Eu, uma mulher negra da Geração Z, inventei a minha profissão

Deixa eu me apresentar: sou Vitorí, mulher, negra, cis, do Sul do Brasil, que trabalha com inovação e tecnologia. Tenho 21 anos e sou uma das lideranças aceleradas pelo fundo Baobá através do Programa de Aceleração de Mulheres Negras Marielle Franco e trabalho com pesquisa de tendências futuristas. Muito prazer!

Eu penso o futuro. Eu ativo futuros. Eu sinto uma facilidade maior em me relacionar online do que pessoalmente. E sim, é “culpa” da tecnologia (e também do racismo que colocou pedras no desenvolvimento das minhas relações presenciais). 

Quando fui começar a escrever esse artigo, encontrei vários desafios e conflitos internos, até enfim, externalizar um tema que fosse de minha escolha.

Enquanto dormia e acordava com a ansiedade de encontrar algum tema para escrever e aprender a estruturar um artigo, visitei blogs, parei para consumir textos longos (coisas que não tenho praticado muito) e aqui, enquanto escrevo, quero de peito aberto compartilhar com você que: eu não sei escrever um artigo. Aí, lembrei da minha caminhada… Eu nunca conclui uma “faculdade tradicional”. Nunca produzi um artigo acadêmico. Eu e muites jovens negres da minha geração também não. 

E agora

Eu sei que muites que estão lendo vão pensar: “ah mas a tecnologia estragou os jovens” ou “também, só fica no celular, precisam ler mais livros!” – e está tudo bem.
Mas olhando por uma perspectiva de encontrar uma solução… Essa é a realidade.
Pergunto novamente: e agora?

Num momento que a onda da transformação digital chegou avassaladora e 

as redes sociais estão infoxicadas com mentiras e conteúdos valiosos (intérprete valor como quiser) sendo compartilhado de graça, como a gente se organiza?

O conceito de “infoxicação” pode ser dado a uma lógica simples: 

tudo que é registrado vira dado, tudo que é dado vira informação, tudo que informação vira conhecimento e tudo que é conhecimento vira sabedoria.

Considerando o cenário de produção massiva de dados (e por aí vai), estamos intoxicados com tanta informação. Ou seja, infoxicação. 

Desde a comercialização da tecnologia que permitiu expandir a conexão da internet (no início dos anos 80) e o avanço das tecnologias como telefone, rádio, televisão, celulares, etc, os seres humanos foram apresentados a uma possibilidade de integrar interações de um jeito extraordinário e nunca visto antes na história. Isso inclui o formato que aprendemos e desenvolvemos nossas relações, né?  

Enquanto eu respondo o grupo da família no WhatsApp, eu recebo elogios via comentário no Instagram, e acompanho uma treta no Twitter.
Tudo isso enquanto eu estou ouvindo o lançamento de uma música no Spotify e preparo meu almoço no fogão da minha casa. 

É muita coisa. É muito contato ao mesmo tempo por espaços diferentes. É novo e às vezes assusta. Eu sei.

Com a “chegada” da pandemia, vimos os negócios se (re)estruturarem sobre uma base digital quase inexistente no Brasil.
Todos os conteúdos ao mesmo tempo: robôs, automatização, redes sociais, lojas virtuais, influencers digitais, todo mundo faz tudo e você não consegue fazer nada…

Um senso de urgência e sobrevivência foi ativado com rigor. E caso você se identifique com esse contexto, quero gentilmente te dizer que: assim como várias pessoas, você não está atrasade. Você está infoxicade. 

Não tem para onde ir, é novo. Temos que construir. 

Ok, agora sabendo que não existe caminho pela frente sem a presença do impacto (direto ou indireto) da tecnologia nas nossas vidas, que é uma trilha nova… Temos que olhar para o amanhã considerando que vários presentes existem ao mesmo tempo e existem várias divisões disfarçadas de meritocracia. 

A tecnologia não é feita de metal e números, ela tem raça, classe e gênero. A partir de pesquisas feitas pelo PretaLab, podemos chegar a conclusão que: no Brasil, a tecnologia é feita por homens cis brancos para gente branca. 

E que futuro é esse?

Se lembrarmos da história do nosso país, encontraremos em cada capítulo a organização que orquestra até hojeo protagonismo e construção de narrativa.

Confesso que escrever esse texto não está sendo um dos desafios mais confortáveis que assumi nos últimos meses. Faço parte da primeira geração impactada e mergulhada diretamente pela internet e tecnologias no geral que chega na vida adulta e por consequência… no mercado de trabalho.

Com muito orgulho eu digo que inventei minha própria profissão. Escapei de muitas estatísticas eenquanto eu escutava e via garotos, cis e brancos com auto estima e capacidade para inovar e inventar a própria carreira e ser eles mesmo nesse conflito geracional bizarro, eu criei a minha própria história e sou a protogonista.

Quanto mais eu me adentro ao grupo de “futuristas” do Brasil e América Latina, mais eu vejo a ponte de acesso sendo destruída (será que elas já foram alguma vez construídas?) para crianças e adolescentes negres.

O Brasil se encontra num cenário onde o presente já é consequência de uma estrutura cruel. 

Considerando que a natureza da inovação é a possibilidade do erro e de errar o mais rápido para chegar mais perto do certo o mais rápido possível… Como enfrentar a realidade de um presente onde anafalbetismo digital é um buraco enorme na ponte para qualquer sonho seguro. Que futuro? Ele existe?

Errar é privilégio. 

Ao mesmo tempo, vejo na população negra brasileira uma potência de inovação absurda, onde códigos e máquinas não entendem nossa estratégia de “adaptar-se ou morrer” (se você faz parte da cena de tech do Brasil, com certeza você já se deparou com essa frase, e se você faz parte da comunidade negra você vive isso diariamente…). 

Considerando a potência que somos, um dos desafios pode ser: como traduzir o que já sabemos para o algoritmo? 

Enfim, quero deixar através de uma tela uma provocação para você que está aí lendo de uma outra tela: como a gente atrai adolescentes e jovens para conhecimentos valiosos e de fontes confiáveis em um momento onde  fake news e diálogos no Twitter são formadores de opinião?
Debates estão se diluindo. E isso também é projeto de genocídio, agora automatizado em toda bolha social que para acessa-la precisamos colocar nosso e-mail e senha. 

Atualmente 96% da população tem acesso a internet a partir de  smartphones e temos um tempo médio de uso de internet de 9 hs e 17 minutos

Ou seja: é urgente. A gente precisa de internet, acesso e principalmente educação digital.

Galera que nasceu aí pelos 1995 (1998 no meu caso) e cresceu com a internet, nós somos a primeira geração a vivenciar os impactos de uma vida adulta pós internet. Antes de começar a escrever esse texto, eu gravei e postei 1 tiktok e acho que uns 5 stories no Instagram “bem” produzidos.

Me arrumei e produzi conteúdo para estudar e escrever. Digitei vários emojis nesse texto e depois apaguei. Pedi a várias amigas para revisar minha ortografia (elas ajudaram muito, valeu migas). 

Eu não estou desconsiderando pesquisas acadêmicas e textos, muito pelo contrário!
Estou compartilhando uma angústia geracional que estamos enfrentando de olhos fechados. Nós somos um dos principais protagonistas na projeção desse futuro.
Bora? 

Meu texto é curto. Até porque quero muito que uma galera que tenha dificuldade em ler textos longos (como eu rs) chegue até aqui. 

Jovem negra, jovem negro que está lendo isso: como podemos levar para essa batalha com o invisível (algoritmos racistas) nossas histórias, fontes confiáveis e principalmente, nosso protagonismo negro.


¹ Brief History of the Internet. Disponível em: https://www.internetsociety.org/internet/history-internet/brief-history-internet/. acesso em: 22 set. 2020.

² Digital 2020: Brazil. Disponível em: https://datareportal.com/reports/digital-2020-brazil. Acesso em 22 set. 2020.

Vitorí é ativadora de futuros e constrói pontes entre o universo online e offline no Brasil. Marketeira digital com ênfase em ciência de dados, levanta conversas sobre transformação digital e inovação social. É uma das organizadoras do TEDxFloripa, Trend Forecaster na Aerolito e Diretora de Inovação da Escola Olodum Sul. 

Utiliza (principalmente) da ascensão de tecnologias para promoção da construção de um mundo virtual mais seguro e humanizado

REDES SOCIAIS:
Instagram: @vihdaloka
LinkedIn: Vitorí Barreiros da Silva

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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