Perpera, o ex-pajé, caminha no meio da floresta. Calça preta, gravata da mesma cor. Frouxa. A camisa branca parece ter dois números a mais. O senhor, com pouco domínio do português, também vai ao supermercado. No corredor de frios, precisamente, esmagado entre infinitas marcas de margarina. Mais uma vez, surge a sensação de inadequação social.
Por Carolina Braga Do Culturadoria
São em diversas cenas assim, com poucas palavras, muita poesia e uma análise social profunda que o diretor Luiz Bolognesi desenvolve Ex-Pajé. O documentário premiado em festivais como Berlim e É Tudo Verdade revela a “erosão” das tribos indígenas brasileiras. Infelizmente, coisa de longa data na história deste país.
“Não sei se os índios vão gostar mas eu, como cineasta, acho que é uma imagem apropriada. Tem algo se corroendo”, concorda o cineasta com o termo utilizado pelo crítico Rodrigo Fonseca para descrever o filme. “São 500 anos de muita violência, inclusive psicológica. Isso tudo vai tentando destruir as culturas indígenas”, continua.
Luis Bolognesi – que estudou antropologia durante cinco anos – tem a carreira de roteirista mais conhecida. Escreveu longas como Bicho de sete cabeças (2000), Bingo: O Rei das Manhãs (2017), Como Nossos Pais (2017) e tantos outros. No entanto, na atual incursão como documentarista, fez questão de deixar que as imagens falassem mais do que as palavras.
Nos 15 minutos finais de Ex-Pajé, por exemplo, ninguém fala nada. “Acho que aprendi isso com eles. Estava muito aberto”, conta o diretor.
Encontro com o personagem
O tema indígena sempre interessou Bolognesi. No entanto, foi na pesquisa para animação Uma História de Amor e Fúria (2013) que tomou conhecimento sobre Perpera, um índio Paiter Suruí.
Até os 20 anos Perpera viveu num grupo isolado na floresta onde se tornou pajé. No entanto, depois que os brancos passaram a explorar o local, ficou difícil para o índio continuar a tradição. Isso porque os pastores evangélicos condenavam os atos e saberes do pajé. Em resumo: diziam que a pajelança era coisa do Diabo.
Mesmo que não acreditasse, Perpera se sentiu obrigado a desistir. Viu-se cada vez mais isolado socialmente.
Quando o cineasta ficou sabendo dessa história, decidiu transformá-la em filme. Principalmente porque o abandono da missão por Perpera tem mais pressão do que decisão. É uma angústia para ele ser um Ex-Pajé. Isso tudo está muito bem registrado no longa.
Procedimentos
Bolognesi e equipe passaram um mês na Floresta acompanhando os passos de Perpera. Aqui entrou um dos grandes desafios do roteirista: justamente o de abrir mão do roteiro. “Eles lidam com o acaso. É o que importa. Se eu chegasse com uma história pronta para ser filmada não ia traduzir o que eu queria. Seria colocar uma camisa de força”, conta.
O diretor escolheu, então, chegar com a ideia e toda experiência de roteirista como bagagem. Na noite anterior decidia o que ia filmar no dia seguinte. Escolheu como equipamento uma câmera cinemascope. Isso para que pudesse captar, sem interferência mecânica, toda a poética da floresta. Para se ter uma ideia, o equipamento utilizado é o mesmo que rodou Starwars.
“O que eu mais queria era traduzir em poesia a potência da cultura indígena. Sua riqueza e superioridade”, detalha. Fez isso por meio da fotografia de Pedro Mar e também da mixagem de som.
Para o diretor, também era igualmente importante, retratar o terror psicológico que esses povos estão vivendo. “Fico constrangido de ter que ouvir quatro mil anos de conhecimento é coisa do Diabo. Queria passar para as pessoas o nível de loucura e violência que se passou com aquele homem. Ele foi tirado de um lugar de sabedoria e de poder”.
Por meio das imagens, fruto da sensibilidade do diretor, Ex-Pajé deixa claro o incômodo de Perpera. As cenas em que ele aparece nos cultos, está sempre de costas para o Pastor, com o olhar voltado para a floresta. “Que é onde a cabeça dele circula. Eles enxergam que os seres tem história”. Ô, se tem!