Carla Akotirene, autora de Interseccionalidade, pela Coleção Feminismos Plurais, escreve um artigo especial sobre os 30 anos do conceito
Por CARLA AKOTIRENE, da Carta Capital
Há 30 anos a pensadora negra estadunidense Kimberlé Crenshaw não previu o quão longe o seu termo interseccionalidade viajaria nas ciências humanas e pautas identitárias. Ao sistematizar o “conhecimento situado de mulheres negras” como instrumento normativo, propôs a interseccionalidade como uma sensibilidade hermenêutica no campo da teoria crítica feminista de raça, sobre em quais condições jurídicas, estruturais e subjetivas, mulheres negras poderiam ser representadas por si mesmas e compreendidas nos tribunais.
Contudo, a interseccionalidade vem atravessando o século XXI disputada no léxico, em escala global por movimentos identitários, grupos acadêmicos, programas de governos, à revelia da capacidade heurística contestar perdas das garantias fundamentais do grupo particular.
Usos inadequados liberais revelam justamente o que querem esconder: a vontade colonialista moderna de obstruir as mulheres negras no seu Lugar de Fala.
Afinal, é através da interseccionalidade que os Estados-nações assumiriam o compromisso signatário de criar leis e políticas públicas em atenção à Conferência Mundial de Durban, África do Sul, em 2001, para combaterem o racismo, à discriminação racial, às violências correlatas, à intolerância e xenofobia.
Ajustando logo o compromisso decolonial feminista negro ante os epistemícidios projetados do Ocidente frente ao Outro, a meu ver, quaisquer políticas de identidade, necessita, metodologicamente, situar a matriz de poder colonial moderna, manifesta naquela ocupação ilegal, depredação, repartimento do continente africano, tráfico de pessoas, expropriação de riquezas, ódio religioso, violências militar, doméstica e sexual, exploração infantil e nacionalismos, de modo que identidades, são antes, permanências do colonialismo ao qual elas não conseguiriam ser idênticas.
Pautas dos direitos humanos, ou consequente debate a respeito das diferenças que sejam, necessitam compreender que África e seus descendentes na diáspora conhecem mais sobre desumanização de aparências, preconceitos e discriminações, porque vivem o racismo estruturalmente e têm pavimentação discursiva a este respeito.
Má fé pós-moderna, até poderia afirmar, entendendo os deslocamentos epistêmicos da política de tradução, certamente no bojo geopolítico dos conceitos do Norte, vêm subjacentes o repertório afrocêntrico da interseccionalidade, dos anos 2001 para cá. Coincidentemente, período em que os Estados Unidos começaram a guerra contra o terrorismo – após o atentado às Torres Gêmeas – daí a potência sul global terminológica caiu no esvaziamento discursivo financiado pelas agendas ocidentais.
Na conjuntura atual, lutas identitárias emergentes partidas já hegemônicas da Europa e Estados Unidos se articulam anti gordofobia, antibulliny, LGBTIQ brancas, feminismos interseccionais, humanismos ecológicos, absolutamente contra quase todas as subordinações, explorações e iniquidades a que conhecemos, menos contra o racismo patriarcal.
Contrária ao exposto, a jurista empregou a interseccionalidade dispondo-se elucidar a marginalização da categoria raça nas causas de discriminações de gênero e a marginalização de gênero nas discriminações raciais. Em tese, as mulheres negras eram submetidas às perdas dos seus direitos legais, inclusive, nas doutrinas antidiscriminação, pois os movimentos antirracistas e feministas inobservavam a raça aplicável apenas aos homens negros, bem como a categoria gênero às mulheres brancas.
Se o direito informa classe e a justiça é informada por raça teríamos insumos jurídicos falhos por contradição dos próprios movimentos antirracista e feminista, que lutavam um de costas para outro, endossavam os tribunais às recusas das queixas apresentadas por mulheres negras, aonde a discriminação racial sofrida por elas, para ser entendida juridicamente implicaria numa experiência de gênero a que somente brancas poderiam falar.
Tal experiência interseccional da identidade exigia das mulheres negras a decisão de hierarquizar, em separado, as duas causas de racismo e sexismo, invés de articulá-las juntas. O emblemático caso da General Motors responde o porquê de até década de 60 a multinacional alegava improcedência do racismo visto como os homens negros estavam empregados na linha de montagem. A denúncia de sexismo caia no descrédito quando a acusada provava a oferta e preenchimento de vagas por mulheres brancas nos serviços administrativos.
Sofisticada, a jurista demonstra como a categoria trabalho guarda consigo o privilégio epistêmico fora dos mesmos efeitos do racismo e sexismo.
Doravante, a inelegibilidade das mulheres negras às vagas de emprego compunha os argumentos da escolaridade baixa, função específica, perfil corpóreo e salários ofertados, apreciados de modo relevante nas lógicas de reestruturação produtiva, ao contrário do racismo e do sexismo que seguiam institucionalizados para obstaculização do grupo ao mercado de trabalho e posteriores sistemáticas dos tribunais, ausentes da abordagem interseccional, induzindo o direito advogar em prejuízo das vítimas.
Além da proponente, Kimberlé Crenshaw, prefiro as metáforas de acidentes para a aplicação prática da interseccionalidade. Opto “amefricanizar” a retórica análoga à Lélia Gonzalez, usando a encruzilhada como o lugar multideterminado dos trânsitos de raça, classe, gênero, sexualidade, fluxos e sobreposições de acidentes identitários. As mulheres negras são frequentemente vitimadas por estarem mais vezes posicionadas nas avenidas da diferença, interdependência e interação estruturais.
Inevitavelmente, o socorro político da cosmo-visão ocidental agrava o estado social duma vítima enxergada diferente da mulher universal e os seus sentidos de humanidade sequer serem auferidos. A mulher negra na avenida do acidente não pode contar com a assistência feminista, pois que a raça retira as condições do socorro, as ferramentas trazidas são brancocêntricas.
Por sua vez, o socorro do movimento antirracista vem à procura da raça, ao se deparar com gênero desconsidera a multidimensionalidade do acidente e da vítima mulher. De tal modo, mulher negra gendrificada, é quem produz, sozinha, as condições ancestrais de se levantar contra os impactos coloniais, políticos e jurídicos.
Exu, voz ancestral da cultura yorubá, movimenta as avenidas e alimenta-se na encruzilhada, razão dele próprio preferir a oferenda analítica interseccionalidade, essa demonstração cruzada preparada durante as dinâmicas das mulheres negras e na ética de cuidado com os Outros acidentados, também, no trânsito das avenidas e seus respectivos eixos de subordinação sexual, de classe, território e etc.
Publicado em 1989, o artigo Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics, discutiu a marginalização submetida às mulheres negras em sua experiência interseccional, comprovadamente maior que a soma do racismo e sexismo, ou seja, da mera análise de classe trabalhadora. O ressarcimento da intelectualidade ancestral aparece de Kimberlé Crenshaw a Sojourner Truth, pensadora não alfabetizada, pioneira do feminismo negro, cuja leitura interseccional, em 1851, na Convenção dos Direitos da Mulher, Ohio, discursou: “Eu não sou uma mulher?”
Se os patriarcas racistas impediram o povo negro de ler, jamais conseguiram manipular a voz improvisada da feminista abolicionista Sojourner Truth. Ela antecipou até a filósofa francesa Simone de Beauvoir, em 1949, no livro Segundo Sexo, a propósito da mulher torna-se culturalmente o “outro.” A pensadora interseccional indagou ao público o seu sexo, descredenciando o determinismo e presunções biológicas quanto marcadores fixos da identidade universal das mulheres, heterossexuais, produzidas e interpretadas pela visão branco patriarcal.
A identidade religiosa da oradora desmitificou a onipotência do Deus masculino, segundo o qual, ela disse que à luz coube à mulher. Dezesseis anos antes de Marx teorizar a categoria trabalho, imersa na exploração e devir socialista, brilhantemente, Sojourner Truth tinha sugerido o parto da mulher negra, trabalho produtivo e reprodutivo, somado àqueles pesados, feitos apenas por homens negros e mais a escravização, como significantes do capitalismo, que diga-se de passagem expõe o lucro mediante racismo e sexismo. Afinal, crianças negras foram produzidas, vendidas, retiradas da propriedade da mãe preta e da maternagem obrigatória.
Ao declarar nunca ter sido ‘ajudada a pular poças de lama ou subir nas carruagens’, Sojourner Truth indicou a categoria gênero, antes do movimento feminista escolhê-la como descritiva e analiticamente central, na segunda onda feminista, explicativa das relações de poder entre homens e mulheres isolada da raça, respondendo a opressão patriarcal experienciada pelas mulheres brancas da classe média.
É Sojourner Truth quem sugere articulação de agendas mistas, dizendo-se lutar pelo sufrágio e abolicionismo, clamando norte e sul estadunidenses nos efeitos de libertação política das mulheres e dos negros, marco revolucionário! Lógico, perspectivas anteriores ao termo interseccionalidade nos fazem citar Frances Beal, em 1969; Lélia Gonzalez, em 1983; Glória Anzáldua, em 1984; Angela Davis, em 1981; bell hooks, em 1981; Audre Lorde, em 1984. E o Coletivo Combahee River, em 1974, na lesbianidade das feministas de cor declararem: comprometidas a lutar contra a opressão racial, sexual, heterossexual e classista, e que nossa tarefa específica é o desenvolvimento de uma análise e prática integradas baseadas no fato de que os sistemas maiores de opressão se interligam.