Nasci em um quintal grande, que até hoje é de terra. Lembro-me de ficar sentada na janela da sala observando a chuva. Nasci em uma periferia rural no extremo sul da cidade de São Paulo. A água da chuva escoando, galinhas e patos brincando na chuva. Chover lá em casa era sinônimo de alimento e abundância
Várias culturas prezam a água e as plantas como fundamentais para sua existência. Não só como uma possibilidade vital para sua sobrevivência e continuidade comunitária, mas também para serem usadas em rituais, tradições e medicinas, cuja importância é continuamente reinterpretada para que as gerações futuras não esqueçam não só do futuro do grupo em questão, mas de todos os seres humanos.
O ano de 2023 foi fundamental para reconhecer que os impactos das alterações climáticas afetam desproporcionalmente a população e que as soluções climáticas não podem reforçar ainda mais as desigualdades sociais que se estruturam e se manifestam a partir de raça e gênero.
A crise climática não é a mesma para todos, e a população afrodescendente, em especial mulheres e crianças, enfrenta os piores efeitos, apesar de ter feito o mínimo para causá-la.
As práticas discriminatórias baseadas em raça e gênero, as normas socioculturais, os mitos, as leis e a discricionariedade nos investimentos públicos criam condições desproporcionais para o enfrentamento das mudanças climáticas, fazendo com que seus impactos pesem mais sobre mulheres e crianças em toda a sua diversidade. Isso ocorre uma vez que não somente são excluídas dos recursos necessários para a adaptação, mas também são privadas do acesso a oportunidades, bens e serviços, dado o racismo sistêmico, independentemente de sua posição na pirâmide social. Assim, se tornam mais vulneráveis a perdas e danos.
Também é preciso considerar as diferentes responsabilidades na origem dessa crise. Como demonstra o relatório “Confronting Carbon Inequality”, da Oxfam, os mais ricos são responsáveis pela maior parte das emissões cumulativas entre 1990 e 2015. A maior parte dessas pessoas vive em países centrais, de economias industrializadas.
Além disso, os padrões de emissão variam entre os estereótipos de gênero, raça e relações de poder. Via de regra, as empresas mais ricas e que mais emissões produzem são gerenciadas por homens brancos de economias industrializadas, que são os que mais se beneficiam das atividades que originam essa crise.
A falta de inclusão das mulheres na elaboração de políticas climáticas significa que seus direitos, necessidades e vozes são deixados de fora. Suas experiências locais e tecnologias sociais de sobrevivência não são consideradas na construção de políticas, incluindo as experiências de quintais que produzem conforto térmico e alimento para a comunidade.
Experiências de adaptação comunitária são desenvolvidas por lideranças como Joice Paixão, do Gris Solidário, que desempenha uma série de papéis em diferentes articulações e coletivos de luta urbana em Recife
Com as fortes chuvas iniciadas no dia 24 de maio de 2022, Pernambuco viveu uma de suas maiores tragédias, vitimando de forma fatal 127 pessoas e desabrigando mais de 9.302, com 31 cidades decretando estado de emergência devido aos alagamentos e deslizamentos de terra em áreas de barreiras. No Bairro da Várzea, foi decretado estado de calamidade pública, além de casos de afogamentos.
Nesse cenário catastrófico, a Associação Gris Espaço Solidário atuou intensamente — e, nos momentos mais agudos, de forma ininterrupta — no atendimento às comunidades. Com a previsão de mais chuvas, Joice liderou a produção do Plano de Ação Comunitária para Mitigação dos Efeitos das Chuvas, elaborado por Gris Solidário, TIG Periferia, da Universidade Federal de Pernambuco, e AdaptaJUV.
O projeto mapeou as áreas mais atingidas pelas chuvas, o perfil das famílias e casas locais, e elencou etapas que a população moradora das comunidades do bairro da Várzea pode seguir para se proteger de outro evento climático extremo.
O plano também indica os níveis de alagamento de acordo com a intensidade das chuvas. O grupo desenvolveu treinamento e controle de brigadas de trabalho para gestão de crise e comunicação local, uma brigada de saúde mental e outra de saúde preventiva. Foi desenvolvido um banco de dados com o objetivo de garantir que, em caso de enchente ou grandes alagamentos, as informações das pessoas estejam seguras, facilitando a retomada da dinâmica cidadã e o acesso a projetos e programas do Governo. Foi criada também uma cozinha solidária para distribuir alimentos à população local.
É comum que projetos essenciais como esse sejam invisibilizados na construção de políticas públicas e não sejam apoiados pela filantropia. O fortalecimento de tecnologias e ações, como a liderada por Joice em Recife, só é possível com apoios institucionais e o fortalecimento local dos coletivos e organizações que lideram as articulações territoriais.
É fundamental que a filantropia de justiça socioambiental e comunitária se desburocratize e chegue com recursos. O financiamento deve ser direcionado tanto para as soluções locais quanto para que a comunidade esteja preparada e consiga participar ativamente da construção, acompanhamento e execução de políticas públicas em seus territórios.
Os defensores da terra, das florestas e dos direitos humanos têm lutado há muito tempo contra atividades extrativistas e projetos associados à noção de desenvolvimento que, na prática, intensificam a crise climática, pressionam aqueles que vivem nos territórios mais vulneráveis, desmatam florestas e outros biomas, poluem o ar, contaminam cursos d’água, quebram relações comunitárias e geram deslocamentos forçados. Essas atividades são responsáveis pelas violações sistemáticas dos direitos das mulheres afrodescendentes, quilombolas, rurais e indígenas.
Filantropia comunitária
A filantropia tradicional refere-se às organizações e fundações que fazem doações de cima para baixo, buscando atender sua estratégia interna de doação e não a partir das experiências dos territórios. Isso é problemático, pois muitas vezes as experiências de base não desejam ou não possuem capacidade suficiente. Fazer as doações chegarem diretamente a esses projetos e iniciativas é fundamental para o fortalecimento e capitalização das iniciativas.
Menos de 1% do financiamento chega de fato a esses grupos para garantir direitos de posse e administrar florestas em países tropicais, segundo um relatório da Rainforest Foundation Norway. Dos fundos alocados nos últimos 10 anos para apoiar esses direitos, apenas 17% incluíram ao menos uma organização local, representando 0,13% de todo o financiamento climático.
No Brasil, segundo dados da última edição do Censo GIFE, as organizações do investimento social privado (ISP) têm perfil majoritariamente executor de projetos e menos doador para outras organizações da sociedade civil. De acordo com o Censo, o montante de recursos financeiros para áreas de preservação ambiental no período 2022-2023 foi de 13% do investimento realizado. Um percentual menor foi destinado a comunidades remanescentes de quilombos (10%), terras indígenas (7%) e assentamentos (3%)
Assim, a filantropia comunitária e de justiça socioambiental se destaca como um papel crucial para fornecer apoio financeiro que fortaleça aqueles que são mais afetados e estão na linha de frente no enfrentamento às mudanças climáticas. O financiamento comunitário pode ser definido como uma abordagem na qual recursos financeiros são destinados diretamente a iniciativas lideradas por lideranças, associações e organizações locais. Isso permite que essas comunidades tenham maior autonomia para implementar as soluções mais adequadas às suas necessidades e contextos específicos.
Desafios e Oportunidades
No entanto, o financiamento comunitário enfrenta desafios consideráveis. A burocracia excessiva e a falta de acesso a sistemas financeiros ainda são barreiras significativas para muitas comunidades, especialmente em regiões mais isoladas. Além disso, há uma carência de capacitação e recursos para que essas comunidades possam acessar, gerenciar e aplicar os fundos de forma eficaz.
Uma outra experiência, agora do lado da filantropia comunitária, é a iniciativa da Comuá pelo Clima, que busca fortalecer o posicionamento político, a atuação coletiva e articulada das organizações que integram a Rede Comuá para a construção de estratégias, narrativas e a produção de conhecimento no campo da filantropia climática, impulsionando essas agendas
A iniciativa tem como finalidade uma filantropia independente e comunitária, que há décadas possui uma trajetória consolidada em apoiar, com recursos financeiros, iniciativas da sociedade civil com foco em comunidades de base e tradicionais, além de especialidade na gestão de recursos e no monitoramento e avaliação de projetos. Essas experiências facilitam, trabalham na base da confiança e fortalecem comunidades.
O mês da Filantropia que Transforma reforça essa linha da filantropia comunitária e de justiça climática, desempenhando um papel fundamental na democratização e descolonização dos recursos para que fortaleçam lideranças e comunidades que constroem, produzem e executam políticas de sobrevivência, que devem ser replicadas e tornadas políticas públicas.
É fundamental que a filantropia e as políticas públicas reconheçam o papel vital das comunidades na adaptação e mitigação às mudanças climáticas e que mais recursos sejam direcionados diretamente aos territórios. O futuro também depende da capacidade e da autonomia das pessoas para liderarem suas próprias soluções. O financiamento comunitário é um dos caminhos para isso.
Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).