Focalização X universalização, por Sueli Carneiro

Em diferentes estudos o Ipea se vem demonstrando que o problema da pobreza no Brasil não resulta de falta de recursos, mas de um alto grau de desigualdade. A segunda constatação é que as políticas universalistas implementadas não têm sido capazes de reduzir essas desigualdades. A terceira é que o combate à desigualdade tem impacto superior sobre a redução da pobreza do que via crescimento econômico. É mais rápido, mais barato e mais justo socialmente.

Por Sueli Carneiro

Se o conceito de focalização é neoliberal e foi, segundo alguns especialistas, inventado pelo Consenso de Washingthon, a produção e reprodução de desigualdades, a transferência dos benefícios das políticas sociais dos mais pobres para os mais ricos têm se constituído um know-how brasileiro, que vimos aperfeiçoando há mais de um século, desde o pós-abolição, cujo resultado, sob o signo das políticas universalistas, é a extraordinária concentração de renda do país que o tal consenso vem apenas agravando.

Portanto, a focalização apresenta-se no nosso contexto de exclusão histórica de amplas parcelas populacionais, como um pré-requisito para o resgate da solidariedade devida pelas políticas universalistas ao conjunto da sociedade. Isso implica o reconhecimento de que elas historicamente abandonaram esse princípio de solidariedade, o que resultou na apropriação por não-pobres de recursos destinados aos pobres. Esse é o estado da arte. E não será a submissão a um princípio abstrato de universalismo, que na prática social se realiza como farsa, reproduzindo privilégios, que se poderá enfrentar decisivamente o problema da pobreza, da miséria e da concentração de renda no país.

O debate focalização x universalização faz supor que não haja focalização nas políticas universalistas no Brasil, que elas são neutras e igualitárias. Uma análise sobre a distribuição dos recursos para creches pelos estados brasileiros revelou, segundo Ricardo Paes de Barros que ‘‘a última criança atendida em Santa Catarina tinha renda per capita de 50 reais. Em Pernambuco, a renda da criança era de 5 reais. Então, é tirar dinheiro de um e dar para o outro. Quem está abaixo da média são Sergipe, Piauí, Ceará, Bahia, Alagoas, Maranhão e Pernambuco. O que é isso? Isso é o Nordeste. Então, o Nordeste é aquele que menos recebe dinheiro. O Conselho Nacional de Assistência Social segue o que eles chamam de ‘critério histórico’: o dinheiro do passado se divide como sempre se dividiu, só se vier mais dinheiro é que se pensa nos pobres”.

Outro exemplo: o resultado das políticas universalistas na área da educação no Brasil é, como nos informa José Márcio Camargo (PUC-RJ), que ‘‘92% dos estudantes das universidades públicas estão entre os 20% mais ricos da população. A probabilidade de uma pessoa que vive numa família entre os 40% mais pobres chegar a uma universidade pública é zero”. Não por acaso, o Censo Étnico realizado pela Universidade de São Paulo acusou, simplesmente, um déficit de estudante negros.

A defesa intransigente das políticas universalistas no Brasil guarda, por identidade de propósitos, parentesco com o mito da democracia racial. Ambas realizam a façanha de cobrir com um manto ‘‘democrático e igualitário” processos de exclusão racial e social que perpetuam privilégios. Postergam igualmente o enfrentamento das desigualdades que conformam a pobreza e a exclusão social.

Nesse sentido, o debate universalização x focalização se constitui um embuste se não admitirmos que historicamente as políticas universalistas não vêm realizando a sua concepção ideal de romper com a graduação de direitos. Para que elas possam corresponder a essa concepção ideal, é mister o reconhecimento dos fatores que vêm determinando a reprodução das desigualdades que elas vêm eternizando e tomar a focalização como um instrumento de correção desses desvios históricos e não como alternativa de política social. Ou seja: a realização dos ideais das políticas universalistas no Brasil depende de sua focalização nos segmentos sociais que historicamente elas mesmas vêm excluindo. E o parâmetro de qualidade que devem perseguir e oferecer são os padrões dos serviços desfrutados pelas classes média e alta da sociedade.

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