A filosofia e a ciência também legitimam a desigualdade de gênero

A teoria afirma que entre todos os elementos que constituem o sistema de gênero existem discursos de legitimação sexual ou ideologia sexual.

Por Laura Rodrigues Benda, Justificando 

 

Foto: Marie Curie, por Susan Marie Frontczak

Esses discursos legitimam a ordem estabelecida, justificam a hierarquização dos homens e do masculino e das mulheres e do feminino em cada sociedade determinada. São sistemas de crenças que especificam o que é característico de um e outro sexo e, a partir daí, determinam os direitos, os espaços, as atividades e as condutas próprias de cada sexo[1].

Há diversos tipos de discurso de legitimação da desigualdade de gênero. A mitologia é talvez o mais antigo. Por exemplo, na Grécia, os mitos contavam que, devido à curiosidade própria de seu sexo, Pandora tinha aberto a caixa de todos os males do mundo e, em conseqüência, as mulheres eram responsáveis por haver desencadeado todo tipo de desgraça.

A religião é outro discurso de legitimação dos mais importantes. As grandes religiões têm justificado ao longo dos tempos os âmbitos e condutas próprios de cada sexo.

Na tradição judaico-cristã, o relato da expulsão do Paraíso tem essa função. Eva é a Pandora judaico-cristã porque, por sua culpa, fomos desterrados do Paraíso. Assim, a exaltação da humildade e obediência da Virgem Maria em um momento de auge das sufragistas parece ter tido como objetivo limitar a força desse movimento reivindicativo.

A própria filosofia tem servido, em muitos casos, ao longo de sua história, para justificar a desigualdade entre os sexos. Porém, ainda que a Filosofia tenha um caráter ideológico (ideológico no sentido de encobrir relações de poder ilegítimas), pode também possuir um potencial emancipatório que reside em sua força crítica.

Não se trata de buscar pérolas da misoginia para um museu de curiosidades do passado, mas de entender nosso presente, de compreender por que chegamos onde estamos, que mecanismos teórico-práticos permitem que estejamos organizados socialmente da maneira como estamos e que tipo de discursos e de argumentações têm sido produzidos sobre isso dentro da filosofia.

As relações de poder concretas, a distribuição dos papéis e do status em nossa sociedade têm uma face simbólica, um discurso que o justifica e que o retro alimenta. O discurso filosófico forma parte substancial da rede de relações de poder.

Graças à influência do feminismo, nos anos 70 do século XX, houve um olhar crítico em relação ao discurso filosófico.

Começou com uma forma específica muito rudimentar: a recopilação de pérolas da misoginia. Tratava-se de uma tarefa realizada geralmente por mulheres que se dedicaram a examinar os textos do corpus filosófico e a mostrar que os filósofos que tanto admirávamos – Kant, Hegel etc. – tinham afirmado coisas incrivelmente pejorativas sobre as mulheres.

Um dos pensadores que se debruça sobre essa questão, procurando explicar a origem da desigualdade entre homens e mulheres, no âmbito da ciência, é o psicanalista Jurandir Freire Costa.

Segundo ele, as noções de que existem sexo e sexualidade são razoavelmente recentes, inclusive no Ocidente, não se tendo notícia de que delas se falassem na Grécia antiga, por exemplo, em que tudo era dotado de Eros. Ao se reconhecer a sexualidade, entretanto, aconteceu um processo muito curioso: passou a ser considerada natural a ideia de que a sexualidade é bipolarmente e originalmente dividida fazendo com que, a partir dessa própria divisão, ela divida todos os humanos nos gêneros homem e mulher.

Até o século XVII a medicina científica, da qual somos herdeiros, acreditava que havia apenas um sexo, o do macho, o qual simbolizava a perfeição da espécie humana.

Segundo a filosofia neo-aristotélica, que comandava a prática médica, isso se devia ao fato de o homem possuir mais “calor vital”. Este não se desenvolve da mesma forma na mulher que é, portanto, mais fria. A diferença não seria casual, mas sim uma necessidade da natureza, para possibilitar que o corpo da mulher abrigasse o embrião sem dissolvê-lo, ou cozinhá-lo. Caso fosse detectado que eventuais mulheres tivessem um calor vital maior, essas eram tidas como “vaporosas”.

Os “ataques de vapores” eram extremamente comuns no século XVIII, principalmente entre mulheres aristocratas. Segundo as explicações da época, o aumento dos vapores fermentava os humores uterinos e, passando pelas fibras nervosas, chegava à cabeça. Ainda na metade do século XIX encontra-se, na literatura médica, a discussão sobre a existência ou não de mulheres vaporosas; ou sobre se as mulheres vaporosas eram, de fato, histéricas.

O neo-platonismo, que dominou o pensamento ocidental até praticamente o século XVII, fazia ver a sexualidade – quando a palavra era pronunciada – como sendo única. A isto os estudiosos denominam one sex model. Esse modelo do sexo único prevaleceu até quase a metade do século XIX.

A ideia de que havia uma só forma de corpo, a masculina, impedia a prática ou mesmo a teoria sobre dados anatômicos.

Por exemplo, o primeiro esqueleto feminino só foi desenhado nos tratados de anatomia em 1793. Antes, não se sentia a necessidade de fazê-lo, por não se acreditar haver algo próprio à mulher no esqueleto humano. As diferenças evidentes eram vistas como tecido adiposo adicional, o que eliminava a necessidade de descrever o esqueleto da mulher à parte.

O interesse pela divisão dos gêneros, tendo como fundamento a divisão dos sexos, começa não por uma revolução científica, mas por uma revolução política, cultural e social. Esta revolução tem origem no pensamento de Jean-Jacques Rousseau, o primeiro escritor romântico do Ocidente, notadamente iluminista.

Rousseau criou o mito de que, para que a sociedade pudesse se organizar, uma unidade mínima entre homem e mulher seria necessária, pois são estes os seres capazes de produzir a população, formando o contingente material dos países ou das nações. A unidade mínima, gerada por uma atração extremamente forte, seria em seguida domesticada pelo amor entre homem e mulher, entre pais e filhos. O amor da família assemelhar-se-ia, assim, ao amor à nação.

Mais tarde, quando da Revolução Francesa, ficou claro que os proclamados ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”, restringiam-se aos chamados homens bons. Mulheres, pobres, negros e mestiços, evidentemente, não estavam neste rol, o que gerou uma contradição política enorme entre a teoria jus-naturalista e a prática. Assim, necessário se fez encontrar um argumento capaz de relativizar a igualdade, mas que, ao mesmo tempo, não fosse contraditório com a prática política ou com os ideais da revolução.

Eis a razão de o argumento das três grandes desigualdades ser justificado tendo em vista a própria natureza: entre homem e mulher, entre elite e povo e, finalmente, entre povos colonizadores e povos colonizados.

No caso da justificativa relativa à desigualdade entre as mulheres e homens, isso se fez com o auxílio de áreas do conhecimento até então inexploradas.

Por exemplo, não é de se espantar o interesse que o estudo da constituição óssea passou a despertar no século XIX. Isso porque, do ponto de vista da ossatura, a mulher é distinta do homem, tendo o crânio menor e a pélvis maior. Este fato levou a concluir que a mulher é menos inteligente, assim como as crianças e os negros, que também tinham o crânio menor do que o do homem branco[2].

As estudiosas da Ilustração destacam, em relação a esse período, o mesmo aspecto analisado por Jurandir Freire Costa. Ou seja, de que a legitimação da desigualdade de gênero constitui, no mínimo, uma limitação a um pensamento que se pretende universal, válido para todos, no interior do qual haveria certa coerência.

Há uma contradição entre os grandes princípios proclamados e sua não aplicação às mulheres, tanto nas concepções de liberais como Kant como de republicanos, como Rousseau.

Talvez a coerência resida no fato de que, na realidade, o objetivo não proclamado do pensamento ilustrado é embasar o modelo liberal de sociedade burguesa, o qual se coaduna perfeitamente com o fato de as mulheres permanecerem em casa, garantindo a infra-estrutura do homem produtor, este sim parte do mundo do trabalho assalariado e da política.

No âmbito do público, o homem é considerado superior, mas, secretamente, apoia-se num mundo doméstico abarrotado de mulheres.

Podemos afirmar, então, que a filosofia da modernidade, a partir do século XVIII, inaugurou a grande divisão entre o mundo do público e o mundo do doméstico, divisão de esferas na qual ainda vivemos. Essa diferenciação já preexistia sob outras formas, mas o desenvolvimento técnico-econômico da modernidade a transforma, fazendo com que a filosofia se ocupe de ordená-la e teorizá-la.

Se na Antiguidade ou na Idade Média o modelo de legitimação da divisão de papéis era o discurso religioso, com a modernidade, o discurso se faz laico. Essa historiografia simples mostra como a justificação da divisão social de gênero sempre se faz na linguagem e com as categorias conceituais de cada época. Na modernidade, com uma sociedade que se seculariza, vai se apelar às ciências e à Filosofia das Luzes.

Ou seja, a mudança para a modernidade apenas consagrou a justificativa das diferenças existentes no âmbito do gênero, sendo que esta pode ser explicada de acordo com uma dúplice perspectiva: a dos papéis e a do status. Por papéis entende-se a divisão sexual do trabalho com a correlata diferenciação de dois âmbitos (o mundo do público, da razão, da igualdade – pelo menos perante a lei – e o mundo do doméstico, que é o mundo das necessidades corporais, de se alimentar, descansar, sexuais e afetivas, satisfeitas pelas tarefas femininas do cuidado).

O status diz respeito à hierarquia entre os dois gêneros (ou sexos), hierarquia que marca a desigual valoração dos papéis do mundo público e doméstico e a dificuldade de reconhecimento social que ainda têm de enfrentar as mulheres em diferentes esferas da vida (atividade profissional, criação intelectual e artística etc.).

O discurso padrão (e mentiroso), torna-se, então, o seguinte: não apenas há diferenças “imutáveis” no papel social a ser exercido por homens e mulheres como cada um desses papéis tem uma importância diferenciada que lhes é atribuída, seja pelo senso comum, seja pela própria filosofia.

Laura Rodrigues Benda foi Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho do TRT da 2ª Região. É diretora de assuntos legislativos e institucionais da AMATRA 2 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região – biênio 2016/2018) e Presidenta da AJD (Associação Juízes para a Democracia).


Participa da coluna semanal Sororidade em Pauta, em conjunto com as magistradas Ana Carolina Bartolamei, Ana Cristina Borba Alves, Cláudia Maria Dadico, Célia Regina Ody Bernardes, Fernanda Menna Pinto Peres, Fernanda Orsomarzo, Gabriela Lenz de Lacerda, Daniela Valle da Rocha Müller, Elinay Melo, Janine Soares de Matos Ferraz, Juliana Castello Branco, Lúcia Rodrigues de Matos, Lygia Godoy, Naiara Brancher, Nubia Guedes, Patrícia Maeda, Renata Nóbrega, Roselene Aparecida Taveira, Simone Nacif e Uda Schwartz.


[1] A. H. Pulso, Filosofia e gênero: da memória do passado ao projeto de futuro, 2004.

[2] J.F. Costa, A medicina como projeto social: controle do corpo in Cadernos CEPIA – N° 04 – Saber Médico, corpo e sociedade, Rio de Janeiro, 1998.

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