‘Existe uma mentalidade racista ainda muito aprofundada no nosso país’

Douglas Belchior, ativista do movimento negro, fala sobre as fotos racistas tiradas durante o trote aos calouros de Direito da UFMG

Por Felipe Rousselet

durante o trote aos calouros do curso de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) causaram uma imensa repercussão negativa nas redes sociais.

Uma das fotografias exibe uma caloura caracterizada como uma negra acorrentada a um jovem branco, com uma placa com os dizeres “Caloura Chica da Silva”; e a outra mostra um calouro amarrado a uma pilastra enquanto quadro rapazes posam fazendo uma saudação nazista.

De acordo com a vice-reitora da UFMG, Rocksane de Carvalho Norton, a universidade tomou conhecimento das fotos e irá punir os responsáveis pelas mesmas. “A direção da Faculdade de Direito vai iniciar um processo de apuração dos fatos e ficar responsável pela aplicação das penalidades que sejam cabíveis ao caso”, disse em entrevista ao portal G1.

A reportagem da revista Fórum ouviu o ativista do movimento negro e membro da Uneafro (União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora), Douglas Belchior, que falou sobre o trote da UFMG, abordando o racismo no Brasil, a política de cotas e a eleição do deputado Marco Feliciano (PSC) para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Como você avalia as polêmicas fotos tiradas durante o trote do curso de direito da UFMG?

Douglas Belchior – Apesar dos avanços que a gente tem, eles são pequenos diante do desafio do combate ao racismo, porque a sociedade brasileira é racista. Existe uma mentalidade racista ainda muito aprofundada no nosso país.

Com esse tipo de ação, a cada ano, a cada trote, percebemos um outro momento de exposição desse sentimento. Se, por exemplo, em programas matutinos, em programas de comédia, cotidianamente a gente tem a exposição da figura negra fazendo papel de ridículo, ou sendo menosprezada, ou sendo objeto de chacota e motivo de risos, imagina o que acontece em espaços mais conservadores como esse.

Na verdade, é mais uma demonstração do quanto a gente precisa combater o racismo enquanto mentalidade e enquanto valores na nossa sociedade. E não é só por meio de políticas públicas, que são importantes, mas fundamentalmente com a eleição desse tema como algo prioritário para a formação de um novo homem e de uma nova mulher.

Precisamos trabalhar isso na mentalidade. Afinal, foram 388 anos de escravidão e mais 125 anos em que o povo negro tem sua cidadania negada e continua no mesmo espaço social que sempre viveu desde o início da história oficial do Brasil. Existe uma permanência e esse tipo de episódio revela isso.

Algumas pessoas que se manifestaram sobre as fotos nas redes sociais afirmaram que se tratava de uma brincadeira e que não seria um ato de racismo. Como você analisa este tipo de afirmação?

Douglas Belchior – É uma outra característica do racismo brasileiro, que é o viés da graça, da risada, o viés do engraçado. Não só em relação ao racismo, mas com um carácter de chacota, uma dimensão das opressões que vivemos no Brasil. A formulação de piadas racistas, de termos, de situações, a reprodução disso nos espaços da cultura popular, da comédia.

Não só em relação aos negros, mas também em relação à mulher, que continua sendo tida como aquela que “nasceu para trabalhar na cozinha” ou “precisa contar só até seis, porque não existe fogão de sete bocas”. Ou ainda o uso do elemento da homofobia como objeto para riso. É um subterfúgio, uma forma de diminuir o impacto da opressão, colocar como uma brincadeira, algo menor. Como se fosse parte da nossa cultura menosprezar essa população.

Isso reafirma o racismo. A cultura brasileira se criou de maneira a negar o racismo que é explícito nas relações cordeais e nessas relações do riso, da graça.

Esse foi o primeiro ano em que a UFMG adotou o sistema de cotas no seu vestibular, reservando 13,62% das vagas para cotistas.  Você acredita que a ampliação da política de cotas evitaria que episódios como este se repitam?

Douglas Belchior – Não me recordo agora qual a população de negros no estado de Minas Gerais, mas desconfio que seja maior que esses 13,62% que você está me falando. A reivindicação que o movimento negro faz em relação às cotas é a reserva de vagas proporcional ao percentual da presença negra no estado. Não há dúvidas de que se o sistema de cotas garantisse maior oportunidade motivaria mas negros a fazê-lo.

Aquele velho debate: cotas é apenas uma política reformista, compensatória, ou tem um papel histórico no processo. Nós achamos que as cotas têm um papel histórico no processo de tomada de consciência, no processo de combate ao racismo, da mentalidade racial brasileira.

Veja só, um negro dentro desta universidade [UFMG], garante uma reação negativa a este tipo de acontecimento. A presença negra pode gerar uma reação diferente de quando não existe um negro ali, uma reação diferente daquela provocada entre os que são solidários. Não tenho dúvida nenhuma que o sistema de cotas, colocando os negros em espaços sociais onde ele nunca esteve, aumenta nossa chance de reação e exposição desse tipo de situação.

Você tem vários exemplos de que negros, quando estudam e chegam a ser doutores, advogados, médicos, suportam muito menos a opressão racial e denunciam mais. O sistema de cotas, portanto, é um propulsor de denúncias contra o racismo.

É disso que a gente precisa. O Brasil precisa deixar de ser o país do racismo velado e passar a ser o país, ao menos, do racismo reconhecido. É só reconhecendo a doença que nós podemos tratá-la. E cotas é um passo neste sentido.

Quais outras medidas poderiam evitar tais manifestações racistas?

Douglas Belchior – Existe uma medida muito importante, fundamental, a lei 10639/03, de 2003, que fez dez anos agora. As políticas reparatórias de compensação são importantes, mas existem políticas estruturantes, que mexem com a mentalidade a médio e longo prazo.

Você imagina que o garoto que está naquela foto não deve ter mais que 20 anos, pelo menos essa foi a minha impressão. Portanto, há dez anos ele estava no ensino fundamental. Imagina se este menino, desde os 10 anos de idade, tivesse sido atendido por uma política educacional que promovesse a diversidade, que ensinasse os valores do povo negro, a sua cultura, e a importância disso tudo para a formação do Brasil, com certeza a sua mentalidade seria diferente do que é hoje.

Se a escola valorizasse a diversidade e aplicasse a lei 10639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino da história da África, dos africanos, da sua cultura, e da sua importância para a formação do país. Certamente, esse menino teria outra postura na sociedade. Portanto, a lei 10.639/03 possui uma papel fundamental na estrutura, na estruturação das relações sociais no Brasil.

Coincidentemente, essa lei avançou nos últimos dez anos, mesmo período em que as políticas de cotas avançaram, apesar de todo barulho. A gente avalia que o sistema de cotas é o “mal menor” que a burguesia vê. A lei 10639/03, que estrutura a educação em uma leitura que valoriza a diversidade, com certeza traz muito mais prejuízos aos racistas e à burguesia brasileira.

Como estamos falando de violações de direitos humanos, neste caso o racismo, como o movimento negro avalia a eleição do deputado Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados?

Douglas Belchior – A gente percebe um avanço e algumas vitórias dos movimentos sociais, dos movimentos de luta pelos direitos das mulheres e contra o racismo nestes últimos anos. Houve algum avanço no sentido de leis, por mais que não sejam aplicadas como gostaríamos e ainda não gerem os resultados que esperamos, mas são avanços importantes que provocam uma reação muito raivosa, muito poderosa. Isso tem de ser considerado. À medida que temos mais espaços para gritar e exigir nossos direitos, também a reação dos racistas, dos homofóbicos e machistas tendem a ganhar força

A eleição do Feliciano é, sem dúvida nenhuma, um sinal desse avanço dos setores conservadores, ocupando esses espaços e visando que novos avanços aconteçam. Com certeza isso tem de ser considerado, mas é também um recuo das forças progressistas, no caso, o PT e o PC do B, que abriram mão deste espaço. Abdicaram com a leitura de que setores da economia, ou do agronegócio, seriam mais estratégicos do que esse.

Sem dúvida nenhuma essa eleição é uma reação à luta dos movimentos por parte dos conservadores e, por outro lado, a nossa representação progressista tem recuado. Não existe desculpa para o PT e o PC do B terem aberto mão deste espaço. Não existe lugar vazio na política e os caras ocuparam este espaço.

 

 

Fonte: Revista Forum 

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