A fé utilizada como mercado

“Será razoável o Brasil gastar com aposentadorias o mesmo percentual do PIB que o Japão, um país de idosos”? A pergunta, feita por um economista com espaço em jornal de largo alcance, procura sugerir que os gastos com a previdência são insuportáveis diante das contingências fiscais do País (Folha de S. Paulo, 28/3/2017, p. A9). À primeira vista, sobram-lhe razões. Há déficit crônico da previdência, explicando esse evento contábil, simplificadamente, pela equação: Receitas (-) Despesas = Menos que Zero; já que as Despesas – essas vilãs – suplantam em muito as Receitas, que são um termo daquela equação jamais tocado pelos chamados, eufemisticamente, “economistas pró-mercado”.

Por Helio Santos, do Brasil de Carne e Osso

Elites Anãs

Certos economistas impressionam pela erudição vazia de conteúdo em que se leve em conta a crua realidade brasileira, outros nos assustam pelo olímpico analfabetismo em história social do Brasil. Para alguns outros, contudo, não se deve debitar ignorância, pois têm notório compromisso com instituições que se beneficiam de suas “análises”, onde são regiamente pagos. Todavia, há um grupo que cultua uma fúria certeira, o qual, na falta de outro nome, denomino aqui em nosso blog de “religioso”. Trata-se de uma seita que nada tem de caduca. Tudo a ver com o Brasil-potência, ferido por uma incúria que, de tão antiga, ameaça gangrenar gravemente a nação gigante, mas, desgraçadamente, anã de elites capazes de agregar valor às suas imensas riquezas naturais e humanas. Evidente que existem importantes exceções e linhas de estudo que transitam na contramão da crença daquele grupo. Percebe-se a “fé” desse grupo quando seus membros, diante da reivindicação por direitos num País escandalosamente desigual como o Brasil, afirmam, não inocentemente: “De onde sairão os recursos para isso, ninguém sabe.” Percebe-se que há, de fato, fé, mas é má-fé; neste caso, eivada de preguiça.

1,6 Trilhões roubados em 4 Anos

Os procuradores da Fazenda Nacional estimam que cerca de 1,6 trilhão foi sonegado nos 4 últimos anos: 2013 (415 bilhões); 2014 (500 bilhões); 2015 (420 bilhões) e 2016 (275 bilhões). Trata-se de uma cifra escandalosa ante a penúria vivida pela Saúde e Educação no País. Há quem especule que os 1.600 bilhões de reais são apenas a ponta do iceberg da rapinagem doentia em que o País sempre esteve imerso. O fato dessa variável (tributos não pagos) não ser considerado por aquele grupo de fiéis, quando se discute a crise fiscal, não se deve tanto à desídia, mas mais à ideologia mesmo. Em 2017, até o presente momento, estima-se uma sonegação de 144 bilhões de reais.

Tais “religiosos”, apesar de economistas, desconhecem aspectos triviais do fluxo financeiro-contábil, pois sempre são pegos na crença de que empresários “pagam” impostos, quando estes, em verdade, os recolhem. Impostos são pagos pelo consumidor da mercadoria, produto ou serviço vendido pelas empresas, cuja composição do preço inclui os tributos. Quando estes não são recolhidos, a margem de lucro é ampliada indevidamente. O consumidor-cidadão, quase nunca lembrado por essa seita, perde duas vezes: primeiro, quando paga os impostos cobrados no preço que, sonegados, não retornam como investimentos públicos – saúde e educação, sobretudo –, e perde de novo pela ausência da dinâmica econômica que tais valores bilionários causariam caso não fossem transformados em “Caixa 2”.

Brasil um Imenso Caixa 2

A sonegação fiscal é a artéria principal que abastece o modelo moral incrustado na cultura da economia brasileira, conhecido pela alcunha de “Caixa 2” – tão falada em época de Lava-Jato, mas que é abordada apenas no circunscrito espaço do financiamento de campanhas políticas. A verdade é que o Brasil, quase todo, é um imenso “Caixa 2”. A sonegação opera na contramão do que se convencionou chamar de Responsabilidade Social Corporativa. Recentemente (2016), cerca de 157 bilhões foram repatriados (criou-se um eufemismo para esse jogo: Regime Especial de Regularização). Trata-se de ativos (valores, bens) existentes em outros países que não foram declarados pelos seus titulares brasileiros (não interessa aqui, agora, explicar como esse lapso aconteceu!). Nova oportunidade foi dada em 2017 a esses brasileiros “esquecidos” e se estima repatriar mais 85 bilhões de reais.

Apesar de o Brasil fazer parte do seleto grupo dos 10 países mais ricos, pratica-se aqui, historicamente, um rebaixamento dos salários. Ainda assim há quem entenda que as leis trabalhistas encarecem a contratação gerando desemprego e informalidade. Nunca se aprofundaram, honestamente, nas razões dessa reserva de manobra representada por exércitos de subempregados e trabalhadores precarizados pelo capitalismo predatório que se optou fazer aqui no Brasil – processo que se acentua gravemente no momento atual.

A pergunta feita no início deste texto, quando se compara o Japão ao Brasil, exibe um nonsense imperdoável, mesmo para quem o cometa em nome de uma fé, como parece ser o caso. Além de sermos 23 vezes maiores que o Japão, que possui 63% de nossa população, dispomos aqui no Brasil de uma capacidade ociosa exuberante – de tudo: água, terra, recursos minerais, reserva florestal (a maior do planeta), mar, potencial eólico, sol e gente que sempre respondeu positivamente quando teve oportunidades.

O Custo de Desperdiçar Talentos

Os “religiosos” brasileiros continuarão distantes de um Nobel de Economia como o diabo da cruz, enquanto não se empenharem em estudar, por exemplo, o custo de oportunidade que o país paga por desperdiçar talentos. Tal tipo de esforço acabaria por revelar algo inimaginável pela seita: o que ela diagnostica como problema é, em realidade, parte importante da solução! A equação de soma zero que usam para explicar o Brasil vale para o Japão com recursos e espaços no limite. Lá, não seria possível potencializar economicamente dezenas de milhões de pessoas como precisamos fazer aqui.

Para decifrar adequadamente o Brasil há que se estudar nossa cultura de desenvolvimento, que exibe a assimetria tosca vivida pelo País que produz os melhores jatos de porte médio do mundo, mas que convive ainda com as chamadas “doenças de pobres”: diarreia, dengue, chikungunya, zika, tuberculose, esquistossomose, febre amarela, de Chagas, e outras, muitas delas já extintas em países avançados que compram nossos aviões.

A Prioridade é a Equidade, Estúpidos

O artigo publicado no jornal citado conclui puxando as orelhas dos invocadores de direitos: “Não dá para dar tudo a todos…” – reclama em tom grave. Quem disse que “todos” necessitam de “tudo” nestes trópicos corrompidos? Esta assertiva merece ser marcada como a suma platitude destes tempos bicudos da inteligência nacional. O texto ensina-nos ainda a “elencar prioridades e medir consequências”. No Brasil, a prioridade não deve estar nessa fé cega no mercado, mas na equidade, estúpidos! Ela é quem dá lastro ao desenvolvimento sustentável nos países de ponta, com IDH acima de 0,90, e só é possível obtê-la com igualdade de oportunidades. Não há mágica no campo da cidadania, assim como a seita nos ensina que “não há almoço grátis”!

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