Um Brasil para todos

O documento Plano Plurianual elaborado pelo governo coloca em suas primeiras linhas que o PPA 2004-2007 ‘‘está sendo construído para mudar o Brasil. Vai inaugurar um modelo de desenvolvimento de longo prazo, para muito além de 2007, destinado a promover profundas transformações estruturais na sociedade brasileira. (…) É uma peça-chave do planejamento social e econômico do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.

Por Sueli Carneiro

Apesar da intenção inovadora, os elementos de resistência chamam a atenção. O primeiro diz respeito à invisibilidade de gênero e raça na concepção das políticas sociais desse PPA, embora essas variáveis apresentem-se de forma inequívoca nos diagnósticos sobre as desigualdades sociais no Brasil. Diz com freqüência o ministro José Graziano que dentre 10 pessoas famintas no Brasil, oito são negras.

Antes dele já dizia o ex-ministro da Educação Paulo Renato que ‘‘pobreza tem cor no Brasil e é negra”. FHC, por sua vez, dizia que o ápice da exclusão social no Brasil estava representado numa mulher negra, chefe de família, trabalhadora rural das regiões Norte ou Nordeste do país. Na mesma direção, diferentes diagnósticos sócio-econômicos apontam o fenômeno da crescente feminização da pobreza.

De acordo com o documento Desenvolvimento com Justiça Social: Esboço de uma Agenda Integrada para o Brasil (Policy Paper nº 1. IETS, Rio de Janeiro 2001), ‘‘os indicadores sociais da desigualdade racial são contundentes e estáveis. Nesse sentido, impõem-se a iniciativa política de levantar o manto do silêncio em torno da falsa democracia racial brasileira e expor ao debate franco acerca do racismo e suas implicações sócio-econômicas. (…) Esses pobres e miseráveis são, sobretudo, crianças e negros. São os que continuam, em grande parte, invisíveis aos olhos dos formuladores e dos gestores das políticas sociais. São os que precisam se tornar o foco das políticas sociais.(…) São esses portanto, os pobres invisíveis que precisam ser trazidos à luz e impostos à consciência moral da Nação. São o coração do projeto de desenvolvimento…”

Assim posto, um Brasil para todos que aspira a profundas transformações estruturais tem que romper, em seu planejamento estratégico, com os eufemismos ou silêncios que historicamente vem mascarando as desigualdades raciais e conseqüentemente postergando o seu enfrentamento. A absoluta maioria dos excluídos tem cor e sexo e a política social tem que expressar essas dimensões.

Outra questão é que embora a proposta do PPA seja abrangente e ambiciosa em seus objetivos, é econômica em relação aos resultados ou metas a serem alcançadas. Segundo o documento do IETS já citado, ‘‘a definição de metas é absolutamente central para orientar as ações públicas e estabelecer critérios para o controle social… As metas devem referir-se, de forma integrada, tanto a indicadores sintéticos (como, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ou o Índice de Condições de Vida (ICV) como a indicadores específicos desagregados (por exemplo, taxa de mortalidade, taxa de analfabetismo, defasagem série-idade na escola, oferta e acesso a serviços públicos, probabilidade de morte por violência etc…).”

Nesse sentido, a proposta do PPA é também silenciosa em relação aos compromissos já assumidos pelo Estado brasileiro com as metas internacionais de desenvolvimento acordadas nas Conferências da ONU da década de 90, que estabelecem um marco temporal de até 2015 para que sejam alcançadas. São elas:

  • Redução da proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza em 50%;
  • Educação primária universal;
  • Eliminação de disparidades de gênero na educação (2005);
  • Redução da mortalidade infantil e da mortalidade das crianças menores de cinco anos em 75%;
  • Redução da mortalidade materna;
  • Acesso universal a serviços de saúde reprodutiva;

Implementação de estratégias nacionais para o desenvolvimento sustentado até 2005, de forma a reverter as perdas de recursos ambientais até 2015.

A Conferência Contra o Racismo ocorrida em Durban estabelece uma nova meta, a 8ª, referente à redução ou eliminação das defasagens/gaps raciais e étnicos antes de 2015 articulando as sete metas anteriores em relação aos grupos discriminados, ou seja ‘‘integrar a plataforma de Durban, suas pautas e aspirações nas metas de desenvolvimento e eliminação da pobreza acordadas pela comunidade internacional nos objetivos do Milênio. Os grupos metas devem ser sujeitos de especial atenção na superação do déficit educativo, na melhoria da qualidade da educação; na diminuição dos níveis de incidência da AIDs particularmente nas populações afro-descendentes e no aumento na participação dos grupos excluídos em seu acesso a fontes de emprego”.

O governo brasileiro vem envidando todos os esforços para assegurar a confiança internacional em relação aos compromissos relativos à esfera macro-econômica. Espera-se dele o mesmo empenho em relação aos compromissos sociais e de desenvolvimento humano acordados internacionalmente. Para isso basta incluí-los entre os objetivos e metas desse PPA.

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