‘Foi uma das melhores dissertações que já li’: os presos britânicos que se formaram em criminologia

Zahid Bashir, 37 anos, está pronto para iniciar uma vida nova em poucos meses, quando terminará de cumprir pena de 14 anos de reclusão. Graças à qualidade de seu trabalho de conclusão do curso de Criminologia, nem precisará fazer mestrado e irá direto para o doutorado na Universidade de Westminster, em Londres, onde se graduou.

Karina Reif De Londres para a BBC News Brasil

TARSILA PEREIRA/BBC – No início de julho, dois presos do sistema britânico, Bashir (dir.) e um colega, tornaram-se criminologistas, em cerimônia realizada em Londres

“Foi uma das melhores dissertações que já li em 20 anos”, disse o professor Sacha Darke, que comemorava a formatura do aluno.

No início de julho, dois presos do sistema penal britânico, Bashir e um colega, tornaram-se criminologistas, em cerimônia de formatura realizada no Royal Festival Hall, em Londres. No Reino Unido, Criminologia é um curso de graduação que estuda uma série de tópicos – inclusive causas, impacto social e prevenção – ligados a crime, ordem e justiça criminal.

No entanto, assim que terminou o evento, tiveram que botar o diploma embaixo do braço e voltar para a cadeia, onde ainda cumprem pena. Os dois – assim como seu mentor acadêmico – pediram à reportagem que os crimes que cometeram não fossem informados para evitar “estigmatização”.

Desde 2013, o professor Sacha Darke desenvolve um programa de orientação acadêmica em três prisões britânicas em conjunto com Andreas Aresti, que também leciona na Westminster. Ao terminar módulos do projeto dentro da cadeia, os detentos podem validar as disciplinas cursadas numa faculdade na Universidade de Westminster. Bashir e Gidean, por exemplo, participaram das atividades do projeto e depois ingressaram no curso de Criminologia, que completaram na prisão.

Eles não foram os primeiros a alcançar tal façanha, mas agora há a possibilidade de a experiência atingir ainda mais gente, inclusive no Brasil.

Os professores Darke e Aresti estão no país visitando unidades penitenciárias no Maranhão, em Rondônia e em São Paulo. A jornada colocou os dois professores em contato com colegas acadêmicos e representantes do sistema carcerário nos Estados – e ajudou a concretizar um projeto que adapta o modelo inglês à realidade brasileira.

TARSILA PEREIRA/BBC – Recém-graduado, Bashir irá direto para o doutorado na Universidade de Westminster

Entender a realidade do cárcere

Aresti, um ex-detento que viu a importância de poder seguir estudando quando esteve atrás das grades, ajuda a mobilizar professores a colocar a ideia em prática. Aos 28 anos, ele entrou na prisão de Pentonville, em Londres, pela primeira vez para cumprir pena e hoje, com 51, retorna semanalmente para dar aulas a um grupo de prisioneiros.

“Voltar tem sido surreal. Eu tento mostrar que há algo de positivo para tirar deste lugar”, explica.

Na época em que aguardava o julgamento, na década de 1990, iniciou o curso de Psicologia e seguiu estudando durante o ano e meio em que esteve cumprindo pena.

“Quem está lá já falhou em muitos aspectos. E as aulas dão oportunidade de dedicação a algo novo em que é possível vencer”, disse à BBC News Brasil.

TARSILA PEREIRA/BBC – Gidean fez faculdade de Psicologia e depois de Criminologia na prisão

O outro formando

O outro formando em Criminologia é Gidean Benjamin Jarrett, 36 anos, que comemorou a graduação com a namorada e parentes nos salões do Royal Festival Hall.

“Quando a sentença é longa, muitas pessoas perdem a esperança. Mas eu sempre fui resiliente e consegui me dedicar a outras coisas”, ressalta.

Condenado a quatro anos e meio de prisão, ele iniciará o mestrado em setembro deste ano. Será colocado em liberdade em janeiro, e seguirá com o curso.

“Eu estou orgulhoso de mim mesmo. Essa era a minha meta”, conta, dizendo que se vê como exemplo para os dois filhos, uma menina de 12 e um menino de 11. Daqui para frente, pretende incentivar outros presos a estudar.

Jarrett disse cogitar atuar como professor de Criminologia quando terminar o mestrado. O foco de Zahid Bashir é terminar o doutorado. “Posso ser talvez professor universitário ou pesquisador em criminologia”, especula.

Tanto Jarrett como Bashir estão atualmente cumprindo pena em regime aberto – em que podem sair para assistir às disciplinas. No Brasil, esta situação seria chamada de “regime semiaberto”.

Aulas atrás das grades

As aulas e orientação prestadas por Darke e Aresti ocorrem em três instituições fechadas. Além de Pentonville, as prisões de Grendon e Coldingley (ambas mais no interior da Inglaterra) sediam os projetos universitários.

Em Pentonville, as aulas semanais são assistidas por cerca de dez presos e também por um grupo de aproximadamente oito estudantes de criminologia da Universidade de Westminster. A ideia é que, por 12 semanas, eles estudem juntos, e possam discutir temas como justiça social.

Segundo Jose Aguiar, consultor de educação em Pentonville, que ajudou a adaptar a ideia dos professores para as especificidades da instituição prisional, “todos são tratados iguais, como alunos”.

“Além do aprendizado formal, são criadas relações sociais muito importantes. Os presos ainda descobrem potencialidades e a identidade de prisioneiro muda para ‘estudante universitário’. Eles passam a ser vistos de outra forma pelos demais presos e pelos funcionários”, analisa Aguiar.

Tarsila Pereira/BBC – Professor Aresti, que já foi detento, sabe como esse tipo de programa auxilia quem está dentro das grandes

No Brasil

No Brasil, um dos raros acadêmicos com experiência de encarceramento é Roberto da Silva, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, que pesquisa justamente a área da educação em prisões – e foi um dos fundadores do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade (GEPÊPrivação), integrado por pesquisadores da Faculdade de Educação (FEUsp) e do Instituto Paulo Freire (IPF).

Da Silva passou 24 anos sob custódia, até os 17 anos em unidades da Febem e, depois, em casa de detenção. Na prisão, estudou Direito, como autoditada, o que ajudou a reduzir sua pena. Após a liberdade, em 1984, concluiu os estudos escolares, se formou em padagogia e, depois, mestre pela USP.

Ele disse à BBC News Brasil que vê o projeto de levar a universidade às prisões com bons olhos – e que, mesmo a estrutura precária, falta de pessoal, superlotação e a atuação de facções não impedem sua viabilização. “Em alguns lugares, os presos que estudam ficam em locais separados para que tenham algum privilégio por causa da sua conduta.”

Para ele, “as prisões devem ser entendidas também como estabelecimentos educacionais e não apenas como locais de punição e degradação do ser humano”.

Ele diz que, “atualmente, apenas 13% de presos estão estudando e é preciso estender esse direito”. “A população prisional é predominantemente jovem, de baixa escolaridade e que passa, em média, oito anos na prisão. Ou essas pessoas terão a oportunidade de estudar e se desenvolver como ser humano, ou serão devolvidas para a sociedade em piores condições do que eles entraram.”

TARSILA PEREIRA/BBC – Uma das poucas representantes femininas dessa área, Safak Bozkurt ficou presa por um ano

Sacha Darke acredita que, apesar das diferenças culturais e socioeconômicas entre Brasil e Inglaterra, a ideia de levar aulas de cursos de crinimologia para as prisões pode dar certo.

“É possível adaptar à realidade existente, assim como tivemos que adaptar os cursos em cada prisão que atuamos no Reino Unido”, explica Darke, que pesquisa sobre o sistema prisional brasileiro desde 2010 e está lançando o livro, em português, Convívio e Sobrevivência: Ordem Prisional em Cogovernança.

O primeiro projeto que deve sair do papel está sendo encampado pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), ligada à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do governo de Maranhão.

Os alunos de Direito e Ciências Sociais da professora da Universidade Estadual do Maranhão Karina Biondi promoverão rodas de conversa, debates e leituras conjuntas com os presos. Dessa forma, assim como ocorre na Inglaterra, apenados e alunos podem aprender uns com os outros.

“Minha ideia”, diz Biondi, “é que esse projeto contribua para que eles construam um olhar mais crítico acerca de suas realidades que, como sabemos, estão inevitavelmente entrelaçadas, apesar dos muros que os separam”.

“É muito comum que os estudantes passem a incorporar os jargões de suas áreas, a falarem apenas para seus pares. De outro lado, há também um desconhecimento sobre as realidades dos cárceres e sobre os saberes que os presos precisam elaborar para enfrentarem essa realidade”, explica a professora.

Segundo Biondi, a ideia foi bem recebida pelo poder público responsável pela gestão carcerária no Maranhão.

“Tanto a Unidade de Monitoramento Carcerário, ligada ao Tribunal de Justiça, quanto a direção da Apac tornaram possível o início imediato do projeto, oferecendo todas as condições para que possamos atuar. Então a presença dos professores Sacha Darke e Andreas Aresti em São Luís marcará o início de nossas atividades”, diz.

Mesmo assim, admite que haverá dificuldades na experiência brasileira.

Arquivo pessoal – BBC – Karina Biondi deve coordenar atividades inspiradas no projeto britânico em unidade penitenciária do Maranhão

“Temos um grande desafio para implementar esse projeto no Brasil, que é a diferença da escolaridade da população carcerária. Enquanto em Grendon eles estão oferecendo pós-graduação aos presos, aqui temos uma grande parcela da população carcerária que não completou o ensino fundamental.”

Fora isso, há também problemas de superlotação nas cadeias, falta de estrutura e presença de facções.

Pesquisador da organização criminosa PCC, que está presente em praticamente todas as instituições prisionais do Brasil, Gabriel Feltre entende que o projeto pode ser aplicado no país, apesar dos entraves.

“Há projetos similares no Brasil.”

Contudo, ele pondera que é necessário pensar no atual sistema.

“Nosso problema é modificar o modelo de encarceramento crescente, desnecessário, caríssimo, ineficiente e pior: que favorece a expansão do mundo do crime”, diz, acrescendo que deve, sim, haver educação nas cadeias brasileiras.

“Mas é ainda mais importante que as cadeias sejam reservadas para os crimes graves, não para uma massa de jovens de favela, pequenos operadores de mercados ilegais. Esses devem ser educados fora da cadeia.”

Dentro ou fora das grades, o que costuma ocorrer com quem participa desses projetos é uma aproximação por meio, principalmente, da informação.

Assim como os acadêmicos estão levando ensino para dentro da cadeia, o lado de fora também ganha.

“É uma troca. Nós queremos aprender com eles também”, ressalta Darke.

Em pouco tempo, quem sabe, haverão outros Silva, Aresti, Safak, Bashir e Jarrett no Brasil.

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