Eu nunca tive um amigo negro

por: Cláudio César Dutra de Souza*

Nunca se discutiu tanto a questão racial no Brasil como na época da aprovação da lei das cotas para negros em nossas universidades públicas. Também foi esclarecedora a percepção de nossas limitações nesse assunto. Subitamente, fomos brindados com as mais sofisticadas teorias sobre a inexistência do conceito de “raça”, que seriam muito bem vindas caso não estivesse totalmente deturpadas pelo nosso “racismo cordial”.

Ao pensar em um suposto “conflito racial”, algumas pessoas foram a público denunciar a inconstitucionalidade, a aberração e a inutilidade de uma política de cotas para negros, visto que não existe racismo no Brasil. Daiane dos Santos, Neguinho da Beija-Flor e tantos outros foram “branqueados” e alçados a sua genética condição europeia que lhes excluiria de uma vaga especial pelo sistema de cotas. Ao lermos o livro de ficção científica de Monteiro Lobato, “O presidente negro”, somos capazes de entender o que pode significar tais asserções e os aspectos políticos nelas envolvidos. Branqueamos os nossos negros, paradoxalmente, para mantê-los afastados de nós e de qualquer compensação reparatória, mesmo que mínima.

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O fato é que somos racistas até a medula nesse país. Isso não significa que, em nossa história, queimamos negros vivos como muitas vezes aconteceu nos Estados Unidos na época da Klu-Klux-Klan ou que nossos negros fossem impedidos de sentar ao lado de brancos nos ônibus. Isso é tecnicamente incompatível com o nosso caráter cordial-lusitano, até mesmo porque é desnecessário quando os negros “sabem o seu lugar”. E onde é esse lugar a qual designamos historicamente os nossos negros?

Basta pensar em qualquer garoto (a) de classe média branco (a) no Brasil em relação ao seu círculo próximo de amigos para se ter uma resposta muito rápida e precisa. Quase ninguém tem ou teve qualquer amigo negro. Quando falo em amigo não estou me referindo a conhecidos, mas sim, aqueles a quem dividimos nossos sucessos, alegrias, fracassos ou angústias. Aqueles que são convidados para dormir ou almoçar em nossas casas, bem como aqueles que podem se tornar objeto de nosso interesse amoroso. Eu jamais tive um amigo negro e tampouco alguma negra pela qual pudesse me apaixonar, pelo simples motivo que não convivi com eles na minha infância e adolescência como estudante em uma escola privada de Porto Alegre. Eles simplesmente não existiam.

Quando veio ao Brasil em agosto de 1960, o filósofo Jean Paul Sartre percebeu com perplexidade a ausência de negros em suas concorridas palestras. “Onde estão os negros?”, perguntou ele a certa altura para o constrangimento dos universitários ali presentes. Alguém responderia a Sartre que não havia negros no recinto tão somente por causa da falta de mérito dos mesmos em conquistar um lugar no espaço universitário? Nesse período, o dramaturgo Nelson Rodrigues também se perguntava: “Onde estão os negros do Itamaraty? Procurei em vão um negro de casaca ou uma negra de vestido de baile. O Itamaraty é uma paisagem sem negros.”

Nelson publicou em uma de suas “confissões” no jornal Última Hora em 26 de agosto de 1957 a seguinte observação acerca do teatrólogo e futuro senador da República Abdias do Nascimento: “O que eu admiro em Abdias do Nascimento é a sua irredutível consciência racial. Por outras palavras: trata-se um negro que se apresenta como tal, que não se envergonha de sê-lo e que esfrega a cor na cara de todo o mundo. (…) Eu já imagino o que vão dizer três ou quatro críticos da nova geração: que o problema não existe no Brasil. Mas existe. E só a obtusidade pétrea ou a má fé cínica poderão negá-lo. Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite. Acho o branco brasileiro um dos mais racistas do mundo”.

A exata localização de nossos negros me intriga. Essa inquietação já me levou a dirigir o meu olhar na esperança de encontrá-los, por exemplo, nas universidades em Porto Alegre. Munido desse olhar específico, passei dias no campus do Valle da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em busca de negros nas áreas comuns do campus e não os encontrei, salvo como funcionários da cantina. Em entidades particulares a experiência se repetiu exatamente da mesma forma. Tudo era uma branca e vasta paisagem, com poucas gradações de cor.

Intrigado com tudo isso, estendi a minha observação aos lugares na noite a quais frequento bares, restaurantes, cinemas e casas noturnas em geral. Eles não estavam lá. Não existem negros ou grupos de negros se divertindo junto com brancos ou estudando junto com brancos, salvo raras e honrosas exceções. Essa situação se repete nas principais cidades do Brasil, não sendo apenas um fenômeno típico de Porto Alegre.

Os negros estão nas periferias, nas favelas, nas escolas públicas mais suburbanas, nos presídios e em subempregos pelo país afora. É hipocrisia nossa imaginarmo-nos, por um instante que for, que vivemos em uma sociedade multicultural, inter-racial, ou qualquer coisa desse tipo. É urgente que nossos negros comecem a desenvolver certa consciência racial e a problematizar o lugar que ocupam dentro de uma sociedade racista como a nossa. Que exijam serem reconhecidos para além dos estereótipos e que ocupem os lugares reservados à elite branca. Que exijam a compensação por séculos de escravidão e exclusão a que foram obrigados pelo escravocrata branco. Se bem que, se a reação causada por um reles ensaio de ação afirmativa se deu em um nível histriônico, poderíamos esperar coisas piores de nossos alvos cidadãos em face de ações mais contundentes.

*Este artigo foi escrito por um leitor do Globo

Fonte: O Globo

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