Feminismo negro em Portugal: falta contar-nos

A actual geração de activistas, que já nasceu em Portugal ou cá cresceu, coloca novas questões na agenda do movimento negro feminino em Portugal. Recuamos no tempo… recuamos séculos… falta contar esta história.

Por Cristina Roldão Do Publico

Sabendo que qualquer levantamento visibiliza ao mesmo tempo que invisibiliza é preciso sinalizar que, na última década, mas sobretudo nos últimos cinco anos, assistiu-se à emergência de vários colectivos de feministas negras, como a Queering Style (2015) e o Coletivo Zanele Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras (2016), que colocam na agenda do feminismo negro as questões LGBT; a FEMAFRO — Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes (2016) e a INMUNE — Instituto da Mulher Negra (2018), duas associações que romperam o silêncio mediático sobre a mulher negra, e conquistaram espaço no centro da “cidade”; mas também grupos com maior informalidade, caso das Crespas e Cacheadas (2013), We Love Carapinha (2015), Nêga Filmes (2015), Roda das Pretas (2016) e o Chá das Pretas (2017) e de todo um conjunto de associações lideradas por mulheres negras, como é o caso da Afrolis — Associação Cultural (2014), DJASS — Associação de Afrodescendentes (2016), o GTOLX — Grupo de Teatro do Oprimido de Lisboa (2002), o grupo de teatro Peles Negras Máscaras Negras com a peça “Maria 28” (2016).

Virginia Quaresma (1882-1973), mulher negra e lésbica, primeira jornalista portuguesa e importante activista do movimento feminista português (Foto: Reprodução/Publico) 

Uma das referências mais antigas da nova geração do feminismo negro português é o fanzine Cadernos de Consciência e Resistência Negra, que chegou aos 10 números (2007 e 2011), organizado por Eduina Vaz e Sónia Vaz Borges, mas que contou com o contributo de várias mulheres negras. O feminismo negro é várias vezes objecto de discussão, sobretudo no quinto número intitulado Mulheres Negras Falam (2008) e no texto Do Blues ao Soul Music. Resistência Negra Feminina através da Música que integra o sexto número do fanzine.

Sónia Vaz Borges, autora de Na Po Di Spéra — Percursos nos Bairros da Estrada Militar, de Santa Filomena e da Encosta Nascente (2014), sai do país em 2012, estando actualmente como pós-doc na City University of New York, no Center for Place, Culture and Politics a investigar as lutas de libertação africanas. Não existe muito espaço em Portugal para uma mulher negra trabalhar academicamente e de forma crítica as questões coloniais. Essa terá sido a razão de saída de outra importante artista e académica negra portuguesa: Grada Kilomba. A autora de Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism (2008), formada em Psicologia, chegou a realizar, em Portugal, projectos de terapia através da arte seguindo uma abordagem fanoniana. No entanto, em 2004, acabou por se estabelecer na Alemanha e hoje o seu trabalho é internacionalmente reconhecido no campo do racismo e colonialidade .

Essa geração de activistas e intelectuais negras já nasceu em Portugal, ou cá cresceu boa parte da sua vida, e coloca questões relativas às raízes e resistência culturais, à memória da resistência negra e das mulheres negras, questões que são uma continuidade das levantadas pela geração que as antecedeu. Mas colocam novas questões na agenda do movimento negro feminino: a identidade e o seu lugar no corpo da nação portuguesa; o corpo, a estética e as representações como locus de dominação e resistência da mulher negra; a identidade de género e orientação sexual; a falta de representatividade e bloqueio da mobilidade social; a segregação territorial, o racismo e violência das instituições do Estado.

Muitas das mulheres negras têm dado um contributo significativo em variados campos da sociedade portuguesa, seja no espaço académico (como Inocência Mata, Iolanda Évora, Joacine Katar Moreira e Sheila Khan), jornalístico (Carla Adão e Conceição Queiroz), político (Helena Lopes da Silva, que faleceu recentemente, Celeste Correia, Floresbela Pinto, Francisca Van Dunem ou Romualda Fernandes), desportivo (Naide Gomes, Patrícia Mamona, entre outras), ou na moda (caso de Naara Saturnino da Silva, Romana Mussagy e Rosalyn Silva). No campo das artes, surgem programadoras culturais (como Paula Nascimento), escritoras e poetisas negras (como Bernardete Pinheiro, Djamilia Pereira de Almeida, Gisela Casimiro, Luzia Gomes Ferreira, Raquel Lima, Telma Van Escórcio, Yara Monteiro), realizadoras como Lolo Arziki e Pocas Pascoal, actrizes, como Ana Sofia Martins, Claúdia Semedo, Isabel Zuaa, Patrícia Bull, Zia Soares, e na música (como Blaya, Lura, Nancy Vieira, Romi Anauel, Sara Tavares, Selma Uamusse, mas também no hip-hop, caso de Mynda Guevara e dos projectos Hip Hop de Baton, Djamal e Divine)

Mas recuando no tempo, quem terão sido as nossas Sojourner Truth, Dandara dos Palmares e tantas outras mulheres negras escravizadas e livres que resistiram? Quem eram as mulheres negras que trabalhavam na venda de mexilhão, do tremoço, da fava-rica, mas também como calhandreiras, que chegaram a ser consideradas figuras-típicas de Lisboa — a população escravizada chegou a representar 10% da população da cidade e que chegou a existir um bairro habitado marioritariamente por população negra, conhecido como Mocambo. Quem eram as mulheres negras vendedoras de milho, arroz e chícharos cozidos nas escadas do hospital do Rossio que, em 1707, apresentaram ao rei uma petição onde reclamavam das perseguições e maus tratos por parte das autoridades daquele bairro e que reivindicavam o reconhecimento do seu direito àquele local de trabalho com base no costume, dado que “desde que o mundo era mundo”, elas e as suas ancestrais o faziam ?

Mas quem eram também as mulheres da diáspora africana que integravam (o mais das vezes sem que pudessem ser membros formais) as inúmeras confrarias de homens negros deste país entre a segunda metade do século XV e até ao século XIX?

Essas confrarias eram lideradas por homens negros forros e por homens brancos e tinham por objectivo a protecção dos seus membros (compra de alforrias, suporte financeiro, denúncia de abusos e reinvindicação dos interesses da comunidade negra, etc.), mas também a promoção da espiritualidade, convívio e resistência cultural. Na dimensão mais recreativa e cultural, a abertura às mulheres e à população escravizada era maior, existindo a prática de eleição de “reis e rainhas” (que chegaram a chamar-se, à semelhança do que se fazia nas confrarias do Brasil, reis do Congo), responsáveis pela angariação de fundos e preparação de festividades. Encontramos referência a mulheres negras, como é o caso de uma mulher negra mestiça, sardinheira eleita como rainha numa das confrarias negras de Lisboa sobre a qual existe um registo de 1597, mas sem que se saiba o nome. Em Elvas, em 1657, Isabel de Matos (descrita como “moça baça e solteira”) é admitida como rainha na irmandade negra desse território, e em 1659, uma mulher negra chamada Felónia é eleita rainha da irmandade, juntamente com o respectivo rei e os restantes membros da corte. Em 1863, Sebastiana Júlia, mulher negra com o título de princesa do Reino do Congo, preside uma peça teatral, em Lisboa, organizada pela confraria negra do mosteiro de Santa Joana, evento noticiado no Jornal do Comércio de janeiro desse ano.

Iremos encontrar também na Lisboa do século XIX membros da corte efectiva do Reino do Congo em Angola que migram temporariamente para cá, muitas vezes para estudar. Em 1882, é coroada Maria Amália I, enquanto Rainha do Congo, na Travessa do Outeiro à Lapa (perto do Jardim da Estrela). Acabaria por renunciar ao trono, casado com um lavrador abastado e rumado para Évora. Viveu até aos 82 anos e foi sepultada no cemitério da aldeia de S. Gregório (concelho de Arraiolos).

No final do século XIX, tendo a escravatura sido já abolida, terão coexistido em Lisboa mulheres negras de diferentes origens sociais e históricas. Por um lado, mulheres que foram escravizadas em algum período da sua vida — lembremo-nos que em 1930 morre, com 120 anos, a última destas mulheres em Lisboa — e descendentes dessas mulheres. Este seria um segmento mais pauperizado, na sua maioria nascido em Portugal, provavelmente há várias gerações e com certeza marcado por forte mestiçagem.

Por outro lado, mulheres pertencentes à aristocracia africana ou provenientes de famílias negras e mestiças que constituíam uma elite intermediária colonial (em áreas como a administração, comércio, indústria, exército, clero e profissões liberais), nascidas muitas vezes nos espaços coloniais ou sendo a primeira geração nascida em Portugal.

Durante a 1ª República, que representa uma fase de intensificação da dominação colonial, mas também de maior liberdade de expressão e organização colectiva na metrópole, irão florescer em Lisboa associações e jornais que podemos considerar serem as origens do movimento negro português. O periódico O Negro — Orgão dos Estudantes Africanos é a referência mais antiga (1911), seguido pela Junta da Defesa dos Direitos D’Africa (1912), mas será em organizações posteriores, nomeadamente no Partido Nacional Africano (fundado em 1921), e não, por exemplo, na Liga Africana (1920), que a presença das mulheres negras e organizações lideradas por si — a Liga das Mulheres Africanas e o Grémio “Ké-Aflikana” dos Africanos — terão maior visibilidade.

Georgina Ribas (1882-1951), nascida em Angola, viveu em Portugal desde os 3 anos. Em 1929 esteve envolvida na Liga das Mulheres Africanas (Foto: Reprodução/Publico) 

Uma dessas mulheres será Georgina Ribas (1882-1951), nascida em Angola, mas que viveu em Portugal desde os 3 anos. Diplomou-se pelo Conservatório Nacional de Lisboa, como pianista e foi professora de música num espaço no Rossio. O períodico A Voz D’Africa dá-nos conta que, em 1929, ela estará envolvida na direcção da Liga das Mulheres Africanas, organização sobre a qual pouco mais sabemos do que ter feito parte do Partido Nacional Africano.

Georgina Ribas, enquanto Secretária do Conselho, e Maria Dias d’Alva Teixeira, como Vice-Presidente da Liga das Mulheres Africanas, assim como Maria Nazareth Ascenso, então Secretária da Assistência do Partido Nacional Africano, para além do seu trabalho no partido, formam a liderança do Grémio “Ké-Aflikana” dos Africanos. Outras mulheres negras sobre as quais é possível encontrar referências em jornais da época são Helena Maria de Lima (África, 11/11/1931, pp.1), secretária da direcção do Movimento Nacionalista Africano (fundado em 1931), e Ursula Cardoso, que será uma das redactoras principais do jornal Tribuna de África, dirigido por Mário Domingues (1931-1932).

Fernanda do Vale (1859?-1927), foi uma personalidade da vida cultural e recreativa dos salões da cidade de Lisboa (Foto: Reprodução/Publico) 

O que eram a Liga das Mulheres Africanas e o Grémio “Ké-Aflikana” dos Africanos? Quem eram estas mulheres? Que relações mantinham com outros movimentos políticos na cidade de Lisboa? Ter-se-ão cruzado com Andressa Nascimento Pina aka Fernanda do Vale (1859?-1927), mulher negra que foi uma personalidade da vida cultural e recreativa dos salões da cidade de Lisboa? E como Virginia Quaresma (1882-1973), negra e lésbica, primeira jornalista portuguesa e importante activista do movimento feminista português?

O Estado Novo representa um período de quase total invisibilidade da diáspora negra em Portugal. A última referência que encontramos é em 1931, num número da revista ABC (nº551). Aí surge um artigo com o seguinte título: O triunfo da raça negra — Como vivem os pretos de Lisboa?, em que a população negra na cidade de Lisboa é estimada nos 5 mil. São também referenciadas algumas personalidades negras da cidade de Lisboa (caso do jornalista Mário Domingues e do advogado Honório da Costa), assim como fotografias de mulheres negras “anónimas”, com a descrição da respectiva profissão.

A partir da última fase do Estado Novo voltamos a encontrar informação sobre mulheres negras em Lisboa. Sabemos que na casa de Andreza Espírito Santo, casa de nativistas santomenses, terá funcionado o Centro de Estudos Africanos (1951-1953), à semelhança do que se passara em Paris com o salão das irmãs negras Jeanne e Paullete Nardal um dos berços do movimento Negritude. Esse será um espaço privilegiado de encontro, criação, mas também liderança, de mulheres negras como Alda do Espírito Santo ou Noémia de Sousa, às quais se juntaram intelectuais e futuros líderes dos movimentos de libertação como Amílcar Cabral, Agostinho Neto ou Mário Pinto de Andrade. Ambas e outras poetisas e escritoras negras terão textos seus publicados em antologias de poesia negra e na revista Mensagem da Casa dos Estudantes do Império (1944-1965) em Lisboa .

O Centro de Estudos Africanos (1951-1953) foi espaço privilegiado de encontro, criação, mas também liderança, de mulheres negras como Alda do Espírito Santo ou Noémia de Sousa (Foto: Reprodução/Publico) 

A Lisboa que se havia branqueado no fenótipo a partir do final do século XIX e varrido da sua memória as suas origens negras, sobretudo com o Estado Novo, a partir do pós-independências terá de se reconhecer como um lugar e um berço da população negra. Sobretudo na década de 1990, emergirão inúmeras associações de imigrantes africanos lideradas por mulheres negras. Estarão sobretudo ligadas às questões da habitação, da regularização e direito à cidadania, do acesso a estruturas de apoio à infância e da promoção do desenvolvimento (acesso à educação, saúde, protecção social, etc.) dos territórios onde residem, mas também resistência cultural. Destacamos Luzia Moniz, da PADEMA — Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana, Iolanda Veiga, da Associação de Mulheres Cabo-verdianas na Diáspora, Solange Salvaterra Pinto, da Associação Mén Non-Associação das Mulheres de São Tomé e Príncipe, Olga Santos, da associação Moçambique Sempre; Alcestina Tolentino, da Associação Cabo-verdiana, falecida em 2009, Carla Marie Jean, do Centro Cultural Africano.

As lideranças femininas negras são também uma realidade nos movimentos pelo direito à habitação em Lisboa, como é o caso de Ricardina Cuthbert, da Associação Torre Amiga, Dirce Noronha, da Associação de Desenvolvimento Social do Vale do Chicharos (A.D.S.V.C.) e de Cátia Veiga, uma das vozes mais activas na luta pela habitação no Bairro 6 de Maio.

Neste processo de séculos, falta tecer a genealogia do feminismo negro em Portugal, contar a história das mulheres negras portuguesas enquanto sujeitos políticos e de conhecimento, aquilo que bell hooks faz para a realidade dos EUA

É aos ombros deste movimento de mulheres negras da década de 1990, mas também daquelas que ao longo de séculos contribuíram para a construção deste rectângulo, que se constrói o movimento feminista negro na actualidade. Neste processo de séculos, falta tecer a genealogia do feminismo negro em Portugal e suas articulações com outros movimentos, contar a história das mulheres negras portuguesas enquanto sujeitos políticos e de conhecimento, aquilo que, no fundo, bell hooksfaz, para a realidade dos EUA, em Não serei eu mulher? e que tem sido uma das traves-mestras do feminismo negro um pouco por todo o mundo. Falta contar-nos.

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