Dos temas que mais me mobilizam e me afetam profundamente, a fome se destaca. Ela representa o extremo ao qual podemos chegar como seres humanos e é o limite das desigualdades sociais, evidenciando o desrespeito dos governantes com sua população — uma política de deixar morrer, refletida também na crise climática. Tudo está interligado.
Durante os seis anos de governo de extrema direita após o golpe, a sociedade civil brasileira foi aguerrida ao enfrentar o obscurantismo, a fome, a morte e até um vírus mortal, com um governo que não acreditava em vacinas. Nesse período, distribuímos comida e cuidamos uns dos outros. O Brasil nunca deixou de enfrentar adversidades e políticas que levam à morte.
Mas o Brasil não voltou. Se as pessoas não têm segurança alimentar para si e seus filhos, nunca vão priorizar o combate às mudanças climáticas. Qualquer governo que não consiga prover as necessidades básicas de sua população não estará preparado para lidar com os desafios climáticos. Em eventos climáticos extremos, a população mais vulnerável entra rapidamente em insegurança alimentar, sem perspectiva de restaurar suas vidas com segurança em todas as áreas. Então, o Brasil afirma lá fora que “voltou”, mas para onde voltamos? Estamos avançando?
A crise climática é um dos maiores desafios do século XXI. Quantas vezes ouvimos variações dessa afirmação? Políticos, movimentos, ambientalistas e ativistas alertam que “estamos na merda” — minha versão de “deu ruim” em relação à meta de 1,5°C do Acordo de Paris. A última década foi a mais quente já registrada e o alarmante é que, além de estar 1,5°C acima da média pré-industrial, junho de 2024 marca o 13° mês consecutivo ultrapassando esse limite.
Os impactos devastadores da crise climática, como eventos climáticos extremos, secas prolongadas e inundações, afetam diretamente a produção de alimentos, exacerbando a fome e a pobreza. No Brasil, esses problemas são agravados diariamente pelas desigualdades sociais e pelo racismo. Para avançar na agenda de sustentabilidade e justiça social é essencial focar no financiamento climático, no combate à fome e na redução das desigualdades.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua: Segurança Alimentar, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve melhorias desde 2013, mas ainda estamos acima do nível de uma década atrás.
Em 2023, 28% dos lares brasileiros enfrentavam insegurança alimentar, cerca de 64 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno a alimentos. Em 4% desses lares, aproximadamente 8,6 milhões de pessoas, incluindo crianças, havia insegurança alimentar grave. Isso significa que essas famílias convivem com o espectro da fome. Embora o percentual de lares em insegurança alimentar seja menor do que em 2017 e 2018 (37%), durante a recessão, ele ainda é superior ao observado há uma década (23%).
Tá bom, mas tá ruim
Cerca de 733 milhões de pessoas passaram fome em 2023, o equivalente a uma em cada 11 pessoas no mundo e uma em cada cinco na África, de acordo com o último relatório O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (SOFI), publicado hoje por cinco agências especializadas das Nações Unidas.
E tudo está piorando em um redemoinho de fatores diferentes, incluindo a persistente inflação nos preços dos alimentos, que continua prejudicando os ganhos econômicos em muitos países. Os principais fatores desencadeantes, como conflitos, mudanças climáticas e desacelerações econômicas estão se tornando mais frequentes e severos. Esses problemas, junto com fatores subjacentes como dietas saudáveis inacessíveis, ambientes alimentares insalubres e desigualdade persistente, estão coincidindo e amplificando seus efeitos individuais.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou, na última quarta-feira (24), da sessão de abertura da Reunião Ministerial da Força Tarefa para o Estabelecimento de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. A atividade foi realizada no Rio de Janeiro, no galpão onde funciona o projeto Ação da Cidadania. A Aliança Global contra a Fome é o principal projeto do Brasil à frente da presidência do G20, que vai até novembro deste ano e tem como objetivo atender a um dos principais objetivos da Agenda da ONU 2030: a eliminação da pobreza e da fome no mundo.
Temos condição de enfrentar a fome e as mudanças climáticas com menos discurso e mais ações emergências?
Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).