Fora do Lugar, por Sueli Carneiro

A revista Tudo realizou um teste comparativo sobre o estágio atual de nossa democracia racial, em novembro deste ano, buscando atualizar experiência semelhante realizada em 1967 pela revista Realidade e em 1990 pela revista Veja. Como nas anteriores foram convidados três jornalistas, um negro, um branco e um oriental, para simularem ser consumidores em ‘‘estabelecimentos comerciais dos Jardins, em São Paulo, reduto de lojas de grife, restaurantes caros e hospitais de primeira linha” de forma a identificar diferenças de tratamento.

Por Sueli Carneiro

Foram escolhidos estabelecimentos situados nas mesmas ruas e com as mesmas características aos utilizados nos testes anteriores. Os três jornalistas convidados usavam roupas do mesmo estilo, e adotaram como ordem de entrada nos recintos, em primeiro lugar, o negro, seguido pelo oriental e por último sempre o branco.

Na primeira situação, num restaurante de alto padrão, ao jornalista negro que esperava no balcão por uma mesa, foi sugerido: ‘‘Você não prefere escolher o seu prato e ser servido aqui mesmo?”

Embora ele tivesse chegado antes, a primeira mesa que vagou foi oferecida ao seu colega oriental que chegara depois. Ao fim da refeição, o garçom preocupou-se em perguntar para o negro se ele necessitava de nota fiscal, o que não lhe ocorreu perguntar aos demais e, por fim, ‘‘os três pediram café depois de acertar a conta, mas apenas o negro pagou R$3,50 pela bebida”.

Na segunda situação, numa loja de grife famosa, o repórter negro que estava sendo atendido pela vendedora, foi, segundo a revista Tudo, ‘‘abandonado às moscas” assim que o jornalista branco entrou. Ao oriental, depois de experimentar várias peças, sem nada comprar, foi oferecido um ‘‘cafezinho, num salão anexo à loja”, o que obviamente não ocorreu com o cliente negro.

Na terceira situação, em uma maternidade muito conceituada, uma série de informações que foram oferecidas ao jornalista oriental e ao branco foram simplesmente omitidas para o negro, tais como: a oferta, pela maternidade, ‘‘de curso especial para gestante, kit-envelope informando todos os serviços da maternidade.. e que o hospital disponibilizava um enxoval, sem custos, para o bebê…”

A primeira idéia que se defende diante desses casos é a de que há uma suposição generalizada de que os negros não dispõem de poder aquisitivo para pagar serviços de qualidade, posto que está incrustado no imaginário social que os negros são, em geral, pobres. Então estaríamos diante de uma situação de discriminação de classe social, embora os três apresentassem, intencionalmente, os mesmo símbolos de status.

No entanto, a interferência da raça/cor no tratamento diferenciado se revela numa das ‘‘pérolas” colhidas pelos jornalistas no restaurante. Um dos clientes que esperavam por mesa comenta com outro: ‘‘A gente aqui esperando que nem bobo e o crioulo ali sentado na mesa belo e folgado com um copo de cerveja. Dá pra acreditar?” E mais diz o cliente: ‘‘Nem o Pelé está mais com essa moral toda. Vocês viram a pisada de bola do negão…”

A frase não deixa dúvida sobre o saudosismo da ‘‘senzala” sobre a certeza de que aquele negro está ‘‘fora de lugar” ocupando o de ‘‘outro”, o legítimo, tornado ‘‘bobo” por ter que esperar uma mesa, enquanto um negro desfruta de outra.

Uma frase exemplar que revela, na sua simplicidade, toda a lógica explicativa das desigualdades raciais e as ‘‘dificuldades” presentes no debate sobre as ações afirmativas: a idéia insuportável de ter que socializar com negros a espera e o acesso às mesas dos melhores restaurantes, escritórios, universidades etc.

Em duas das três situações descritas há um rito – o do cafezinho, cortesia da casa – para clientes preferenciais. É, numa das situações, não oferecida; e noutra, cobrada do negro uma multa simbólica, por estar ele ‘‘fora de lugar”.

A racionalidade que governa as relações de consumo, em que cada indivíduo é um consumidor em potencial, não importando a cor ou origem do seu dinheiro, desde que ele seja suficiente para pagar o bem desejado, se fragiliza, na intersecção com a raça/cor, renunciando à liturgia que compõe o assédio ao consumidor, o que revela que, em certas circunstâncias e, para determinados círculos sociais, a possibilidade de contágio daqueles espaços e daqueles produtos, pelo estigma que envolve o negro, representa ônus superior do que a perda desse consumidor. O bem superior que se pretende preservar é a identidade daqueles espaços e daqueles produtos com um ideal de ego dos clientes, de pertencimento a um grupo de privilegiados, seres superiores, detentores do direito às melhores coisas do mundo. Como no caso da mulher de César, não basta ser rico, ou ter dinheiro – tem também que parecer, encarnar a representação idealizada do consumidor de alto padrão, em relação à qual os atributos da negritude, para muitos, tem uma não-correspondência inconciliável.

Há, portanto, espaços em que os negros não são desejados, nem como consumidores, nos quais operam os elementos de resistência determinados pelo estigma. O estigma, segundo Goffman, é algo externo, não é da pessoa, mas chega antes dela. O medo do contágio do estigma expulsa os negros sutil ou violentamente dos espaços, também estigmatizados, como privativos dos brancos, em especial os das classes superiores.

Costuma-se considerar que, no Brasil, é possível tornar-se branco ou negro a depender da conta bancária. As situações relatadas revelam apenas a tolerância oportunista com que são tratados alguns negros, que alcançaram prestígio e poder, mas que, ao menor vacilo, são mandados de volta para a senzala.

Alguém já nos alertou que a mudança de paradigma exige um novo olhar. Emanuel Levinas disse que a ‘‘ética é uma ótica.” A transformação dessas imagens negativas que aprisionam os negros requer a emergência de um novo paradigma que subverta essa ótica discricionária, que cega a ética e desfoca o olhar.

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