Feminismo negro está no centro da luta anticapitalista, diz Nilma Gomes

Ex-ministra dos Direitos Humanos considera que a esquerda só pode avançar se incorporar as lutas contra o racismo e o patriarcado; assista ao video na íntegra

No programa 20MINUTOS ENTREVISTA desta quarta-feira (14/07), o jornalista Breno Altman entrevistou Nilma Lino Gomes, ex-ministra das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos durante o governo Dilma Rousseff, sobre o avanço do movimento negro no Brasil. 

Gomes explicou que o Brasil vive no imaginário da democracia racial, “que é aquela ideia de que o Brasil, por ser tão miscigenado, vivemos harmoniosamente”, negando a existência do racismo. “Parece que o racismo existe e não existe ao mesmo tempo. Ele é negado tão insistentemente que essa forma de negar é a própria prova de sua existência”, disse.

Nesse cenário, ao qual se soma a ascensão da extrema-direita, o feminismo negro “ocupa um lugar central na luta”, pois evidencia as várias dimensões da opressão: social, racial e de gênero, principalmente. 

“As feministas negras nos ajudam a entender os lugares dos sujeitos no contexto das tantas opressões que vivemos no Brasil”, afirmou ressaltando a importância de uma luta interseccional. A formulação da luta interseccional surgiu do movimento feminista negro, entendendo que as dimensões de exploração não ocorrem apenas paralelamente, “estão e sempre estiveram diretamente imbricadas”. Isto é, as relações de raça e gênero, por exemplo, são tão estruturantes quanto as relações de classe.

“Eu sou educadora, então acredito que o papel do feminismo negro e do movimento negro em geral é o papel educativo, de educar e reeducar a sociedade brasileira e o campo socialista brasileiro em relação à perversidade, a exploração e as implicações tremendas que o racismo incide sobre negros e negras, sobre as implicações do patriarcado nas mulheres e pessoas fora do campo hétero e cisgênero”, reforçou.

Para a professora da Universidade Federal de Minas Gerais, esse papel é o que tem gerado avanços na luta anticapitalista, pois “aponta lacunas, preconceitos e cenários de poder sendo usurpado de negros e mulheres”. E, quando faz isso, o próprio feminismo negro se reinventa e se reeduca, construindo novas estratégias de ação.

“Espero que a partir dessa perspectiva a gente possa reestruturar nossas estratégias de luta no campo da esquerda. Se a gente voltar para o governo, espero que a gente possa pensar no Brasil como ele é, não no Brasil do mito da democracia racial. Assim poderemos propor uma democracia que eu chamo de radical: anticapitalista, antirracista, antipatriarcal, antifascista e antilgbtófbica”, defendeu.

A esquerda é antirracista?

Gomes refletiu sobre a presença de pautas feministas e antirracistas nos movimentos de esquerda: “O campo socialista não reconhecia o lugar da mulher na luta e o feminismo não reconhecia as especificidades de ser uma mulher negra na luta feminista”.

Apesar de reconhecer que existiram avanços importantes, a professora afirma que a esquerda “ainda padece do epistemicídio”.

O epistemicídio seria a morte do conhecimento, mas, como teorizou a filósofa e pensadora Suelí Carneiro, ele é mais do que isso, é a morte dos sujeitos e sujeitas que produzem esse conhecimento. No caso, pessoas negras.

“Nesse contexto podemos articular essa ideia com a da necropolítica, que é o deixar morrer. O Estado decide quem vai ser eliminado, não só fisicamente, mas por outras violências, como a falta de acesso à educação, por exemplo, o branqueamento dos materiais didáticos, o silenciamento da questão racial nas escolas, entre outros”, discorreu Gomes.

Para ela, a esquerda também realiza esse epistemicídio ao apagar o conhecimento de pensadores negros, ter como referência apenas teóricos brancos, europeus, por exemplo, “ou quando pensamos no lugar do negro e da mulher na sociedade, cujas lutas surgiram da visão desses sujeitos sobre si que então tiveram que educar o resto”.

Gomes, porém, ressaltou que é preciso celebrar os avanços que foram feitos, como a criação do Ministério de Igualdade Racial durante o governo da ex-presidente Dilma, por pressão do movimento negro, “porque foi a primeira vez que se admitiu que existia um racismo estrutural e que, mais do que conscientização, eram necessárias políticas públicas para combatê-lo”.

Outras medidas importantes citadas pela professora foram a obrigatoriedade do ensino de cultura e história africana e afrobrasileira nas escolas de educação básica e a criação do Estatuto da Igualdade Racial.

“Estamos em luta contra o epistemicídio sempre, mas pudemos avançar, apesar das tentativas de destruição do atual governo. Mas acredito na força da luta e que superaremos esse momento”, agregou.

Interseccionalidade ‘do mal’

Por outro lado, Gomes lamentou que existam setores que considerem negativo do ponto de vista estratégico incluir a luta antirracista e feminista nas pautas de esquerda. Segundo esses setores, esses temas geram conflito com o fundamentalismo religioso, representando um risco eleitoral para a esquerda que precisa atrair os votos das camadas mais religiosas da sociedade.

“Se você está na luta antirracista, anticapitalista e antipatriarcal, você está nela por inteiro. Não tem como fingir que não. É um ledo engano pensar que, em termos eleitorais, retirar da pauta todas essas questões que são caras à vida da população que sofre com elas, compensa”, destacou.

A professora relembrou que questões como o aborto batem no moralismo e na formação cristã que a sociedade brasileira possui tanto na direita quanto na esquerda.

“Só que a esquerda quer governar para as pessoas reais e se não enfrentarmos de cara essas questões, não vamos governar para o povo. Ficamos reféns das forças da interseccionalidade do mal, o neoliberalismo e o fascismo”, enfatizou.

Para ela, também não adianta dizer que essas pautas não serão incluídas num primeiro momento para favorecer uma campanha eleitoral, mas que serão incorporadas depois de vencer o pleito, por exemplo, “porque isso não vai acontecer”.

“É preciso sentar e ouvir os movimentos, construir estratégias eleitorais em conjunto com as lideranças. Acho que vai ser uma grande decepção se a esquerda, que criou o espaço de discussão para essas questões, passar a negá-las. Estaremos nos alinhando ao fundamentalismo religioso racista que queremos enfrentar”, concluiu.

+ sobre o tema

Mulheres negras trabalham mais que os homens em funções não remuneradas em AL, diz IBGE

Um estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e...

Angela Davis fala sobre libertação negra, sua história e sua visão contemporânea

Cinquenta anos depois da fundação do Partido Pantera Negra...

para lembrar

Yzalú, a feminista negra da música periférica – Por: Jarid Arraes

Quando um vídeo da artista de música periférica Yzalú...

Mais Feminismo Negro

A identidade que construímos ou que, erroneamente, nos é...

Protagonismo de mulheres afro-brasileiras feministas é pauta dentro das universidades

Empoderamento, empreendedorismo social, produção cultural e economia criativa. São...

“Feminismo negro não exclui, amplia”: Djamila Ribeiro debate ativismos a convite da França

Em entrevista exclusiva à RFI, em Paris, Djamila Ribeiro recupera momentos...
spot_imgspot_img

Geledés participa do Fórum do Feminismo Negro

O Fórum Global de Feminismos Negros 2024 está ocorrendo entre os dias 04 a 07 de fevereiro, em Bridgetown, Barbados. Sob o tema “Para...

Documentário Projeto Rappers: o encontro do hip hop com o feminismo negro

Na noite daquela sexta-feira, 11/08, um público majoritariamente negro se reunia no Centro Cultural Olido, no centro de São Paulo (SP), para prestigiar o...

Os feminismos favelados inscritos nos corpos das mulheres da Maré

Andreza Jorge cresceu em Nova Holanda, dentro do maior e mais populoso conjunto de favelas do Rio de Janeiro: o Complexo da Maré. De...
-+=