. Porém, não podemos ignorar o fato de que pessoas trans têm seus corpos controlados todo o tempo. Suas identidades são patologizadas, suas transformações corporais são vigiadas, controladas e dificultadas (muitas das intervenções desejadas por pessoas trans são realizadas como procedimentos cotidianos para pessoas cisgêneras).

Não estou, acima, criando qualquer tipo de escala; não estou tentando, de nenhum modo, dizer quais corpos são mais controlados, se os das pessoas trans ou os das mulheres cisgêneras. Na verdade, estou estabelecendo paralelos e semelhanças. Não tenho dúvidas de que a transfobia tem suas raízes, e mesmo seu tronco e folhas, na estrutura patriarcal. As opressões sofridas por mulheres cis e por pessoas trans têm a mesma origem, ainda que se expressem de modos diferentes.

Não tenho muitas respostas, esta é a verdade. Creio, contudo, que seja importante pensar nos homens trans quando se discute aborto, Estatuto do Nascituro e outras violências de gênero, especialmente as institucionais, que podem ter reflexos significativos em termos de políticas públicas. Relevante lembrar, também, que a grande maioria dos homens trans, por algum tempo de suas vidas, foram socialmente reconhecidos enquanto mulheres. Deste modo, é muito possível que quase todos, ou mesmo todos, tenham vivido violências de gênero vinculadas à identidade “mulher”.

É tempo, então, de criar mais espaços de diálogo entre as feministas e os homens trans, e acho que essa é uma responsabilidade dos dois grupos. Os homens trans precisam ser protagonistas na luta que é deles, mas não dá para negar as dificuldades de organização, visibilidade e mesmo de existência e esperar que o oprimido se fortaleça e consiga gritar para, só então, tornar-se capaz de ouvir a sua voz e parar para escutá-la não me parece uma boa estratégia para quem realmente deseja pôr fim às opressões.

Ps.: Não tenho dúvidas de que este texto não reflete a opinião, muito menos a experiência, de todos os homens trans. Esses são os meus pensamentos e as minhas impressões e, por isso, refletem apenas isso: os meus próprios pensamentos e as minhas próprias impressões.

 

Fonte: Blogueiras Feministas

 

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