Expressões artísticas devem ser apreciadas

A dança é para o historiador Simão Souindoula uma das expressões artísticas de relevo no seio das comunidades africanas

A Assembleia-Geral das Nações Unidas declarou 2011como o “Ano Internacional dos Afro descendentes”. Em entrevista concedida, ontem, ao Jornal de Angola, o perito do Fundo das Nações para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), Simão Souindoula, afirmou que essa decisão da ONU é posta em prática através de um programa específico da UNESCO, sendo esse organismo encarregue das questões educacional, científica e cultural. Afirmou, ainda, que a execução desta decisão surgiu da necessidade, urgente, de se dar mais atenção às populações afro descendentes, à semelhança do que tem sido a realização do Festival Mundial de Artes Negras (FESMAN), cuja terceira edição aconteceu em Dezembro último. Por essa razão, o historiador fez um balanço do FESMAN, realizado em Dakar, no Senegal.

Jornal de Angola – A UNESCO realiza de 27 deste mês até ao dia 3 de Março, a sua reunião bienal, em Bogotá, na Colômbia. Quais são as principais acções deste encontro de que fará parte?
Simão Souindoula – O balanço das acções realizadas pelo projecto “A Rota do Escravo”, que coordeno aqui em Angola,  durante o biénio 2009-2010, no qual sobressaem diversas celebrações do bicentenário da abolição da escravidão e as ligadas à proclamação das independências dos Estados americanos e caribenhos, é um dos objectivos. Vamos fazer, também, a apreciação do dossier sobre a construção, na sede das Nações Unidas, de um monumento dedicado à memória das centenas de milhares de vítimas do “Captive Passage”. Os peritos vão analisar os principais eixos do programa operacional 2011-2013, que serão fixados numa dinâmica dominada pela implementação de acções próprias da “Place Fontenoy” e o apoio a centenas de projectos provenientes de horizontes diversos, surgidos após a Declaração pelas Nações Unidas do Ano 2011 como a consagrada, prioritariamente, às populações afro descendentes.

JA – Este encontro analisa também a atenção que a ONU pretende dar às comunidades afro descendentes?

SS – Evidentemente. A Assembleia-Geral das Nações Unidas declarou 2011como o “Ano Internacional dos Afro descendentes”. Sendo a UNESCO o braço desse organismo encarregue pela questões educacional, científica e cultural, existe um programa específico cuja aplicação, a partir deste ano, vai incidir fortemente sobre a diáspora afro descendente nas Américas e Caraíbas, na Ásia e na Europa. Praticamente vamos reflectir em torno dos objectivos gerais em que se norteou a realização do Festival Mundial de Artes Negras (FESMAN), cuja terceira edição aconteceu em Dezembro em Dakar, no Senegal.

JA – E que balanço-resumo nos pode fazer acerca do III Festival Mundial das Artes Negras?

SS – Em duas noites de trabalho e em várias vertentes, o passado e o futuro de África e da sua diáspora estiveram em evidência. Para mim, este sumário foi consubstanciado nas actuações, emocionantes, da mítica Orquestra Aragon e da estrela norte-americana, de origem haitiana, Wycelf Jean.
Deve-se salientar, no domínio da perpetuação memorial, a abertura ao público do significativo Museu da Recordação, edificado na marginal de Dakar, frente a ilha esclavagista de Gorée. Uma das exposições com originais e móveis montados, foi a “Inventores Negros”, demonstrando que os melanodermes não só brilharam nas artes (música e dança), mas igualmente na ciência e tecnologia. A destacar, igualmente, as dezenas de actos artísticos e culturais organizados perto do altaneiro Monumento da Renascença Africana. Outro momento crucial do Festival dos Níger foi a organização do Foro sobre a Renascença Africana.

JA – Quais são outros aspectos que mais sobressaíram no decorrer do III FESMAN?

SS – Um dos factos fundamentais que sobressaiu dos trabalhos de alto nível deste encontro foi a aceitação, definitiva, ao nível científico mundial, dos estudos do saudoso professor Cheikh Anta Diop sobre a influência, determinante, da antiga civilização egípcia, que era, predominantemente  Níger, no Médio e Próximo Oriente e na bacia do Mediterrâneo. Os participantes a reunião ficaram impressionados pelo vigor científico da nova geração de egiptólogos, conduzido pelo conceituado historiador congolês Theophile Obenga. Esses peritos são africanos, afro-americanos e antilhanos, que gravitam à volta da incomparável revista “Ankh “ (negro, no egípcio antigo). Esta publicação é coordenada pelo filho de Cheikh, Mbacke, engenheiro das tecnologias digitais, que conseguiu informatizar os hieróglifos egípcios. Por essas razões, os participantes recomendaram a urgente revisão de vários capítulos dos manuais de história do continente, sobre o período antigo, a fim de se conformar com os extraordinários avanços da egiptologia.
Outro facto marcante foram as intervenções do historiador afro-americano Kunoko Rashidi, especialista da presença africana na Índia, Austrália, nas Ilhas Fiji, na Turquia e Jordânia. Instantes absolutamente comovedores foram os das comunicações da afro-americana Delois Blakely, a Presidente da Câmara Municipal de Harlem,  de uma jovem  historiadora afro-turca e do activista político de Papuásia Ocidental, Nova Guiné, Benny Wenda. Enfim, deve-se notar a contribuição, inesperada, do investigador beninense Dieudonne Gnammankou sobre a ascendência africana, provavelmente, camaronesa, de Alexandre  Pouchkine, o pai da literatura russa.

JA – Fale-nos acerca da conferência “A Rainha NZinga e a profetiza Kimpa Vita”.

SS – Abordei a importância dessas duas figuras históricas na minha intervenção, que foi a primeira comunicação apresentada no fórum. Desenvolvi a temática “Sítios e Instituições de Memória do Mundo Negro e Direitos Humanos”. Essas duas personalidades surgem, respectivamente, no século XVI e inicio do século XVII, períodos da consolidação da esclavagista Colónia de Angola e da forte desarticulação do Reino do Kongo, consequência da desenfreada acção dos traficantes de peças de Índias. A política e a profetiza, que apareceram nesses contextos históricos, difíceis, foram, naturalmente, retidas como figuras dignificantes da história de África e da sua diáspora. As duas figuras integraram o Museu da Recordação, as exposições móveis sobre “As Resistências” e “As Heroínas”.

JA – Como podemos compreender a expressão que usou na sua comunicação, afirmando que o FESMAN é o “reagrupamento dos “Danados da Terra”?

SS – Trata-se de uma enunciação que gosto de usar que pertence ao destacado militante panafricanista, de origem antilhana, o saudoso Frantz Fanon. Somos, ainda, os lesionados da Terra. E não é por casualidade que a Assembleia-Geral das Nações Unidas declarou o presente ano que acabamos de iniciar como “Ano Internacional dos Afro descendentes”.

JA – Que motivação esteve na origem do lema do festival, “Renascimento Africano”?

SS – Um decénio após a total libertação política do continente africano, o nosso grande desafio é de coagular o atraso histórico que nos foi imposto. África deve, realmente, ressuscitar após as fecundas formações sociais do Nilo ter oferecido à humanidade decisivas dádivas civilizacionais. Hoje, o objectivo primordial da Afrikiya consiste na urgente emergência económica, científica e tecnológica, num bloco geopolítico e geoestratégico, a exemplo dos actuais países emergentes tais como a China, a Índia, a Rússia e o Brasil. Nota-se, no continente, um crescimento económico e social reconfortante. Uma dezena de países africanos regista taxas de crescimento dentre as mais fortes do mundo, o que é um bom sinal! Logo, o Festival pretendia encorajar esta dinâmica fortificante, através de uma conexão semiótica entre África e as diásporas, para que o continente se recuse a continuar a sobreviver nos barracões de tipo esclavagista. Tudo isto, podemos enquadrar num conceito de renascença africana, a exemplo do “Quattrocento italiano”, como a nova ideologia de desenvolvimento de África.

JA – Como receberam os estrangeiros e a diáspora essa mensagem?

SS – Muito bem! Prova disto, a impressionante delegação brasileira, que atingiu cumulativamente quase um milhar de participantes. A cantora brasileira Margareth Menezes pediu, com toda razão, uma periodicidade menos longa na organização das edições do Festival. Um outro facto que se traduziu positivamente foi a imponente delegação norte-americana, que era constituída por mais de 200 personalidades de diversos quadrantes, entre parlamentares, vereadores, especialistas das indústrias criativas, jornalistas, atletas e professores universitários. Vimos, ainda, especialistas negros em diferentes ramos do saber como astrofísicos e matemáticos de alto nível, prontos a ajudar a expansão das ciências exactas em África. Outro indício foi a presença de intelectuais afro-canadianos e afro-turcos de raiz esclavagista. Enfim, idêntico sinal foi a vinda a Dakar do filho do mítico pan-americanista de origem jamaicana, Marcus Garvey, um médico com cerca de 70 anos, radicado nos Estados Unidos da América.

JA – O ideólogo do FESMAN, Léopold Sédar Senghor, defendia um festival que reafirmasse a nobreza das culturas africanas, à luz da visão política dos povos de África. De que forma a organização tem assegurado esse espírito de afirmação da cultura negra no mundo?

SS – Penso que o comissariado do Festival, no qual foi envolvida a Sindiely, filha do Presidente Wade, atingiu este objectivo, reunindo o que há de melhor no mundo negro, no domínio das artes visuais (cinema, fotografia, artes plásticas, design, moda e arquitectura), no das artes de espectáculo (teatro, dança e música) e no da literatura. Acho que os africanos devem apreciar as maravilhas das expressões artísticas em vez de serem encurralados por conflitos repetitivos, perfeitamente evitáveis. Um exemplo perfeito desta consciência foi a organização de um concerto do famoso violencista afro-francês, do século XVIII, o Cavaleiro de São Jorge, cujo génio de criatividade musical pode ser comparado ao de Mozart.

JA – A maioria dos países africanos continua mergulhado em pobreza acentuada, discrepâncias socias e políticas. Tendo em conta esse prisma, acha possível os africanos vincarem positivamente o espírito de defesa das culturas negras?

SS – Penso que a fase difícil para o continente ficou para atrás. Repito que os indicadores económicos são, hoje, na maioria dos países africanos, bastante encorajantes. A revalorização da nossa expressão linguística e antropológica deve ser encarada como parte do nosso desenvolvimento. Sendo o Senegal um país com recursos modestos, beneficiou, pela organização do Festival, da solidariedade de vários países do mundo. Esse país alberga o Museu das Civilizações Negras, onde estiveram reunidos vários chefes de Estados africanos, tais como os Presidentes Sirleaf Johnson, Muamar Kaddhafi, Teodoro Obiang Nguema, Pedro Pires e Goodluck Jonathan. Para se defender as culturas negras deve haver interesse geral dos próprios Governos, apesar das urgências de carácter económico ou social. A salvaguarda e a promoção da herança histórica e do património cultural é primordial.

JA – Angola foi um dos parceiros oficiais institucionais, além de ter participado com uma delegação composta por vários artistas. Quais as vantagens para a diplomacia cultural?

SS – As trocas culturais dão um sentido mais humano e mais nobre às relações de tipo político e comercial que, geralmente, são frias. Penso que as notáveis actuações de Bonga, em Saint-Louis e em Dakar, assim como a minha participação no Comité Científico do Festival, demonstraram que Angola não está limitada às fabulosas receitas angariadas na venda do petróleo. Essa presença comprovou que a terra de Ngola Kiluanji e de Mandume é um país de forte identidade cultural.

JA – Além da realização do FESMAN, que caminhos aponta para que a afirmação da arte e da cultura africana tenha cada vez mais interesse de outros povos?

SS – As vias a utilizar para este desenvolvimento são as das novas tecnologias de informação e da comunicação com a abertura de mais canais de televisão,  o estabelecimento de mais ligações por fibras ópticas, a construção de mais info-estradas, o desenvolvimento de mais iniciativas de tipo wikiafrica, a organização de mais ciberespaços, entre outros serviços.

JA – A divulgação do FESMAN pela imprensa africana e estrangeira foi  satisfatória?

SS – Penso que o país organizador dispendeu grandes esforços neste sentido. Uma centena de jornalistas foram acreditados. Fiquei, agradavelmente, surpreendido com a presenca,  na capital senegalesa, de uma equipa especial da revista Austral, publicação da nossa companhia de bandeira, a TAAG.

Fonte: Jornal de Angola

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